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Ykamiabas: filhas da Lua, mulheres da Terra

MELO, Regina Lúcia Azevedo de. Ykamiabas: filhas da Lua, mulheres da Terra. São Paulo: Travessia, 2004.

Juliana Florentino Hampel
Ilustração: Espírito Objeto

Ykamiabas: filhas da Lua, mulheres da Terra (2004) é o primeiro romance de uma trilogia idealizada pela escritora manauara Regina Melo (Manaus, AM, 1959), composta ainda pelas obras Oceano primeiro: mar de leite, rio da criação (2011) e A fênix e o dragão: paixão e eterno retorno (2018). Para escrever o primeiro dos três livros, a autora realizou uma extensa pesquisa antropológica e historiográfica de cerca 12 anos, a fim de possibilitar a recriação do universo das mulheres guerreiras do vale do Amazonas, as famosas icamiabas. O romance foi editado em 2004 pela Travessia, com patrocínio da Petrobras, e teve uma segunda edição em 2012 pela editora Nelpa. Com a obra, a autora almeja apresentar uma contranarrativa das mitológicas guerreiras a partir de uma perspectiva feminina, opondo-se àquela criada por viajantes europeus homens e baseada na mitologia grega.

Regina Melo é jornalista, poeta, compositora e produtora audiovisual. De poesia, teve três livros publicados: Pariência (1984), Estação do nada (1988) e O poema (1988). Compôs, com o também amazonense Adalberto Holanda, uma ópera inédita, As Amazonas (2015), e, com o compositor Pedro César Ribeiro, um musical chamado Ritual das Icamiabas (2015). O mito das guerreiras, que inspirou o nome do maior estado da Região Norte do Brasil, foi tema da escola de samba carioca Acadêmicos da Rocinha, no ano de 2010.

A estudante de Antropologia Yara, protagonista da trama, é quem escreve a história das guerreiras amazônicas da região do Vale do Paraná-Guassu, situado no Alto Rio Negro. Assim, entrelaçam-se duas histórias compostas por fatos, mitos e lendas que celebram e privilegiam as mulheres: a primeira é a sua versão sobre as lendárias icamiabas, e a segunda, as descobertas de sua história pessoal, que revelam a presença de uma mãe forte e a ausência paterna, em consonância com a trajetória de suas ancestrais indígenas.

O livro é dividido em 24 capítulos iniciados por diferentes epígrafes que, muitas vezes, sugerem o assunto que será apresentado. Do capítulo I ao IX, a autora aborda o encontro com o mito, a descoberta do muiraquitã por Yara e a aceitação do legado de contar essa história. A partir do capítulo X até o XV, são narradas as conquistas europeias na América do Sul, o encontro dos colonizadores com as icamiabas, sua sede por saquear o novo continente em busca de metais preciosos e o extermínio das populações originárias. Nos capítulos seguintes – do XVI ao XX – são apresentadas informações sobre a vida dessas guerreiras, seus rituais e tarefas cotidianas, além das mudanças que acontecem em suas trajetórias após os combates contra os invasores. Do capítulo XXI ao XXIV, Yara reencontra seu pai em uma viagem à Europa, onde descobre que o mito das amazonas está presente em diversas culturas, mesmo as mais distantes da sua, da mesma maneira que está em sua própria gênese – uma vez que é filha de um pesquisador europeu com uma cabocla nativa da terra.

A narrativa começa com a chegada, na casa de Yara, de um pacote originário da Capadócia que contém um muiraquitã, amuleto sagrado de origem lendária, o que dá início a uma trajetória de autodescoberta por meio da pesquisa e da escrita da obra. Depois de apresentar o item a seu professor na universidade, o antropólogo Benjamin Ramos, segue-se a viagem por rios amazônicos para coletar evidências e histórias da tradição oral amazonense e recontar a lenda sob uma perspectiva feminina e de alguém oriundo do lugar onde tudo acontece.

