Ir para o conteúdo

A cidade inexistente

REZENDE JR., José. A cidade inexistente. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2019.

Ana Paula Gonçalves de Oliveira

Ilustração: Espírito Objeto

Uma cidade condenada ao afogamento para a construção de uma hidrelétrica, um velho e um cão que insistem em não arredar os pés e as patas, os impasses que os moradores enfrentam ao se verem obrigados a deixar seus lares e se mudarem para uma cidade nova, que é replica da velha, mas totalmente diferente, são os temas de A cidade inexistente, publicado em 2019. A obra é o primeiro romance de José Rezende Jr. (Aimorés, MG, 1959), jornalista e escritor mineiro radicado em Brasília, que ficou conhecido no cenário literário como contista ao ganhar o prêmio Jabuti em 2010, na categoria de contos e crônicas, pelo livro Eu perguntei pro velho se ele queria morrer (e outras estórias de amor). Também é autor de A mulher-gorila e outros demônios, Estórias mínimas, Os vivos e os mortos e do infantojuvenil Fábula urbana.

Nesse romance, em que a qualquer momento a cidade será transformada em água, o protagonista, um idoso acompanhado de seu cachorro, insiste em se manter na cidade e na casa que abrigou quatro gerações de sua família. As figuras da velhice, do humano e do cachorro, costumeiramente associadas à fragilidade física, operam como um símbolo de resistência com seus corpos que, apesar de desgastados e frágeis, têm um pacto indizível entre si de que ali é onde devem continuar, de que a saída é inegociável. Por isso são vistos pelo governo como foco subversivo ao insistirem em manter-se ocupando a cidade condenada à morte por afogamento, assim como tudo o que se mantiver no caminho.

Os outros cidadãos, retirantes que não fogem da seca, e sim da água, esboçam pequenas reações de enfrentamento (ou as imaginam), mas o governo usa diferentes modos de coagi-los, por meio de indenizações e burocracias engenhosamente ajustadas para enganar pelas vias legais e, claro, pela violência da força policial. O que separa a cidade da tragédia do afogamento é apenas um botão que está nas mãos do governador que ali jamais pisou e que, de longe, da capital, pode, a qualquer momento, apertá-lo, abrindo as comportas da hidrelétrica e inundando tudo.

Capítulos curtos constroem a obra, que alterna entre um narrador onisciente e um narrador-personagem, o menino, neto do velho e ex-dono do cão, que assume a voz narrativa em alguns momentos pontuais, esclarecendo detalhes de um tempo posterior e deslocado. É assim que vão se entrelaçando as múltiplas histórias. Entre elas, aparecem figuras comuns que existem em quase todas as cidades, como o louco que fala bobagens, mas que às vezes tem razão em suas sandices; o padre que sacrifica seu corpo em jejum, pedindo intervenção divina em prol da salvação da cidade; o circo itinerante, que vem de tempos em tempos entreter o marasmo do interior; uma família de pessoas pequeninas; e até os mitos típicos que assustam crianças travessas, como o da cabra cabriola, criatura metade cabra, metade monstro que bota fogo pelas fuças e pelo traseiro.

Ao mesmo tempo que tais figuras corriqueiras compõem a cidade, o autor explora algumas minúcias doloridas, que costumam ser mantidas em segredo, mas que constituem as vidas e sustentam as fofocas de quase toda cidade interiorana. É o caso, por exemplo, do advogado que é chantageado pelo prefeito, suicida-se e deixa sua noiva esperando no altar. Ela, por sua vez, transforma-se em viúva suicida e fantasma. Há também o padre, que, apesar de devoto, mantém um caso secreto; e a boate da luz vermelha, que, na noite de despedida da cidade, transforma-se em cenário de estupro de uma mulher prostituta. Tais episódios engendram tramas interligadas que ilustram segredos e brutalidades típicos de uma sociedade brasileira adoecida, corrompida e tomada de hipocrisia.

