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Um corpo à deriva: dança

PEREIRA, Edimilson de Almeida. Um corpo à deriva: dança. Juiz de Fora: Macondo, 2020.

Luan Sabino Siqueira
Ilustração: Catalina Chervin

No poema “Cena de pesca de Tsoelike”, Edimilson de Almeida Pereira (Juiz de Fora, MG, 1963) afirma, nos versos iniciais, que “a memória é/um curso em parte/navegável”. Com efeito, pode-se aplicar a sentença ao romance Um corpo à deriva, em que a memória e a linguagem apresentam-se como os dois grandes personagens de uma narrativa que nos instiga a pensar de que modo o passado da escravidão impactou – e, de certa forma, continua a impactar – a vida de pessoas negras na contemporaneidade.

Um corpo à deriva integra um conjunto de três romances publicados pelo autor simultaneamente no ano de 2020, marcando sua estreia, após anos de dedicação à poesia e à prosa ensaística, na prosa de ficção. Além desse romance, que foi semifinalista do Prêmio Oceanos, o escritor também publicou Front (Noz, 2020) e O ausente (Relicário, 2020), que juntos formam a trilogia intitulada “Náusea”, tendo o primeiro recebido o Prêmio São Paulo de Literatura e o último, o Prêmio Oceanos.

Em primeiro lugar, definir o enredo de Um corpo à deriva mostra-se uma tarefa ingrata, na medida em que o romance não opera propriamente com os procedimentos comuns às narrativas tradicionais. Ao iniciarmos a leitura do livro, somos confinados em um apartamento, mais precisamente em um quarto, com outros dois personagens dos quais só nos é revelado o nome de um, Tesfa, cuja origem é etíope e significa “esperança”. Trata-se de um casal que, ao final de uma tarde, combinou um duplo suicídio. Entretanto, o plano dos dois falha, e é a partir desse ponto que passamos a acompanhar as reflexões de cunho existencialista de ambos em torno da recusa de tal atitude extrema que implica na vida deles. A tensão que se instaura entre o espaço de dentro, reduzido às quatro paredes de um apartamento em uma cidade qualquer do país, e o espaço de fora, pontuado por ruídos, estampidos e barulhos que tentam invadir o interior do prédio, produz a náusea que acomete os personagens, perpassando toda a atmosfera do romance: “Esse país é náusea, Tesfa, mais que flor”, sentencia uma das vozes.

Investindo na linguagem como mola propulsora da trama, o livro apresenta uma sucessão de discursos que se intercalam com o propósito de refletir acerca de formas com que os sujeitos vítimas das dominações históricas podem trair a linguagem legada por seus algozes para que, a partir dela, consigam promover a libertação dos corpos e das mentes: “Precisamos tomar de assalto a linguagem. Essa é a única maneira para mantermos nossas cabeças acima da água”. Sabe-se que os grandes empreendimentos coloniais utilizaram a linguagem como meio privilegiado de definição do outro, o que, no limite, significou a dominação dos povos considerados inferiores. Dessa maneira, de acordo com Achille Mbembe (2018), o termo “negro” foi criado para “significar exclusão, embrutecimento e degradação, ou seja, um limite sempre conjurado e abominado”.

Apesar de no romance não haver, em nenhum momento, menção à palavra “negro”, somos levados a identificar, naqueles personagens, vivências, do passado e do presente, comuns à comunidade afrodiaspórica do país, em particular, e do território americano, em geral. Assim, operando um duplo movimento, o autor, ao mesmo tempo que recusa tais denominações, propõe reflexões em torno da constituição de um eu que tenta de diversas formas encontrar um caminho alternativo ao que lhe fora imposto pelo discurso dominante: “Se narrar é tirar do horror algum traço de humanidade, então o que foi dito a meu respeito não tem sentido. Ao falarem sobre mim, me negaram essa humanidade. Mas eu sou, Tesfa, tu sabes. Eu sou”. A batalha verbal travada entre Tesfa e a voz que diz “Eu” apresenta personalidades que se complementam na divergência. Enquanto ele esboça em vários momentos certa esperança em relação ao futuro, ela incorpora certa atitude niilista que põe em dúvida as certezas dele: “Percebes, Tesfa, a ordem é concordar quando discordamos, entre a névoa e a claridade. Há muito que não somos e nos tocamos através da canção impiedosa dessa tarde”.