Como já referido, Regina Melo buscou uma nova versão do mito das amazonas à luz de um olhar feminino, por meio do qual as icamiabas são descritas como “aquelas que não têm seio ou leite, assim definidas, pela forma de viver, independente”. O fato de serem mutiladas foi uma das versões masculinas contadas pelos colonizadores, versão que é contestada no romance. Elas tinham seios e amamentavam seus descendentes, ao mesmo tempo que realizavam todas as tarefas originalmente destinadas aos homens, como a caça, a pesca e a participação em combates contra tribos rivais que pretendiam exercer o poder do patriarcado sobre elas.

Adoradoras da Lua, entidade que representa a manifestação dos desejos da Deusa Mãe, as icamiabas são “extremamente fortes e ousadas, [e] permitem-se viver sem homens”. O único momento em que admitiam a presença masculina na aldeia era no período de acasalamento, quando guerreiros de tribos vizinhas eram escolhidos por cada uma das meninas debutantes com o único objetivo de gerarem novos descendentes.

Esse momento ocorria após a Festa da Vitória, quando as meninas que acabavam de passar por seu primeiro ciclo menstrual eram iniciadas como mulheres férteis no lago sagrado Yacy-Uaruá, o Lago Espelho da Lua, localizado no Monte Yacy-Taperê, ou Serra da Lua. Ao imergir nas águas do lago, as jovens icamiabas retornam com a argila de seu fundo, com a qual comporão seus amuletos. Por meio do poder emanado por eles, “elas adquirem o direito de se deitar com os guerreiros que escolherem e a possibilidade real de engravidarem, contribuindo assim para o aumento da população com novas mulheres”.

Concomitantemente à narração do cotidiano e dos rituais das icamiabas, nasce a pesquisadora Yara, que afirma que a motivação para recontar essa história a faz sentir-se num profundo “mergulho numa vida passada”, uma vez que “resgatava algo [dentro de si] adormecido”. Ela, que nunca havia conhecido o pai, desejava descobrir parte de sua origem que a mãe ocultava, não se sabia o motivo.

Segundo a pesquisadora Margarete Lopes (2014), da Universidade do Acre, a trilogia de Regina Melo tem grande importância justamente por resgatar mitos mais primordiais da humanidade e, no caso específico do romance Ykamiabas: filhas da Lua, mulheres da Terra, por destacar o empoderamento das mulheres “e sua recolocação na posição de sujeito de suas vidas”. De acordo com Tuane Santos Aragão (2021), há uma ressignificação da “categoria identitária da mulher amazônica, um sujeito que muitas vezes está à margem e na obra ocupa lugar de destaque”. Em outras palavras, há um rompimento da “imagem tradicional ou folclórica do que seja a cabocla, não repetindo estereótipos e saindo do ‘isolamento’ que outrora lhe foi atribuído pelo colonizador”.

Na história que se passa no presente da narração, os diálogos entre Yara e Benjamim operam como “aulas” de história em que são descritas as invasões espanhola e portuguesa no norte do Brasil, os detalhes das batalhas travadas entre eles e as tribos que habitavam o Alto Rio Negro, além da imposição do catolicismo, que acontecia por meio da amálgama realizada por missionários de elementos de inúmeras lendas indígenas aos mitos cristãos, com o intuito de confundir os indígenas e fazê-los acreditar  em preceitos baseados em um Deus único e masculino.

O relato do livro, contudo, procura reverter essa situação, já que Yara conta versões indígenas de várias lendas católicas com foco nas figuras femininas, como, por exemplo, o mito da índia Seucy, que substituiria a história de Adão e Eva. Cansada de guerrear com os colonizadores, Seucy decide comer a fruta de uma árvore proibida à sua tribo, o pilhicam ou uacu. Ao ingerir a fruta acídula e de sabor adocicado, ela acaba por adormecer e, em seus sonhos, torna-se mulher de Wanari, que sai todos os dias para trabalhar na roça. “Quando Wanari sai para trabalhar, a Cobra da Festa, uma cobra-grande, assume a sua identidade e deita-se com a sua mulher”. A barriga de Seucy começa a crescer e Wanari desconfia de algo. Um dia, finge que vai trabalhar, mas fica vigiando a esposa e vê que a Cobra da Festa se transforma num homem parecido com ele e se deita com ela.