As personagens femininas parecem ser o ponto de fragilidade da obra, já que, apesar de interessantes, deslizam em narrativas que estão sempre atreladas a sofrimento, exploração sexual, cenas de erotização ou projeções do imaginário masculino. É esse o caso da noiva que sofre a tragédia do abandono e tem um final trágico; da prostituta que sofre um estupro coletivo e que se mantém na narrativa cumprindo apenas a função de objeto sexual do velho; ou de Ludmila, que aparece como uma talentosa trapezista de circo, mas logo se converte em mera figura de enamoramento de jovens garotos das cidades pelas quais passa. Essas personagens femininas aparecem constantemente de modo acessório, já que suas existências não são autônomas e só são justificadas na narrativa se atreladas aos personagens masculinos. Estes últimos são o centro da obra, em torno do qual giram o desejo, a paixão, a violência ou a tragédia das personagens femininas.

Por outro lado, uma das forças do romance está na mescla de aspectos realísticos e cotidianos, com toques fantásticos que, pouco a pouco, vão ganhando espaço. Um exemplo é a história dos viajantes, uma mulher e um homem que sonham um com o outro e, de modo trivial, se encontram na estação de trem. Eles avistam a cidade inundada, decidem desbravá-la e, no desenrolar da narrativa, passam por uma espécie de metamorfose, transformando-se em criaturas bestiais que povoam, navegam e comem os restos mortais que sobraram na cidade que se tornara um lago. O autor é capaz de fazer essa transição com maestria, de modo que o(a) leitor(a) embarca com naturalidade e surpresa nos aspectos inesperados da obra.

Embora seja possível copiar quase toda a estrutura da cidade, replicando até mesmo as teias de aranha, o mofo, as pinturas velhas das casas e outros detalhes compositivos, há uma aura de autenticidade que não é passível de cópia. Os afetos, os cheiros, os sons dos bichos, tudo se altera e não reaparece na nova cidade, que quer ser igual à velha, mas não é. A gravação do canto triste e desafinado de um pássaro inexistente é o som que passa a acordar os moradores; os pés de manga são árvores infrutíferas, sem juras de amor talhadas com canivete pelo garoto apaixonado; as cabras tristes já não reagem do mesmo modo. Tudo diz adeus, tudo se entristece, e esses detalhes parecem revelar as dificuldades de se viver em meio à enganação do fingimento do que não é, lembrando disso não apenas os moradores, mas também o(a) leitor(a).

A cidade inexistente, na mescla entre o real e o fantasioso, o que existe e o que é inexistente, interliga histórias que, a partir do sofrimento individual e coletivo, exibem uma importante reflexão sobre as perdas irreparáveis a que uma população é submetida quando há desapropriação do seu território em favor de uma construção que dissimula apontar para o progresso. Essas perdas, para além do estrutural, na verdade se fincam na subjetividade de um eu que, mesmo tendo um teto e uma cidade, fica fraturado por já não ter a autenticidade de suas origens e, não tendo para onde ir nem retornar, passa, assim, a povoar uma espécie de não lugar. Na obra, existe uma circularidade e uma repetição das cenas que compõem o prólogo e o epílogo e apontam para diferentes possibilidades do desenrolar dos fatos, a depender de qual ação é tomada pela população. Entre a rendição e a resistência, há uma escolha, o que deixa o(a) leitor(a) com vontade de ler um punhado a mais de páginas para continuar sabendo sobre o que essa comunidade, ao adquirir a consciência do que essas perdas e fraturas lhe causam, fará ao subir ou descer dos caminhões carregados.

Para saber mais

SILVA, Felipe Teodoro da (2019). Só há labirintos: (des)leituras da ficção de José Rezende Jr. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) – Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa. Disponível em: https://tede2.uepg.br/jspui/handle/prefix/3032. Acesso em: 22 dez. 2023.

Iconografia

Tags:

Como citar:

OLIVEIRA, Ana Paula Gonçalves de.
A cidade inexistente.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

30 set. 2024.

Disponível em:

2574.

Acessado em:

19 maio. 2025.