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A majestade do Xingu

SCLIAR, Moacyr. A majestade do Xingu. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

Allysson Casais

Ilustração: Pamela Araújo

Ao se tratar da experiência do imigrante no novo país, há pelo menos duas visões predominantes. Por um lado, aborda-se a dor da adaptação e a impossibilidade de entender o outro. A diferença é considerada algo irreconciliável. O imigrante nunca será compreendido por completo por aqueles que o veem como estrangeiro. Do outro lado, há uma perspectiva mais otimista, que acredita na possibilidade de iniciar uma vida nova. O sofrimento do imigrante, nesse caso, não impede a crença na coexistência com a alteridade.

Tal distinção está no cerne de A majestade do Xingu, romance de Moacyr Scliar (Porto Alegre, RS, 1937 − Porto Alegre, RS, 2011), publicado originalmente em 1997. Filho de imigrantes judeus, Scliar frequentemente abordava o tema da presença judaica no Brasil. Além desse romance, pode-se citar O centauro no jardim (1980), A estranha nação de Rafael Mendes (1983), Cenas da vida minúscula (1991), Na noite do ventre, o diamante (2005), entre outros. Na obra de 1997, entretanto, o autor também tratou de outro importante aspecto de sua vida: a medicina. Médico formado, Scliar atuou como especialista em saúde pública. Na literatura, o autor venceu, entre outros, o Prêmio Jabuti, o Prêmio José Lins do Rego e o Prêmio ABL de Poesia – produção como escritor.

A majestade do Xingu narra a história de dois jovens judeus vindos da Rússia para o Brasil. O primeiro é Noel Nutels, médico sanitarista que viveu no país e se dedicou ao trabalho com indígenas na região do Xingu. A construção desse personagem é inspirada em fatos reais. Já o segundo, o narrador do romance, é proprietário de uma pequena loja em São Paulo. Os dois personagens estabeleceram contato quando, ainda crianças, migraram juntos para o Brasil. A obra, assim, aborda a dificuldade do deslocamento daquele que foge da violência, da guerra e da fome. Esse tema torna o romance atual ao se considerar os movimentos migratórios que marcam o cenário contemporâneo.

Acompanhado pela mãe e tia, o Noel Nutels da vida real chegou ao Brasil em agosto de 1922. O pai já morava no país e atuava como comerciante no interior de Alagoas. Em um breve relato autobiográfico no livro Noel Nutels: memórias e depoimentos, o sanitarista discorreu sobre o primeiro contato com o Brasil. Nutels sublinhou não só como o país representava um paraíso livre da violência sofrida na Rússia, mas também o estranhamento inicial com a cultura brasileira. O Nutels plasmado por Scliar em A majestade do Xingu é fiel a parte dessa experiência. O personagem também chegou ao Brasil com a mãe para reencontrar o pai, que já havia se estabelecido no país. No entanto, foi na tematização da aflição sofrida pelo imigrante que o Nutels romanceado divergiu do autobiográfico. Ao contrário do relatado no texto autoral do sanitarista, o personagem de Scliar adaptou-se quase instantaneamente ao Brasil: “Como Noel podia estar conversando com os garotos brasileiros, se não falava português? Pois é. Mas o fato é que estava, sim, conversando. Naqueles poucos minutos já tinha aprendido algumas palavras e o resto completava com mímica”.

A linguagem, frequentemente tematizada como uma barreira em narrativas de imigrantes, não foi problema para o Nutels ficcionalizado. O menino judeu formou laços com crianças brasileiras ainda no porto, pouco tempo após a chegada. Sua língua se adaptou ao estrangeirismo do português, e o que não aprendeu de imediato foi suprido pela mímica. Não havia nenhum entrave na comunicação, na formação de amizades ou na adaptação ao novo país. Assim, o sofrimento passado foi esquecido junto com qualquer elo formado com o narrador durante a viagem. O foco está no presente e na promessa de uma vida melhor no país edênico, com seu céu azul e suas casas vivas.

Se Nutels se assimilou ao novo país sem dificuldade, o mesmo não ocorreu com o narrador. O mote do livro foram as distintas experiências de adaptação entre os dois meninos judeus. Internado na UTI de um hospital, à beira da morte, o personagem conta ao médico sobre sua vida e relação com Noel Nutels. O sanitarista foi representado no romance a partir de sua ausência. A amizade formada entre os dois meninos no vapor se desvaneceu após o desembarque no Brasil. Sem contato direto, o narrador acompanhou a vida do antigo amigo à distância, por meio de notícias nos jornais. Enquanto Nutels se agregava ao Brasil, tornando-se importante figura na vida cultural do país, o narrador permaneceu fechado na loja do Bom Retiro.

