FUKS, Julián. A ocupação. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Leila Lehnen
Ilustração: Léo Tavares
Como escrever sobre as ruínas? Como ocupar – com palavras – as ruínas? Como reconstruir o sentido face às ruínas? O romance de Julián Fuks (São Paulo, SP, 1981) A ocupação abre com uma mise en abyme das ruínas: humanas, urbanas, da linguagem. O livro começa com o narrador que passeia pela cidade com a companheira e se depara com a “ruína de homem” em uma metrópole onde as calçadas esburacadas e as vidas precarizadas se confundem em círculos concêntricos de exclusão e violência. Em meio a essa proliferação de escombros, a palavra falha.
Resgatar o sentido dos escombros que se delineiam nas primeiras frases do livro, criar novos sentidos em um presente no qual o significado de palavras como “utopia,” “democracia” e “verdade” se perdem nos escombros da política e da sociabilidade é um dos fios que costuram a narrativa do livro de Fuks. O autor – que, ao longo do texto, se confunde com o narrador do livro – reconhece como esta tentativa de “escrever um livro sobre esta interminável ruína que nos cerca” é um gesto paradoxal. Por um lado, o empreendimento não consegue fazer justiça à desapropriação, à dor que o texto tenta abarcar (afinal de contas, como aponta o autor, ele escreve sobre o “desalento” “protegido por paredes firmes”). No entanto, por outro lado, a literatura é uma forma de proteção contra a ruína, um talismã que salvaguarda contra o sem sentido que se traça no emaranhado de vidas invisibilizadas, seres exilados, sujeitos em fuga. A literatura e, neste caso, especificamente o romance de Fuks, parafraseando as palavras do escritor moçambicano Mia Couto incluídas de forma epistolar no texto, nos indica formas de renovação, preservando a esperança mesmo em tempos de ruína. Esta esperança se configura como um exercício de escuta do outro, de uma empatia que não é piedade. A esperança da literatura é o reconhecimento do outro.
Publicado em 2019, A ocupação foi concebida durante uma residência artística de Fuks no Hotel Cambridge e teve a mentoria de Mia Couto através do programa Rolex Arts Initiative. A relação dos dois escritores se faz explicitamente presente no romance em duas cartas, uma redigida por Fuks a Couto (capítulo 35), outra que é a resposta deste à missiva do interlocutor brasileiro (capítulo 39). A voz de Couto é uma das muitas que ocupam o texto de Fuks, transformando-o em um artefato polifônico.
Narrado principalmente em primeira pessoa, A ocupação se organiza em 41 capítulos curtos que giram ao redor de três eixos temáticos principais. O narrador, Sebastián, lida com a proximidade da morte do pai ao mesmo tempo que se depara com a possibilidade de se tornar pai. Sebastián também relata sua vivência com os moradores da ocupação do que outrora foi o Hotel Cambridge, no centro de São Paulo. A partir desses três focos, o romance tece uma discussão sobre o Brasil em um momento de “retrocesso, de repressão, de perda de direitos”. O romance não especifica uma data, mas há várias referências que sinalizam uma temporalidade pós-2018. A cronologia, ao mesmo tempo específica e vaga – o retrocesso mencionado na narrativa pode ter ocorrido antes de 2018 ou pode ter continuado depois dessa data (como de fato aconteceu) –, nos permite entender o esfacelamento da política e da cidadania não como um evento pontual, mas como uma reiteração de práticas sociais e culturais arraigadas.
O que lemos é a tentativa do narrador, Sebastián, de entender o retrocesso – e as estratégias de resistência – através da linguagem. A metatemática do romance é, portanto, o papel da literatura em expressar não somente a própria vivência, mas também a experiência das outras pessoas. Segundo o autor, cuja voz assoma no capítulo 35 sob a forma da supracitada carta a Mia Couto, seu objetivo é “deixar que me ocupem, que ocupem a minha escrita: uma literatura ocupada é o que posso fazer neste momento”. Em entrevista a Paula de Carvalho para a Quatro Cinco Um em dezembro de 2019, Fuks explicou o significado de uma literatura ocupada como sendo uma textualidade vinculada ao presente, uma literatura envolvida com os espaços públicos, com as vozes dos outros.
