LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Paulo Scott
Ilustração: Cláudio Rodrigues
Cidade de Deus, narrativa longa escrita pelo autor carioca Paulo Lins (Rio de Janeiro, RJ, 1958), lançada em 1997, transfigura para a ficção a violenta realidade social de pessoas subalternizadas pelo Estado. A história se baseia nas idiossincrasias que marcaram os primeiros quase 20 anos de um loteamento urbano na região Oeste no município do Rio de Janeiro, um bairro inaugurado em 1966. Este período coincide com o regime da ditadura militar instaurada em 1964 no país. O bairro era destinado à habitação popular, tornando-se um cenário de marginalidade que até então não tinha sido suficientemente escrutinado pela produção literária brasileira.
É um romance que, devido à sua ampla repercussão junto à crítica e ao público, desempenhou um papel central na produção literária nacional, não apenas por ter sido precursor de outras obras que também alcançaram destaque, mas também por ampliar as potencialidades do seu modo de abordagem. Este livro trouxe novos protagonismos para o centro da literatura brasileira, além de introduzir novas perspectivas para alcançar esses protagonismos. Mesmo lançado nos anos 1990, ele inaugurou o que viria a ser conhecido como a literatura brasileira do século XXI.
Dividido em três grandes capítulos – a história de Inferninho, a história de Pardalzinho e a história de Zé Miúdo –, o livro abarca múltiplos núcleos dramáticos, buscas e conflitos que se sucedem e se entrelaçam e, no contexto geral, acabam por nutrir um núcleo dramático que se revela o de maior expressão. Este núcleo dramático – um eixo pelo qual a trama é alinhavada – será estabelecido em torno da personagem Inho, que depois passará a se chamar Zé Miúdo. No arco narrativo dessa personagem se posiciona o desejo que, logo depois das primeiras páginas do livro, movimenta a trama. Nessa personagem, está a representação do tempo, a passagem do tempo, o tempo que abarcará um período bem crítico da história recente da cidade do Rio de Janeiro pelo enfoque de um território que pode ser lido, metaforicamente, como o inferno impossível, o permanente terror de um confinamento socioeconômico arquitetado pelo próprio Estado.
Nas três partes desse sumário está uma estratégia de contar, uma fórmula que revela o ganhar relevância de certas personagens que anseiam por protagonismo – na maioria das vezes, jovens negros que se tornam líderes da criminalidade local, sempre em atrito entre si –, o ganhar poder e depois, quase invariavelmente, a derrocada. São protagonismos provisórios – uma condição que também vale para as personagens policiais que são apresentadas na história –, demonstrando o quanto pode ser efêmera a vida em um ambiente e uma ambiência social tão propositalmente tóxicos como a da Cidade de Deus trabalhada pelo romance.
Nesse sentido, Paulo Lins estabelece, por meio da verdade ficcional que elegeu, uma espécie de cartografia de um território de precariedades, decorrência de uma ordem torta, de um constante caos alimentado pela opressão estatal sistemática – que também se revela nas suas omissões intencionais, programadas, no deixe que se matem –, um território em que se buscam eliminar escolhas éticas e, por decorrência, soluções éticas. Poderia, sob esse viés aqui referido como cartográfico, ser lido como o livro do fracasso ético dirigido por um perverso projeto civilizatório invisibilizador, silenciador, eliminador de um grupo de pessoas. Pode, entretanto, ser lido como o esforço de não ceder a essa inércia destrutiva, esforço de não entregar as subjetividades e sua resistência ao projeto apocalíptico que é a manutenção das desigualdades sociais. É o que se descobre no seguinte trecho do romance: “Os novos moradores levaram lixo, latas, cães vira-latas, exus e pomba giras em guias intocáveis, dias para se ir à luta, soco antigo para ser descontado, restos de raiva de tiros, noites para velar cadáveres, resquícios de enchentes, (…). Transportaram também o amor para dignificar a morte e fazer calar as horas mudas”.
Esse “amor para dignificar a morte” resume bem o jogo de expectativas presente no conflito trabalhado (e retrabalhado) à exaustão no romance. Há muitas mortes nas páginas do livro, mortes que resultam de uma violência que interrompe e desagrega a intenção de uma existência digna. A esperança de conquistar de maneira perene alguma dignidade no existir é escassa, de modo que o elemento divisor entre as personagens de maior relevância, na extensa lista de quase 200 personagens nominadas, acaba sendo, para além de conseguir sobreviver, a busca de algum sentido para continuar existindo quando a morte está o tempo todo tão próxima.
Há preparação para a esperança e para o pior, há afeto e há amor (maneiras diferentes de demonstrar o amor), há personagens que o desconhecem, há as que dele desistiram e as que insistem em preservá-lo.