Ao longo do romance, outras vozes são convidadas a participar da dança discursiva pontuada pela música de artistas como Elizeth Cardoso, Jimi Hendrix e Moacir Santos. Nesse sentido, o Velho angular é a primeira voz a intervir na conversa do casal, representando uma figura ancestral que traz em si um sentido inaugural ao tratar dos temas do passado, trazendo-os para o presente e projetando-os no porvir. Sua visita serve para fazer ao casal de jovens uma série de questionamentos que envolve a tênue linha que relaciona eventos como a travessia do Atlântico, a partir dos navios negreiros, e a contínua exploração de povos que ainda hoje são obrigados a migrar em busca de direitos fundamentais, como o direito à vida, à moradia e ao bem-estar.

As outras vozes que falam no romance pertencem a Chagas, artista plástico amigo do casal que, embora desaparecido, os assombra com a sua capacidade de se fazer permanentemente presente, tocando em feridas que insistem em não cicatrizar; e Fin, uma figura misteriosa, revivida por Chagas, e que, ao ser interpelado pelo Eu, lança enigmas em vez de oferecer respostas.

No que toca à linguagem propriamente dita com que o livro é concebido, o romance apresenta uma clara filiação do texto em prosa ao discurso poético já trabalhado pelo autor em quase quarenta anos de atividade literária. Desse modo, procedimentos e características recorrentes na poesia de Edimilson de Almeida Pereira, como a exploração dos múltiplos significados de determinadas palavras, o trabalho com a sonoridade e os jogos linguísticos, e o caráter elíptico na construção de algumas frases, figuram aqui para auxiliar a construção de uma prosa poética que, na literatura brasileira contemporânea, encontra ecos em autores como Clarice Lispector e Raduan Nassar. Não à toa, a presença de poemas no corpo do romance gerou a publicação avulsa pela mesma casa editorial do volume Ruídos (2020), vendido de maneira independente ao romance como forma de pontuar as relações existentes na obra entre prosa e poesia.

Ao final do romance, a náusea, que pode remeter tanto ao existencialismo sartriano quanto a algo mais próximo de um afropessimismo, cede espaço a um groove melancólico cada vez mais forte, dando vazão a uma expressividade que ajuda a compor um panorama discursivo que, ao falar da morte, reafirma o sentido da vida. É dentro de um quarto-útero, esse lugar inimaginável, capaz de incendiar o sol, que os personagens de Edimilson de Almeida Pereira gestam, a partir da linguagem, seus planos de vingança, dando a ver o desejo de se tornarem, finalmente, corpos incapturáveis. Afinal, como os personagens afirmam, o que queremos da linguagem é “tudo que nos permita ser no mundo sem que nossas costas se curvem”; Guimarães Rosa, por sua vez, nos diz em seu Grande Sertão: veredas, outra travessia promovida através da linguagem, que o que a vida requer de nós é coragem.

Para saber mais

MBEMBE, Achille (2018). Crítica da razão negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições.

PEREIRA, Edimilson de Almeida (2020). Entrevista a Paula de Carvalho. Quatro cinco um: a revista dos livros. Disponível em: https://www.quatrocincoum.com.br/br/entrevistas/fichamento/edimilson-de-almeida-pereira. Acesso em: 24 out. 2023.

SILVA, Alen das Neves; ALVES, Anamaria (2022). Derivar para buscar o humano integral: a esperança no corpo. Literafro: o portal da literatura afro-brasileira. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ficcao/1686-edimilson-de-almeida-pereira-um-corpo-a-deriva. Acesso em: 10 jun. 2023.

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Como citar:

SIQUEIRA, Luan Sabino.
Um corpo à deriva: dança.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

30 set. 2024.

Disponível em:

2564.

Acessado em:

19 maio. 2025.