A ocupação à qual o título se refere e que o romance almeja enquanto metodologia tem sentidos múltiplos. A reiteração, ainda que não repetição das ocupações confere uma estrutura espiral ao livro. Há frases, pensamentos, tópicos que ressurgem, evocando inclusive outras obras de Fuks, em particular seu romance A resistência (2015), que se faz sombra do texto que lemos, ocupando-o de certa forma.
Trata-se não somente da ocupação física de edifícios abandonados por pessoas necessitadas de moradia em uma das cidades mais caras da América do Sul. O romance também lida com a ocupação do corpo materno durante a gravidez, a ocupação do imaginário por um futuro filho e um futuro livro, a ocupação do corpo vivo pela morte inevitável. Finalmente, a própria narrativa é ocupada pelas vozes de diferentes moradores das ocupações com quem Sebastián conversa: Najati, o refugiado sírio que oferece um envelope com o relato de sua vida em Homs ao narrador; Rosa, que foge de uma infestação de ratos e que, em vez de ser ocupada, quer ocupar; Gínia, a haitiana que deixa o seu país após o terremoto de 2010 em que perde a filha e que, ao mesmo tempo que relata sua perda inarrável sobre “a cidade [que] se fez um cemitério desabrido”, pede a Sebastián que “ponha algo mais que a dor, algo mais que a desgraça, se quiser escrever algo que valha a pena”. Por fim, Preta e Dona Carmen, mulheres cujas palavras reverberam entre as paredes do Hotel Cambridge e de outras ocupações, cujas palavras soam entre as linhas do romance de Fuks, que sabem da vitalidade da resistência, apesar da violência que sofrem por serem mulheres, por serem negras, por não se calarem.
No entanto, não se deve ler A ocupação como um mero palimpsesto ou uma simples tentativa de dar voz a outras pessoas por meio do texto literário. Fuks constrói uma narrativa que nos ocupa enquanto obra política e um texto que transcende a política do momento. O livro apresenta uma reflexão, um recordatório do que deve e pode a literatura como forma de compreender o mundo, nosso lugar e o lugar de outras pessoas no mundo e ante nós próprios. A ocupação é antes de tudo também um exercício de criar um mundo onde haja espaço tanto para nós quanto para outras/os/es.
Para saber mais
CARREIRA, Shirley de Souza Gomes (2019). O fora é sempre o outro: espaço e alteridade em A ocupação, de Julián Fuks. E-escrita: Revista do curso de Letras da Uniabeu, v. 10, n. 3, p. 87-98. Disponível em: https://revista.uniabeu.edu.br/index.php/RE/article/view/3814/pdf. Acesso em: 22 dez. 2023.
CARVALHO, Paula de (2016). Fichamento: Julián Fuks. O autor de A ocupação oferece estratégias de como ocupar uma terra sonâmbula. Quatro Cinco Um, 6 dez. Disponível em: https://quatrocincoum.com.br/noticias/literatura/fichamento-julian-fuks/. Acesso em: 22 dez. 2023.
COELHO, Lilian Reichert (2021). Era Najati que me buscava nas páginas: o eu e o outro em A ocupação, de Julián Fuks. Nau Literária, dossiê “O estrangeiro na literatura contemporânea: corporeidades”, v. 17, n. 3, p. 54-74. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/NauLiteraria/article/view/114139. Acesso em: 22 dez. 2023.
CONCEIÇÃO, Luciano Martins da; PINHEIRO NETO, José Elias (2022). Espaços de transmissão intercultural em A ocupação, de Julián Fuks. Revista de Estudos de Literatura, Cultura e Alteridade – Igarapé, v. 15, n. 1, p. 50-62. Disponível em: https://periodicos.unir.br/index.php/igarape/article/view/6819. Acesso em: 22 dez. 2023.
MORAES, Paulo Eduardo Benites de (2020). Da sobrevivência das imagens como fantasma: uma leitura de A ocupação, de Julián Fuks. Gragoatá, v. 25, n. 53, p. 1111–1130. Disponível em: https://periodicos.uff.br/gragoata/article/view/42950/26974. Acesso em: 22 dez. 2023.
SILVA, Sandra Augusto (2022). A ocupação (2019), de Julián Fuks: uma prosa poética de corpos em exílio. Claraboia, v. 18, p. 135-145. Disponível em: https://seer.uenp.edu.br/index.php/claraboia/article/view/244. Acesso em: 22 dez. 2023.
Iconografia