PANTOJA, Edilson. Albergue noturno. Belém: IAP, 2005.
Edmon Neto
Ilustração: Francisco Dalcastagnè Miguel
Uma das maneiras de se pensar a ficção brasileira contemporânea é partir do critério que lança luz sobre uma das heranças modernas do narrar: perceber como os escritores lidam com a ideia cristalizada de gêneros literários. Das tendências observadas pelos críticos em relação ao romance, uma delas elabora o seu discurso a partir da fusão entre natureza linguística e finalidade, características inerentes a certos textos tantas vezes reduzidos a categorias estanques. Essa é uma das inquietações formais presentes na leitura de Albergue noturno, romance de estreia publicado em 2005 pelo escritor e filósofo Edilson Pantoja (Belém, PA, 1968), e com o qual foi vencedor do Prêmio do Instituto de Artes do Pará no mesmo ano. Pantoja elabora um trabalho em que a tradição da literatura ocidental estabelece franco diálogo com a filosofia e, em muitos momentos, deixa o discurso filosófico entranhar as soluções literárias.
Albergue noturno é um romance composto por 36 capítulos curtos, que aparentemente funcionam como uma espécie de móbile ou conjunto de contos autônomos. Isso permitiria que a leitura ocorresse de forma fragmentada, sem perda substancial de sentido, embora ao longo da história seja perceptível a existência de uma teia intrincada de relações entre os elementos da narrativa e, por extensão, entre os capítulos. O protagonista e narrador em primeira pessoa é Lutero Dias, um médico que abandonou a profissão vinculada à ciência empírica e, no presente ficcional, torna-se discípulo do filósofo grego Epicuro (século IV a.C.), cuja doutrina tem como meta a moderação e a plenitude de viver. Autodeclarado cultivador de enigmas e ideias fixas, Lutero Dias passa a procurá-los, catalogá-los e organizá-los dentro do que ele chama de “arquivo de incômodos”, tendo que aprender a lidar com a vontade de atingir a condição epicurista da ataraxia, ou “imperturbabilidade do espírito”.
Para sustentar a sua íntima pesquisa, o doutor conta com uma herança do avô cuja condicionante, ironicamente, condena o hedonista (aquele que teria a “chave da vida feliz”) ao celibato. Porém, diante das interdições amorosas, o hedonismo do narrador, embora desejoso, restringe-se a prazeres fortuitos e a delírios dionisíacos quase sempre solitários. E se a aversão ao barulho da multidão talvez ajudasse aquele homem a alcançar a tranquilidade almejada para o seu ânimo, o aglomerado de gente passa a antagonizar o enredo de Lutero Dias, que possui, como marca do insólito, uma cauda frequentemente ferida. Essa condição da personagem afeta a construção de sua subjetividade, pois faz parte da dificuldade de estabelecer interlocução com outras pessoas. Ora o secretário que pensa ser o chefe um asceta, ora a vizinha presumidamente psicóloga e por quem o médico nutre uma fixação muda, poucos seres humanos cruzam o cotidiano desse homem solitário, gênio autodeclarado, morador de um albergue na Praça da República, em Belém do Pará.
Sempre às voltas com reflexões aparentemente monológicas e autocentradas, Lutero Dias conversa com um “velho companheiro”, o cão protetor e dos “poucos íntimos” que saberiam de uma suposta missão a ser cumprida pelo médico. Ancião “esforçado em manter-se fiel” ao dono, de cujas dores da cauda ferida também é servil cuidador, esse animal, que um dia soubera falar, é uma espécie de cúmplice das incursões metafísicas de Lutero. Com o cão, o narrador parte das perguntas ancestrais (“O que é o mundo?”) e chega às formulações que ainda podem ser feitas sobre a origem e o fim de todas as coisas, tudo isso sendo também o meio pelo qual a história é contada. Nesse sentido, o “maldito gosto pela metafísica” impõe perguntas sobre as explosões cósmicas, o big-bang, a consequente “ocultação do télos que a tudo conduz”. E mesmo que seja importante manter a atenção em outras personagens, como a aranha esotérica e dogmática, além do macaco exageradamente expansivo (ambos construídos de modo estratégico), o destino do protagonista não pode ser dissociado do velho cão e da multidão louca.
