CUNHA, Helena Parente. As doze cores do vermelho. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo; Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1989.
Ilmara Valois Bacelar Figueiredo Coutinho
Ilustração: Manuela Dib
O segundo romance de Helena Parente Cunha (Salvador, BA, 1929 – Rio de Janeiro, RJ, 2023), As doze cores do vermelho, insere-se no campo da ficção brasileira contemporânea como uma narrativa singular, transgressora e desconcertante, tanto por apresentar uma forma narrativa inovadora para o romance na época quanto por questionar as estruturas sociais, históricas e ideologicamente edificadas sob as malhas do preconceito e da exclusão. A linguagem, rica em metáforas e deslocamentos sintáticos, enreda uma contemporaneidade atravessada por temporalidades que funcionam como metonímia de tantos tempos, histórias e trajetórias de mulheres que precisam esgarçar o véu, nem sempre visível, das conveniências patriarcais.
Ao narrar uma vida feminina que se faz consumir em meio às possibilidades e às limitações impostas ao ser mulher, entre os anos de 1940 a 1980 no Brasil, o romance opera um corte nas ordenações tradicionais de identidade, alteridade e diferença, tão presentes na estruturação do conhecimento ocidental, e mais que narrar sobre escolhas, prazeres, enfrentamentos, realizações, sanções, dores, culpas ou fardos inerentes à trajetória feminina, tematiza a vida em seus desdobramentos (individuais e coletivos), expõe as (in)suficiências da linguagem para comunicar e traça, por meio de memórias, falas contundentes e silenciamentos, a incontornável complexidade das relações de gênero. Constitui-se, assim, como literatura feminina que esgarça as malhas dos discursos heteronormativos opressores, colocando em suspensão construções enunciativas que funcionaram, e continuam funcionando, para coagir o feminino, a feminilidade, com a finalidade de mantê-los como constitutivos de uma identidade desprovida de complexidades, portanto, dócil, previsível, controlável.
O enredo é composto por 48 módulos, cada um distribuído em três colunas distintas (Ângulo 1, Ângulo 2, Ângulo 3), três temporalidades (passado, presente e futuro) e três vozes narrativas. Antes dos módulos propriamente ditos, encontra-se a construção “Antes de atravessar o arco-íris”, com informações sobre a estrutura descontínua dos capítulos, que se desdobram para narrar a vida da personagem principal, uma pintora, em seus determinantes existenciais e entrelaçamentos relacionais com as demais personagens. A primeira coluna traz o passado narrado em primeira pessoa por um eu que rememora a infância, fase marcada por exigências voltadas a perpetuar condutas comportamentais limitadoras, principalmente para as meninas; a segunda coluna traz fatos do presente, é fruto de uma narração onisciente, em terceira pessoa, sendo uma voz que se dirige à protagonista como “você” e conta a vida adulta, compartilhando ações decisivas relacionadas à sexualidade, ao casamento, à maternidade e, principalmente, à realização profissional; a terceira coluna traz o futuro narrado por uma voz que se dirige a um “ela” e vai traçando subjetividades, preenchendo lacunas, mostrando porquês e finais.
Nas malhas discursivas da primeira coluna, a menina que sonha em ser pintora e quer ter sua família, marido e filhos vai tendo sua história narrada. Pelo filtro da memória, destacam-se as vozes cerceadoras voltadas a gerar culpa, remorso e adesão aquietada aos modelos desejados numa sociedade que se apraz em tolher qualquer desejo de liberdade que possa arranhar minimamente o status quo da masculinidade reinante. A menina sente, percebe, pergunta, mas a lógica falocêntrica e as classificações binárias, pressentidas como eficaz mecanismo de exclusão, não podem ainda ser compreendidas: “Por que eu não podia passar para o lado de lá?”. Muitas das restrições narradas referem-se à sexualidade, à contenção dos riscos dos desejos, o que a menina buscava entender, fazendo germinar a semente da transgressão que lhe permitiria romper com muitas amarras no futuro. Caminho longo a percorrer num tempo em que virgindade, sexualidade, casamento, profissionalização e o próprio corpo feminino estavam fortemente envoltos em preconceitos representativos da lógica falocêntrica multiplicadora de diversas formas de violência.
Na segunda coluna, encontra-se a narrativa do presente, que acompanha a pintora mulher, a que casa, tem um marido inicialmente provedor e proibidor da profissão da esposa. A mulher que deve cuidar do lar e ter um trabalho que não ameace o ego do marido. A mulher com duas filhas para alimentar, cuidar, educar, amar. A mulher que escolhe se realizar como profissional alcança sucesso como pintora, mas paga o preço inerente às múltiplas jornadas de trabalho, às decorrentes ausências no ambiente familiar, à culpa. A mulher que sente desejo, que tem um corpo pulsante e busca prazer para além da objetificação herdada, e encontra, mas encontra também frustração, solidão e mais objetificação, em caminhos nunca desprovidos de luta, transgressão e resistência.