A reclusão do personagem tornou-se marca de seu estrangeirismo. A língua, em específico, serviu para evidenciar a diferença entre ele e Noel. “Envergonhava-me inclusive o sotaque que, diferente de Noel (…) conservei para sempre”. Com a língua caracterizada pelo sotaque, a leitura transformou-se em refúgio. “E lia sempre em português. Isso para mim era questão de honra. Eu queria não apenas aprender o idioma, queria dominá-lo por completo, conhecer essas palavras misteriosas, de significado intrigante, palavras que servem de código para as pessoas cultas”. Se, ainda no porto, Nutels já conseguia se comunicar com brasileiros sem vacilos, o mesmo não podia ser dito sobre o narrador. Para ele, a aprendizagem da nova língua foi definida por tropeços e gaguejos. Nesse sentido, o sotaque foi motivo de vergonha por denunciar a diferença.

A estratégia de integração pela leitura e domínio lexical, contudo, falhou. Língua e cultura são mais do que o agrupamento de palavras. A aprendizagem da língua pelos livros não equivale à vivência entre as pessoas experienciada por Nutels. Assim, o personagem percebeu que “Noel e Samuel já eram brasileiros autênticos; eu de certa maneira continuava, morando no shtetl, ainda que falasse português, ainda que soubesse a diferença entre peculato e piorreia. Eles se moviam com facilidade entre os góim; eu continuava olhando com desconfiança até mesmo os fregueses que entravam na loja”.

O narrador está fora do lugar no Brasil. A leitura não possibilitou a integração na cultura do novo país, fazendo com que ele sempre ocupasse o lugar de estrangeiro. O personagem de Nutels frisou a possibilidade de o imigrante pertencer e de a diferença ser compreendida. Conviver com a alteridade foi possível. O narrador, por outro lado, mostrou como a diferença pode ser irreconciliável. A coexistência com o outro nem sempre foi possível sem desconfiança.

Nesse sentido, a relação de Nutels com os indígenas e com a terra foi o maior símbolo de sua adaptação. Tornados estrangeiros no próprio território, os indígenas são representados como uma alteridade radical no romance. No Brasil ficcionalizado por Scliar, a figura do indígena foi a que gerou maior estranhamento. Dessa maneira, a aproximação de Nutels – um judeu oriundo da Rússia – com os indígenas do Xingu gerou espanto na narrativa, mas demonstrou como divergências culturais não impediram a coexistência com a alteridade. A compreensão do outro foi sempre possível. Foi o narrador que, novamente, se afastou dessa premissa. Para ele, os indígenas eram motivo de repulsa. Seu preconceito e aversão foram nítidos ao longo do livro, em especial quando passou a endereçá-los a Nutels diretamente na narrativa – “bugre, eu disse, e vou repetir, de bugre, de bugre, que me importa que a palavra seja ofensiva, foda-se quem se ofende, este mundo não foi feito para os delicados, para os seres inefáveis, este mundo foi feito para quem enfia cano de plástico na terra”.

O narrador demonstrou estar sempre desconfortável perante a diferença. Na loja, os fregueses góim eram motivos de desconfiança. Na sua narrativa sobre Nutels, os indígenas eram repulsivos. Assim, não havia coexistência e integração possível para o personagem. Desse modo, foi simbólico seu sonho ao final do romance sobre um cossaco – “pisou em meu peito com a bota, e estava me esmagando, e se ao menos eu afundasse na terra, na generosa terra brasileira, se ao menos eu sumisse terra adentro, mas não, a terra resistia, teimosa”. A não integração no Brasil significou que o narrador ainda estava ligado ao passado violento na Rússia. E foi justamente a falta de acolhimento na nova terra que possibilitou o medo desse passado.

Os dois personagens centrais de A majestade do Xingu representam a complexidade da experiência migratória. Marcada pela dor, ela não impede a possibilidade de coexistência com o outro. O pertencimento ao novo país é possível por meio do entendimento da alteridade. Entretanto, a diferença nem sempre é respeitada. Nesse sentido, o máximo que se pode fazer é tolerar − verbo que esconde sua violência − o outro. Retornando ao sonho do narrador, ou se afunda na terra nova ou se é rejeitado por ela.

Para saber mais

DAFLON, Claudete (2016). Em meiga argila brasileira. In: CHIARELLI, Stefania; NETO, Godofredo de Oliveira. Falando com estranhos: o estrangeiro e a literatura brasileira. Rio de Janeiro: 7Letras. p. 222-235.

FISCHER, Luis Augusto (2004). A majestade do Xingu. In: ZILBERMAN, Regina; BERND, Zilá (Orgs.). O viajante transcultural: leituras da obra de Moacyr Scliar. Porto Alegre: EDIPUCRS. p. 121-134.

WALDMAN, Berta (2003). Xingu, um Bom Retiro. In: WALDMAN, Berta. Entre passos e rastros: presença judaica na literatura brasileira contemporânea. São Paulo: FAPESP. p. 106-113.

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Como citar:

CASAIS, Allysson.
A majestade do Xingu.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

30 set. 2024.

Disponível em:

2578.

Acessado em:

19 maio. 2025.