MACHADO, Ana Maria. Tropical sol da liberdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
Sheila Jacob
Ilustração: Liana Timm
O romance Tropical sol da liberdade, da escritora Ana Maria Machado (Rio de Janeiro, RJ, 1941), foi lançado em 1988, poucos anos após, portanto, o início do período da redemocratização do Brasil. O livro integra um conjunto de mais de cem títulos publicados pela autora, a maior parte deles voltada ao público infantojuvenil. Sua vasta produção literária garantiu-lhe diversos prêmios nacionais, como o Jabuti e o Machado de Assis, e internacionais, como o Casa de Las Américas e o Hans Cristian Andersen. A autora ocupa a cadeira número 1 da Academia Brasileira de Letras, instituição por ela presidida em 2012 e 2013.
Apesar de narrada em terceira pessoa, a obra apresenta o ponto de vista da protagonista, Helena Maria de Andrade – ou Lena, como é referida na maioria das vezes –, acerca dos acontecimentos narrados. A trama começa com a ida de Lena à casa da mãe, Amália, que estava morando perto da praia, no lugar onde a filha passava as férias quando criança. Vivendo um momento de crise, a jornalista vai para lá em busca de repouso depois de machucar o pé enquanto fazia um tratamento médico para curar os episódios de “ausência” e confusão mental que a acometiam naquele período. A doença neurológica, não diagnosticada, a impedia de transitar sozinha e de continuar com o seu projeto de escrita mais recente, que era a elaboração de uma peça de teatro sobre os recentes anos de repressão. O retorno ao espaço da infância e a convivência com a mãe possibilitam, então, um reencontro consigo mesma.
Assim como os movimentos da memória, o romance não se organiza em ordem cronológica, mas, sim, em idas e vindas no tempo e no espaço, guiadas pelas lembranças da protagonista. Uma das primeiras recordações é a experiência do exílio em Paris. Quando Lena chega à casa materna, depara-se com uma amendoeira. A partir dessa visão, começa a refletir sobre a sua trajetória de vida, trazendo à tona lembranças de momentos vividos no Brasil e no exterior durante uma temporada de, como preferia chamar, afastamento voluntário: “Nem costumava pensar nesse tempo exatamente como exílio, não merecia o nome. Exílio tinha sido o dos outros, que saíram sem escolha”. A famosa Canção do exílio, de Gonçalves Dias, é relembrada pela protagonista de forma crítica e dolorosa, problematizando o seu sentido laudatório original. “Vê se pode, pensava a mulher, um país fundado por degredados que até no hino nacional lembra a dor do desterro, citando canção de exílio, andar banindo gente em pleno século XX e espalhando exilado pelo mundo.”
Nesse momento bastante inicial da narrativa, as lembranças particulares se coletivizam, levando ao resgate das memórias do próprio país, na ocasião recém-saído da ditadura. É um movimento doloroso de reencontro com as violências e traumas pelos quais a mulher, seus parentes, amigos e sua terra natal haviam passado naquele período. Amália, a mãe, chegava a se espantar “como os seus dias pessoais e familiares estavam tão entrelaçados com o tempo nacional”. O romance apresenta, então, um levantamento histórico, enumerando marcos importantes do período ditatorial, dos quais a família de Lena havia participado ativamente. Alguns desses acontecimentos se deram principalmente no ano de 1968: o assassinato do estudante secundarista Edson Luís, em março; a missa de sétimo dia, que se tornou uma das principais manifestações de resistência contra o regime militar; a invasão da reitoria da UFRJ em maio do mesmo ano; a Passeata dos Cem Mil, em junho; a prisão de lideranças estudantis e a repressão ao Congresso clandestino da UNE em Ibiúna, no mês de outubro; até a promulgação do AI-5, em dezembro, quando o poder Executivo “passou a carrasco executor do que ainda restava de liberdade no país”.
Aparecem, ainda, outras referências históricas, como a prisão do militante Gregório Bezerra – chamado de Guilherme no romance – “um velho líder comunista nordestino, um homem do povo, de idade, com uma admirável dignidade sertaneja”, que havia sido arrastado pelas ruas de Recife ainda em 1964 em uma tentativa de desmoralizá-lo publicamente. Também há registro do suicídio de frei Tito, “um padre dominicano tão torturado pelo mesmo delegado Fleury que, mais tarde, já em liberdade, no exílio, acaba se matando, apesar da absoluta condenação da Igreja ao suicídio. Porque o torturador não abandonara a vítima”.
É do amigo Honório, “militante, político, guerrilheiro, terrorista, depende de como queiram chamar”, que parte a sugestão para que Lena dê seu depoimento e registre a história vivida e testemunhada por ela, o que a faz refletir e opinar sobre os limites da veracidade nesse tipo de texto: “Minha profissão é ser jornalista, não é escrever depoimentos pessoais. E não acredito nisso. Acho mais honesto assumir logo que essa história de depoimento pessoal é uma ficção, uma parte do gênero romanesco, se é que isso existe em literatura, assim, com esse nome”.