Na terceira coluna, a voz que se dirige a “ela” vai anunciando os motivos, os desdobramentos e os desfechos que pertencem ao futuro. Como termina, onde desembocam as escolhas: é possível conseguir ser tantas, sendo uma? Trata-se de uma voz instada a mostrar que o ápice das cores mais reluzentes traz uma aspereza característica das contas que cabem à mulher pagar, ainda que não sejam unicamente a ela pertencentes. Assim, entre a menina que realiza as expectativas familiares e sociais, a mulher que se dedica ao casamento, ao lar, às filhas – mas que ousa se realizar profissional e sexualmente, abdicando de ser “a rainha do lar” – e a mulher que sucumbe ao peso das próprias escolhas, a narrativa estabelece a dura distância a ser percorrida na construção das mudanças fundamentais no papel social da mulher.
Os três ângulos, colunas e vozes narrativas performam uma construção identitária fragmentada, como se fosse necessário desdobrar tanto a personagem quanto a narrativa para contar a condição de ser mulher – criança, esposa, amante, mãe, profissional – destinada, desde a infância, a enfrentar as incontornáveis bifurcações e encruzilhadas da vida privada e social. Os processos de identificação, no romance, vão sendo construídos para jogar por terra a possibilidade de uma construção identitária linear, progressiva, coerente e segura. Assim, há um lá onde estão as possibilidades e os desejos, onde o caminho é incerto, o medo, a culpa e as duras sanções compõem o horizonte de expectativas; há um cá onde as coisas guardam uma aparente adequação, naturalidade, justeza, mas que acirra as dúvidas, questionamentos e problematiza as condições da existência. No meio do caminho as (im)possibilidades.
Mais mulheres compõem a narrativa, mulheres com as quais a protagonista se relaciona, inclusive com amizades que se prolongam vida afora. Desde a primeira coluna, a que narra a infância, as meninas que se unem representam as muitas formas de violência destinadas às mulheres e às mulheres consideradas diferentes. Assim, são amigas da protagonista: a menina/mulher negra, que enfrenta preconceitos e humilhações para se tornar médica renomada; a menina/mulher dos cabelos de fogo, filha de prostituta e que acaba seguindo a profissão da mãe, arquejada por mais preconceitos e humilhações, mas que encontra um parceiro para formar uma família; a menina/mulher dos olhos verdes, que, transgressora, desde muito cedo, faz-se jornalista emancipada e livre; e a menina/mulher loira, voltada a defender os valores de esposa dedicada ao marido, ao casamento, à família. Estão reunidas então categorias que mostram que as mulheres travam lutas diferenciadas e encontram soluções também diferenciadas, afirmando mais uma vez a impossibilidade de reunir uma compreensão ideal do ser mulher, da feminilidade ou da sexualidade que as constitui. As duas filhas da pintora, também mulheres, são fatidicamente mostradas como representativas de que os desafios permanecem firmes de geração a geração, ainda que sejam alteradas as circunstâncias. Tanto as mulheres que se retraem quanto as mulheres que se emancipam e exploram possibilidades múltiplas estão fadadas a enfrentar as armadilhas do patriarcado.
Perpassam a obra temas como virgindade, casamento, maternidade, aborto, liberdade sexual, profissionalização, formando um retrato fragmentado, incerto, que aponta para a mobilidade característica da segunda metade do século XX, no tocante às identidades e aos papéis sociais atribuídos às mulheres. Nesse romance, Helena Parente Cunha quebra a narrativa, o enredo, o tempo, para quebrar a noção de sujeito coerente e centrado em vigência. Ao estilhaçar a voz narrativa, evidencia que tanto a literatura quanto a condição feminina não se fazem por objetificação de ditames hegemônicos, falocêntricos, machistas, podendo ser narradas em suas mais variadas complexidades. Ao evidenciar três pessoas que são uma sendo múltiplas, mostra que a trindade feminina se faz nas amarras do cotidiano, nas lutas e transgressões, nas quebras e reconstruções passíveis de muitas cores e tonalidades: “Eu tinha quatro caixas de lápis de cor. Quatro vezes doze lápis. Eu desenhava o que eu não desenhava. Fora da linha um traço aquele. Eu coloria o céu de vermelhos”. As doze cores do vermelho. Vermelhos.
Para saber mais
LIMA, Lílian Almeida de Oliveira (2014). Meninas, jovens e velhas: personagens tecidas na narrativa de Helena Parente Cunha. Tese (Doutorado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
LIMA, Lílian Almeida de Oliveira (2015). Abuso e repressão: fibras do mesmo fio na infância das meninas de Helena Parente Cunha. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 46, p. 61-78. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/10035. Acesso em: 31 jul. 2023.
MIRANDA, Adelaide (2011). Entre o lado de cá e o lado de lá: uma leitura feminista de As doze cores do vermelho, de Helena Parente Cunha. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 1, p. 1-6. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/8830. Acesso em: 31 jul. 2023.
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