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As aves de Cassandra

JOHNS, Per. As aves de Cassandra. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.

André Luiz dos Santos Rodrigues

Ilustração: Mariângela Albuquerque

Publicado em 1990 pela editora José Olympio, o romance As aves de Cassandra, de Per Johns (Rio de Janeiro, RJ, 1933 – Teresópolis, RJ, 2017), escritor brasileiro de origem dinamarquesa, mescla autobiografia e ficção. Composta por doze capítulos e com foco na infância do autor, a narrativa é acidentada: cada segmento dessa macroestrutura possui um tema e uma forma específicos, centrando-se ora na figura paterna, ora na figura materna, ora nos ambientes em que o autor cresceu, ora nas pessoas que estavam ao seu redor na infância, ora em narrativas altamente ficcionais e aparentemente deslocadas do que se esperaria de um livro baseado na memória pessoal.

No primeiro capítulo, “Os gnomos e a chave”, o narrador em primeira pessoa anuncia que, com seu relato, pretende ater-se “à alma ou negativo da história visível, […] à ancestralidade e ao inexplicado”. Sua intenção não é contar os fatos como foram, mas esquadrinhar o que silenciosamente os engendrou, contrapondo à sua veracidade dúvidas, caminhos não tomados e hesitações. Para tanto, remonta, inicialmente, à biografia oficial de seu pai, Odin, um engenheiro civil de origem camponesa, para, logo em seguida, desmontá-la. Retratado como “uma esfinge sem sentimentos”, Odin era um homem disciplinado que se mudou para o Rio de Janeiro em 1922, a serviço da empresa C&N. Embora encantado pelo Brasil, enxergava-o como um local tomado pela barbárie e habitado por pessoas rudes, incultas e indolentes – pessoas com as quais não se devia misturar.

No entanto, o narrador preocupa-se em olhar para o que se esconde sob a estabilidade dos dados biográficos e, assim, compara duas representações de seu pai: o homem do retrato oficial e o homem do passaporte. O primeiro ficava orgulhosamente exposto no salão principal da opulenta casa em que a família de Johns morava no Rio de Janeiro, “com um olhar que me buscava e me encontrava onde quer que eu estivesse; do qual era impossível escapar” – um olhar repressor. O segundo foi encontrado no sótão e “me mostrava um outro homem, acabrunhado pelos fantasmas que lhe habitavam o sangue e que explicavam certos reiterados momentos ilógicos”. O narrador percebe, por meio da fotografia deixada no sótão, que seu pai possui duas faces opostas, tendo escolhido a mais racional para apresentar em público.

Se é fato que a história social brasileira é marcada pela mistura entre a esfera pública e a privada, podemos dizer que tanto Odin quanto Anne Marie, sua esposa e mãe de Johns, se esforçavam para separá-las, o que provocava uma cisão em suas personalidades. A esfera pública – vista pelo narrador como teatro das aparências e das falsidades – comporta o agradável, o completo, o controlado e o claro. Mais real, a esfera privada, por sua vez, abriga o amargo, o defeituoso, o ambíguo e o espontâneo. Os pais de Per Johns delimitavam clara e solidamente não apenas suas facetas pública e privada, mas também suas origens estrangeiras e a realidade nacional. A casa da família, a casa matriz, foi construída e modificada com base na repugnância pelo nacional brasileiro, sendo uma ilha nórdica no Rio de Janeiro: “se defendia como podia das incursões desordenadas das hordas […] Um moralista diria: sem noção dos limites”. Tal delimitação estreita se reflete na condução da história, que – diferentemente de outras narrativas sobre imigração, como Dois irmãos, de Milton Hatoum (2000) – apaga o contexto social e histórico circundantes.

A dicotomia entre o homem do retrato e o homem do passaporte, o público e o privado, o estrangeiro e o nacional encontra sua expressão na escrita do narrador. Essa escrita é adjetivada e composta por longos períodos, dividindo-se entre seu fluxo comum e a interrupção pelo uso constante de parênteses. Dentro desses parênteses, parece que um comentário é feito em surdina, escondido dos olhos do pai, ou uma dúvida sobre a fidedignidade do que se narra é trazida à luz. Os períodos se ramificam para contrastar com as frases rígidas e imóveis do pai, descritas como “frases que definiam tudo; eram claras, rasas, inequívocas”. O tempo não foi capaz de retirar a dureza de tais palavras da memória do autor, que constrói sua identidade como um sujeito que descontinua o conjunto de valores ditados pelo pai. Para este último, um dos valores mais respeitáveis era a posse de espinha dorsal, isto é, disciplina, “posição, competência, esforço”.