O texto passa, então, a oferecer, ao leitor, uma série de reflexões metalinguísticas, colocando em evidência as múltiplas tensões que perpassam a relação entre a verdade dos fatos e a criação artística. Ou, segundo metáfora apresentada pelo romance, mostra como é embaçada e instável a “vidraça que separa a memória e a fantasia, a ficção e a realidade”. Ao apelo do amigo para pintar com palavras um retrato dos anos de chumbo, Lena responde: “É mais honesto reconhecer logo que não se vai contar a verdade e partir para uma narrativa de ficção, misturar personagens, fundir situações, inventar coisas novas, cortar o que não interessa.”.
A feitura do romance parece, então, anunciar-se inspirada nas vivências da própria autora, que guarda algumas semelhanças com a protagonista da obra. Assim como Lena, Ana Maria Machado foi jornalista e passou por diversas redações de jornal, como Correio da Manhã, Jornal do Brasil, O Globo, além de ter colaborado com títulos da chamada “imprensa alternativa”, como a revista Realidade e os semanários O Pasquim, Opinião e Movimento. Ela também tem um irmão famoso pelo protagonismo na luta contra o regime militar: o jornalista Franklin Martins, que, assim como o Marcelo da ficção, foi liderança estudantil, chegou a ser preso, depois entrou para a clandestinidade e participou do sequestro do embaixador estadunidense Charles Elbrick em 1969. Fatos esses contados no romance e que levaram tanto criadora quanto criatura a serem presas e, posteriormente, deixarem o país.
Para Lena, cumprir o seu trabalho de escritora do tempo recente não significava, como se vê, dar um testemunho comprometido com a veracidade dos fatos, mas, sim, utilizar as experiências por ela vividas e coletadas como fermento para sua criação ficcional. Tratava-se de “juntar as entrevistas, analisar as cartas e depoimentos, misturar os fatos dos recortes da imprensa com as lembranças doídas da memória, tentar ordenar os fragmentos, arrumar numa peça, expor o drama, contar no palco a tal trajetória de uma mulher na periferia dos acontecimentos”. Trechos da peça que ela começa a escrever são inseridos ao longo do romance, trechos esses que focam não nos grandes acontecimentos, mas nos dramas pessoais de alguns casais de exilados que viveram (n)a “periferia dos acontecimentos”.
Aliás, é também Honório que a incentiva a registrar trajetórias distintas, aquelas esquecidas tanto pela história oficial quanto pelos relatos da resistência. Ele chama a atenção para a importância do resgate de vivências de militantes que combateram a ditadura não no centro da ação, mas nas margens do palco, já que “da turma que estava no olho do rodamoinho, no vértice do furacão, já teve muita gente contando, dando depoimento”. Desse rol de histórias invisibilizadas, destaca-se, por exemplo, a de Amália, mãe da protagonista, que, junto a outras colegas, contribuía financeiramente com os movimentos de resistência. Eram mulheres que faziam bazar, vendiam e doavam o dinheiro a um padre que, então, fornecia para algum movimento de resistência. Outro exemplo é o de Dona Lúcia, que, em uma batida policial em sua casa, escondeu panfletos costurando-os em duas fronhas, produzindo, em tempo recorde, travesseiros para camuflar os materiais proibidos. Há ainda a cumplicidade dos amigos idosos Luis Cesário e Carlota, que contribuíam oferecendo uma chave da casa para abrigar qualquer pessoa que precisasse se esconder.
Ler Tropical sol da liberdade hoje leva, portanto, a saber mais sobre a ditadura e as várias formas de resistência que foram postas em prática, trazendo experiências de protagonistas e coadjuvantes que combateram, cada um à sua maneira, tal regime de exceção. Para além da moldura histórica e do questionamento à transição incompleta para a democracia, o romance de Ana Maria Machado também leva o(a) leitor(a) a refletir sobre as múltiplas formas, possibilidades, limites e desafios da linguagem que pretende contar/cantar esse período, sem deixar de reconhecer sua relevância e urgência.
Para saber mais
DALCASTAGNÈ, Regina (1996). O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília: Editora Universidade de Brasília.
FIGUEIREDO, Eurídice (2017). A literatura como arquivo da ditadura brasileira. Rio de Janeiro: Editora 7Letras.
VECCHI, Roberto; DI EUGENIO, Alessia (2020). A dupla cicatriz: a ditadura brasileira e a vocalização feminina da memória traumática de Ana Maria Machado. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 60. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/30811. Acesso em: 3 ago. 2023.
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