“Seucy sente a sua barriga inchar, inchar, inchar… Até explodir. De dentro dela salta uma enorme cobra, que, rapidamente, rasteja até o rio”. Na sequência, “Seucy dá à luz um lindo menino, tão lindo como os raios da manhã”. Ao acordar, ela não sabe mais o caminho de casa e se perde na floresta, porque não quer aceitar a ordem masculina imposta por outras tribos que foram cristianizadas e criam leis que beneficiam somente os homens, tentando impô-las às icamiabas.

A apresentação de novas versões de mitos e lendas da tradição oral amazonense é um dos presentes que a narrativa de Ykamiabas: filhas da Lua, mulheres da Terra oferece a seus leitores. As descobertas realizadas por Yara, tanto de sua história pessoal quanto do fato de que o mito das amazonas perpassa as culturas mais diversas, são como uma descida ao interior da terra, quando ela descobre que, como as águas dos rios Negro e Solimões não se misturam, mas convivem, assim o homem deve conviver com a natureza, respeitando a Mãe Terra, “o útero de onde tudo sai e retorna”. Esse, enfim, seria o legado deixado aos homens pelas “filhas da lua, mulheres da terra, que atravessaram os continentes para viverem livres”, passando pela Ásia, pelos Andes e pelas terras celtas de irlandeses e gauleses para, finalmente, aportarem em nosso país.

Cabe a nós, portanto, a partir do conhecimento dessa história, lutar para que a floresta continue viva, apoiados na compreensão de que a defesa do meio ambiente, bem como de nossa memória ancestral e social, são elementos-chave para preservar a vida em sua totalidade, visto que “a Terra, mesmo dividida, é uma só. É um corpo só. E nós fazemos parte dele”.

Para saber mais

ARAGÃO, Tuane Santos (2021). A mulher amazônica em Ykamiabas, filhas da noite, mulheres da lua, de Regina Melo. In: CARDOSO, Ana Maria Leal; MACIEL, Luciana Novais; PLÁCIDO, Elane da Silva (Orgs.) Imaginários literários: do regional ao histórico. Aracaju: Criação Editora. p. 225-236. Disponível em: https://editoracriacao.com.br/wp-content/uploads/2022/04/ebook-n-3.pdf. Acesso em: 10 set. 2023.

LOPES, Margarete Edul Prado de Souza (2014). Protagonismo feminino na floresta amazônica: uma leitura de Regina Melo. 18º Redor – Universidade Federal de Pernambuco. Anais... p. 1635-1648. Disponível em: https://docplayer.com.br/18275238-Protagonismo-feminino-na-floresta-amazonica-uma-leitura-de-regina-melo-resumo.html. Acesso em: 10 set. 2023.

OLIVEIRA, Maria Aparecida de (2017). Um encontro de águas: Woolf, Bishop e Regina Melo. RE-UNIR, v. 4, n. 2, p. 14-28. Disponível em: https://periodicos.unir.br/index.php/RE-UNIR/article/view/2393/0. Acesso em: 10 set. 2023.

REINALDO, Maria Rejane. Apresentação do livro. In: MELO, Regina. Ykamiabas, filhas da Lua, mulheres da Terra. São Paulo: Nelpa, 2012.

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Como citar:

HAMPEL, Juliana Florentino.
Ykamiabas: filhas da Lua, mulheres da Terra.

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Brasília. 

30 set. 2024.

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19 maio. 2025.