Ter espinha dorsal, todavia, significa, para o narrador, o banimento da imaginação e da liberdade. Nesse sentido, ele adota frases longas e espiraladas para favorecer sua visão de mundo, que desdenha o controle e o limite. É uma linguagem cuja espinha dorsal se perde, esparramando-se para todos os lados com o uso excessivo de adjetivos e advérbios. Não apenas isso: é uma forma de expressão que revela uma subjetividade romântica, que investe reflexões em seu eu e na saudade dos tempos de infância. Mais ainda: uma subjetividade que, por diversas razões, se sente exilada. Uma delas, como afirma Haron Jacob Gamal (2009) em sua tese de doutorado, é o fato de que “o personagem principal de Aves vive uma constante falta, não se identificando de modo pleno em nenhuma das duas nações a que lhe pretenderam dar como berço”.

O desamparo ontológico, a ausência de raízes e os valores de Odin e Anne Marie esmagam a personalidade do narrador, que, a certa altura, suspende o uso da primeira pessoa do singular e emprega a terceira pessoa do singular para falar de Pê Jota, ou seja, para falar de si mesmo na terceira pessoa. Ele sente-se confortável nos ambientes periféricos da casa, o porão e o sótão, e na companhia de atores também periféricos, os criados portugueses Pascoal da Cruz e Cândida, “criaturas intermediárias que traziam no cerne a europeia disciplina do trabalho e uma obediência sem rebeliões ou veleidades igualitárias”. Nesses ambientes e na companhia de tais pessoas, Pê Jota (ou o narrador) sente-se livre para, sem restrições, imaginar.

O narrador imagina, por exemplo, no capítulo “A ilha (que seria da beatitude)”, a história de rivalidade entre o jovem contramestre Fletcher Christian e o capitão William Bligh, uma fábula que encena o conflito entre a racionalidade de Odin e o idealismo de Johns, revelando as diversas maneiras pelas quais se pode contar os episódios de uma vida: na primeira pessoa do singular, como As aves de Cassandra faz em grande parte; fazendo-se personagem de si mesmo, Pê Jota; ou elaborando uma história que não dá indícios da biografia de seu autor. O que há em comum entre essas maneiras é a fonte da qual provêm: o eu.

As aves de Cassandra é uma afirmação da identidade artística do autor por meio da oposição à visão de mundo de seus pais, para os quais método, cálculo e coerência definem um ser humano de valor. A estrutura interna cambiante dos capítulos, as frases que se desenvolvem sem comando, a falta de linearidade narrativa e de preocupação com a veracidade dos fatos fazem de As aves de Cassandra, como afirma o pesquisador Leonardo Tonus (2021), uma autoficção bastarda. É bastarda não apenas por esses motivos formais, mas também porque o autor desmantela a tradição e a pureza sobre as quais a vida de seus pais se ergue, identificando fendas em seus discursos e comportamentos. O título do livro concentra os aspectos da identidade do autor (narrador e personagem), apegada a mitos, histórias e superstições, ao contrário das qualidades nutridas publicamente por seus pais. Para eles, a realidade e a invenção não se imiscuem. As aves de Cassandra desenham no céu mensagens que precisam ser interpretadas: o sentido não é autoevidente e sem incoerência, como queriam Odin e Anne Marie. Mais do que anunciar destinos, elas instauram, à maneira da literatura, a dúvida.

Para saber mais

GAMAL, Haron Jacob (2009). Escritores brasileiros “estrangeiros”: a representação do anfíbio cultural em nossa prosa de ficção. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

JOHNS, Per (2005). As máscaras de Per Johns. Entrevista concedida a Álvaro Costa e Silva. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 jun. 2005. Disponível em: http://www.topbooks.com.br/links.asp?link=../Links/NE_JB_170605_As_Mascaras_De_Per_Johns.htm&tipo=EN. Acesso em: 11 jun. 2023.

JUNQUEIRA, Ivan (1990). O que dizem as aves? In: JOHNS, Per (1990). As aves de Cassandra. Rio de Janeiro: José Olympio. p. XII-XIX.

TONUS, Leonardo (2012). O relato da [des]afiliação e o romance brasileiro da década de 1980. Iberic@l, n. 2, p. 87-95. Disponível em: https://hal.science/hal-04071139v1/document. Acesso em: 11 jun. 2023.

TONUS, Leonardo (2021). As aves de Cassandra de Per Johns: uma ficcionalização bastarda. Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 13, n. 25, p. 119-34. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/flbc/article/view/46140/25768. Acesso em: 11 jun. 2023.

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Como citar:

RODRIGUES, André Luiz dos Santos.
As aves de Cassandra.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

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literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

30 set. 2024.

Disponível em:

2603.

Acessado em:

19 maio. 2025.