Possuído pelo medo e incumbido da difícil tarefa de manter o espírito imperturbável, Lutero Dias vê a situação de sua cauda agravar, e é nesse momento que se percebe uma transformação na arquitetura narrativa de Edilson Pantoja. Mesmo que o texto forneça pistas, crie links, sugira a ocorrência de eventos futuros e antecipe determinadas informações, a aparição das Moiras (fiandeiras da mitologia grega), que tentam tranquilizar o narrador sobre sua condição, é evidência de que se começa a traçar uma peripécia na história. Surge, então, a figura de um outro conhecido antigo, conterrâneo de Lutero Dias, “amigo sussurrante” que, no passado, teria morado à beira do rio, numa toca com seus parentes. Os sinais desse antigo companheiro eram percebidos pelo cheiro putrefato exalado de seu corpo, tendo em vista que ele ganha forma de um verme descrito como sofista e antropófago, que um dia fora idealista e agora se tornara mercenário. Marcado por tantos adjetivos, esse personagem, entretanto, é responsável por convidar o protagonista para uma jornada pelo subterrâneo, afinal, segundo o verme, “ninguém que viu apenas um lado do mundo pode dizer conhecê-lo por inteiro”.
E se a presença de uma cauda em Lutero Dias sugere a possibilidade de metamorfose, é na sua perda que a narrativa tem o seu momento decisivo. Após sinalizar que as muitas perguntas feitas sobre o seu estado poderiam levar à decepção, o médico aceita o convite para ver o mundo por dentro e ter o “abismo como resposta”, passando a enxergar no escuro. O passeio pelo subterrâneo e pelas repartições da morte é o clímax da narrativa, que alude e reelabora explicitamente uma série de referências da literatura e da filosofia ocidentais, como a alegoria platônica da caverna, a épica de Homero, Dom Quixote e, de modo mais evidente, A divina comédia. O verme e o médico (e também o cão) são espécies de Dante e Virgílio que, ao chegarem à porta do inferno, veem escrito: “Deixai toda esperança, ó vós que entrais”. Aqui, personagens épicos ganham contornos trágicos numa jornada cujo objetivo se relaciona com a libertação de um “simulacro verdadeiro”, ligado a princípios da ficção que teriam sido aprisionados pela ação dos homens.
O protagonista, por isso, participa de intrigas que o tempo inteiro irão colocar em xeque as certezas eventualmente instauradas ao longo dos capítulos. No desfecho, personagens voltam reconfiguradas, solucionando alguns mistérios, instaurando muitas outras perguntas. Para tanto, um dos recursos técnicos criados em Albergue noturno é a construção de personagens fugidios, como a vizinha, o secretário e os animais (mosca, macaco, aranha, cão e verme), cuja relação insólita e fabular com o homem sustenta a posição deste apartado da sociedade, que, em algum momento, fará ruir o espaço da narrativa por meio da elaboração de seu pensamento. Não se sabe se um dia o epicurismo de Dr. Lutero Dias o conciliará com a multidão barulhenta, ou melhor, se a perda de sua cauda o obrigará a isso, a exemplo do que ocorre em um poema em prosa do francês Charles Baudelaire (Paris, 1821 – Paris, 1867), em que a perda da auréola do poeta romântico o obriga a voltar para o convívio da sociedade.
Enxergar o outro lado é, contudo, o doce delírio que se testemunha em Albergue noturno. Talvez a escolha de Edilson Pantoja pela epígrafe de Assim falou Zaratustra, de Nietzsche, pode indicar a predileção por uma obra que até hoje é um mistério ante o ímpeto de qualquer rótulo classificatório. O recorte que diz “algum veneno uma vez por outra é coisa que proporciona agradáveis sonhos. E muitos venenos no fim para morrer agradavelmente” prenuncia o flerte entre vida e morte, presente na criação de um “lugar transfronteiriço” em que albergue e inferno são uma coisa só.
Para saber mais
BORGES, Rudinei. Edilson Pantoja – Entre(vista). Disponível em: https://alzirarevista.wordpress.com/2014/05/06/edilson-pantoja-entrevista/. Acesso em: 20 jul. 2023.
PANTOJA, Edilson. Albergue noturno. Filosofia é Literatura! E Vice e asreV! Disponível em: http://alberguenoturno.blogspot.com/. Acesso em: 28 jul. 2023.
Iconografia