Um personagem que acaba antagonizando com Zé Miúdo e que é por onde esse tentar preservar amor e ética mais se expressa é Zé Bonito, que entra na trama apenas no terceiro capítulo. Vítima da violência de Zé Miúdo – por ser e ter tudo que este jamais será e terá –, Zé Bonito acaba incorporando uma presença de reação, quase uma ética-resposta, àquele. A partir dos embates entre os dois se descobre o quanto um território de muitos extremos, como Cidade de Deus, destroça as intenções de construir uma sociedade menos afetada negativamente pela morte.
Cidade de Deus, nessa perspectiva, é a presença, a atmosfera, a gravidade, que a todas as subjetividades condiciona, quase de maneira determinante – uma programação da elite que titereia os órgãos do Estado a ponto de produzir inúmeros contextos semelhantes Brasil afora. Algo bem percebido e apreendido no verso-poema-banner da escritora e artista plástica fluminense Aline Motta (2022): “AS PESSOAS NÃO SABEM, MAS OS LUGARES SABEM”.
O bairro Cidade de Deus seria, assim, o palco de uma “ética da violência”, absorvendo todos os medos que acabam por se tornar o sufocante modo de funcionar daquele espaço. A voz narradora em terceira pessoa, uma voz narradora onisciente absoluta, por vezes neutra e quase objetiva, e em outras intrusa, alinhando-se a um permanente deslocamento do foco narrativo, pode-se dizer que é um foco narrativo flutuante. Esse efeito é importante, pois em certos momentos parece que é a cidade do Rio de Janeiro que guia essa voz narradora. Isso produz uma impressão de testemunho, quase como um tom de documentário ou uma dicção próxima à crônica jornalística, embora esteja longe de se confundir com esse tipo de redação, como se buscasse concretizar uma literatura de testemunho.
Paulo Lins cresceu nessa comunidade, testemunhou jovens lideranças do tráfico de drogas surgirem e desaparecem, testemunhou o recrudescimento da presença policial que resultaria nas milícias – um fenômeno que ganhou destaque no século XXI. Ele também acompanhou a ampliação da influência das igrejas neopentecostais, o surgimento do Comando Vermelho na virada dos anos 1970 para os 1980, entre muitas outras transformações de maior e menor impacto.
Por tudo isso, Cidade de Deus se tornou um marco na literatura brasileira contemporânea, pois atualizou uma lente e a maneira de ler, pela tessitura literária, os conflitos sociais no Brasil. A obra renovou a força de uma verdade que só pode ser construída e percebida pela potência de uma obra ficcional recepcionada pelo seu tempo, pela arte (é notória a repercussão da adaptação dessa obra pelo cinema por Kátia Lund e Fernando Meirelles) e pelo debate público também.
Paulo Lins, que, antes de publicar o romance, havia se aventurado na poesia, com Sob o sol (1986), produziu Desde que o samba é samba, romance lançado em 2012, no qual sobressai a profunda pesquisa, realizada pelo autor, sobre a cultura musical carioca do primeiro terço do século XX e seu impacto na construção da identidade negra brasileira. Além disso, lançou Dois amores, em 2019, sempre desvelando as idiossincrasias de protagonismos de pessoas negras e periféricas, sem, no entanto, enfrentar o tema da violência da maneira tão densa como realizou em Cidade de Deus.
Para saber mais
AMODEO, Maria Tereza; MATTE, Gustavo Arthur (2014). Perversidade, fábula e utopia em Cidade de Deus, de Paulo Lins. Antares, v. 6, n. 12, p. 95-116. Disponível em: http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/antares/article/viewFile/2958. Acesso em: 18 jun. 2018.
BARROS, Sandro R. (2012). Cidade de Deus: entre o testemunho e a ficção. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 40, p. 135-149.
COSTA, Keila Prado (2008). O que é meu é meu, o que é seu é nosso: questões de/sobre Cidade de Deus. Revista Criação & Crítica, Universidade de São Paulo, n. 1, p. 31-43.
MOTTA, Aline (2022). A água é uma máquina do tempo. São Paulo: Círculo de Poemas.
PELLEGRINI, Tânia (2004). No fio da navalha: literatura e violência no Brasil de hoje. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 24, p. 15-34.
RIBEIRO, Paulo Jorge (2003). Cidade de Deus na zona de contato: alguns impasses da crítica cultural contemporânea. Revista de Crítica Literaria Latinoamericana, Medford, Latinoamericana Editores, v. 29, n. 57, p. 125-139.
ROCHA, Renato Oliveira (2015). O vínculo de Cidade de Deus com a realidade. REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS, Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, v. 2, n. 7, p. 19-32.
Iconografia