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A verdadeira estória de Jesus

SOLHA, Waldemar José. A verdadeira estória de Jesus. São Paulo: Ática, 1979.

Carolina Coutinho Moreno
Ilustração: Marlova Aseff

Nascido em Sorocaba, Waldemar José Solha (Sorocaba, SP, 1941) radicou-se em João Pessoa em 1962, depois de ter se mudado para o município de Pombal aos 21 anos para trabalhar em uma agência do Banco do Brasil. Nessa cidade, conta ter passado por uma transformação ao entrar em contato com a produção teatral e literária de um local culturalmente aquecido. A predileção pela experimentação parece ser uma particularidade do autor, que, prolífico e múltiplo, também é artista plástico, participou de filmes como produtor, roteirista e ator, montou peças teatrais, além de trabalhar em parceria com compositores em músicas e orquestras sinfônicas. Mesmo sua produção como escritor é diversa, contando com romances, contos, ensaios, poemas, libretos, peças e roteiros cinematográficos. Seu passeio por diversas formas e modalidades artísticas revela um gosto por cruzamentos que está presente na própria composição de suas obras, o que aponta para um investimento na indeterminação de gêneros que ainda hoje continua a desafiar a crítica literária.

A verdadeira estória de Jesus, publicado em 1979, é um romance repleto de apropriações de fontes heterogêneas, flertando com o experimentalismo. Literatura, história e religião se encontram e se misturam com elementos da cultura popular em uma narrativa entrecortada por outros textos e discursos – histórias em quadrinhos, contos de fada, referências do cinema e da televisão.

Já no inusitado título tem-se o mote principal do tom irônico e dessacralizador que a narrativa assume. A opção pela grafia “estória” questiona a confiança na História e a credibilidade dos fatos, sugerindo que o que se toma como verdade está mais próximo da construção narrativa, das fábulas e dos contos populares. A Academia Brasileira de Letras, no Dicionário Escolar da Língua Portuguesa (2008), considera a palavra “estória” um arcaísmo, talvez um legado de quando essa distinção era menos fluida, menos incômoda, e estabelece a preferência por “história”, capaz de aglutinar tanto as narrativas ou relatos de fatos reais como também os de ficção. Mas é justamente nesse conflito entre fato e invenção que a “verdadeira estória” de Solha se insere.

O cenário principal do romance é o palco de um teatro grego, onde Lucas, Marcos, João e Mateus se reúnem para discutir a necessidade de um salvador para libertar o seu povo e o seu tempo. Lucas então propõe a solução para os problemas de todos: ela está nas fábulas e nos mitos que oferecem sentido à experiência humana. A grandiosidade da tarefa de criar um salvador é intimidante, e certamente controversa, mas o desespero do momento também é inegável. O argumento de Lucas para a fabricação de um herói é que, como artistas, os quatro devem agir como intermediários divinos, na sua condição de espelhos feitos à imagem e semelhança de Deus, e atuar na “re-criação” desse grande Messias como uma obra de arte para ser construída e talhada para sua posterior assimilação pela história, ainda que seja um produto da estória, pois isso é o que garantirá sua efetividade.

Assim, eles debatem suas ideias e conceitos e, ao ritmo das constelações do zodíaco, produzem o grande herói a partir dos episódios de nascimento, batismo, provações, crucificação, morte e ressurreição, de modo que ele abarque a própria humanidade e o mundo, e seja o “Homem-síntese” engrenado na “máquina da Estória”. Para realizar tal façanha, as fontes de inspiração dos quatro apóstolos-personagens serão múltiplas e ecléticas: contos de fadas, como Branca de Neve; personagens das histórias em quadrinhos, como Super-Homem e Flash Gordon; personagens religiosos, como Sidarta e Zoroastro; e também mitos gregos, como o de Prometeu. Desse amálgama surge o salvador, na forma de um “acúmulo de ficções”, uma “cópia de tantos e tantos outros”: se tantos heróis são nascidos de virgens, o mesmo deve acontecer com Cristo; como nos outros mitos solares, Jesus deve ser gêmeo (de Barrabás); a data de seu aniversário também é dividida com Hórus, divindade egípcia dos céus e dos vivos.

Esse processo de dessacralização da figura de Jesus Cristo não busca apenas a desconstrução dos discursos religioso ou mesmo histórico, mas atinge também certa ideia do que é a literatura, já que a narrativa não só dialoga com as muitas imagens coladas ao texto, como também se vale de uma costura de apropriações que lembram o mecanismo, hoje tão banal, da prática do “recorte e cole”. Assim, o leitor lê uma espécie de curadoria das várias tradições e práticas culturais em fusão com os novos ícones da cultura de massas, já que o romance é escrito no contexto do crescimento dos meios de comunicação e da pop art. Tipograficamente, também há “estranhezas” na obra: alguns trechos são destacados do corpo do texto, abundam as letras maiúsculas e as reproduções de histórias em quadrinhos, pinturas, fotografias e reportagens. A própria capa do livro adapta a cena da origem do Super-Homem e mostra Jesus Cristo revelando o grande “J” no seu peito por baixo de suas roupas, sobreposto a cenas de outros heróis em combate.

Escrita ainda no regime ditatorial, mas no horizonte da democratização, a narrativa A verdadeira estória de Jesus vale-se da anacronia para fazer uma crítica velada ao momento histórico em que o livro foi publicado. Na obra, as distintas versões de Jesus proferem discursos em meio aos cliques das câmeras de revistas e emissoras de televisão, ao mesmo tempo que caças do Império Romano sobrevoam e lançam bombas na conquista de Jerusalém. Esses recursos podem ser interpretados como um modo de W. J. Solha criticar subliminarmente o momento político do Brasil do final dos anos 1970, que ainda aguardava a reabertura democrática: “Falamos em salvação. Mas salvação como, de que jeito? Escapar de quê? Sal-va-ção quando?”.

Os anos finais da longa ditadura foram marcados por grandes transformações políticas, sociais e culturais: um tempo de transição para uma desejada nova ordem social. A utilização e o diálogo da obra com gêneros e discursos considerados menores, mas que começavam a ganhar espaço no cotidiano brasileiro do final da década de 1970, indiciam um modo de a sociedade se relacionar com a cultura de novas maneiras. Em uma sociedade que desejava redesenhar seus contornos, Solha investe no humor, na sátira, na crítica, na apropriação de fontes que mesclam tradição e cultura de massa para criar uma forma literária inovadora e que permanece atual.

Para saber mais

ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS (2008). Dicionário escolar da Língua Portuguesa. São Paulo: Companhia Editora Nacional.

SOLHA, W.J. (1986). A verdadeira estória de Jesus. Espetáculo do Grupo Bigorna. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=G12E1mFdGOg. Acesso em: 20 jan. 2023.

FIGUEIREDO, Arizângela (2008). O teatro planetário de A verdadeira estória de Jesus: a apropriação do imaginário sociocultural dos anos 1970 por W. J. Solha. Dissertação (Mestrado em Estudo de Linguagens) – Universidade do Estado da Bahia, Salvador.

Iconografia

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Como citar:

MORENO, Carolina Coutinho.
A verdadeira estória de Jesus.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

30 set. 2024.

Disponível em:

2589.

Acessado em:

19 maio. 2025.