VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto arado. Lisboa: LeYa, 2018.
Julieta Kabalin Campos
Ilustração: Márcio Vaccari
Torto arado é o primeiro romance do escritor baiano Itamar Rangel Vieira Júnior (Salvador, BA, 1979). Com a obtenção do prestigioso Prêmio Leya em 2018, o livro garantiu sua primeira publicação em Portugal e deu início a sua meteórica difusão no mercado literário de língua portuguesa. O livro foi publicado no Brasil no ano seguinte pela editora Todavia e muito rapidamente conseguiu um grande reconhecimento da crítica, tanto nacional como internacional. Entre os galardões obtidos pela publicação estão o Prêmio Jabuti (na categoria romance literário) e o Prêmio Oceanos (na categoria romance), ambos de 2020. Além disso, Torto arado foi traduzido para mais de 20 idiomas e já vendeu mais de 1 milhão de exemplares em todo o mundo, fato que o coloca na categoria de best-seller brasileiro.
A obra conta a história de duas irmãs pertencentes a uma família afro-brasileira, Bibiana e Belonísia, que nasceram e cresceram na Fazenda Água Negra, uma localização fictícia da Chapada Diamantina. Nessa região rural do estado baiano, marcada pela grande afluência de mão de obra escravizada para o desenvolvimento da mineração em séculos anteriores, uma série de acontecimentos de tempos mais recentes se sucedem, mas ainda atravessados pelos vestígios da violência colonial. O ponto de partida da narrativa é um acidente doméstico que marcou para sempre a vida das protagonistas. Fruto da curiosidade infantil, as irmãs se dispuseram a descobrir o misterioso conteúdo da mala onde a avó Donana escondia algumas de suas poucas pertenças e, como resultado dessa ousadia, encontram o objeto decepador que provoca um trágico destino. Entre os objetos guardados com zelo pela avó, estava a brilhante faca que, nas mãos imprudentes das meninas, converteu-se em veículo para o emudecimento de uma delas, assim como para o desenvolvimento de uma das encruzilhadas temporais da história familiar.
Embora a focalização da obra seja a vida das irmãs Bibiana e Belonísia, os trajetos vitais dessas mulheres configuram os fios de uma trama comunitária muito mais ampla. Afetos, vínculos, memórias, temporalidades, errâncias, conflitos e saberes diversos são urdidos, ao ritmo intermitente das águas e secas do sertão, num roteiro de cenas poéticas que colocam no centro a terra e os conflitos em torno dela. A antecipação desse núcleo conceitual é a epígrafe de Raduan Nassar, que versa: “A terra, o trigo, o pão, a mesa, a família (a terra); existe neste ciclo, dizia o pai nos seus sermões, amor, trabalho, tempo.”
Vieira Júnior, além de escritor, é licenciado, bacharel e mestre em geografia e doutor em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia, com tese sobre a formação de comunidades quilombolas no interior do Nordeste brasileiro. Suas preocupações teóricas sobre questões vinculadas à reforma e ao desenvolvimento agrário foram plasmadas na via prática, na sua atuação como servidor público do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Esse dado pode aportar uma maior compreensão sobre a relevância e a profundidade com que são abordadas essas problemáticas no romance, mas também sobre a importância que essa narrativa concede às lutas de apropriação territorial como via de resistência e subversão das históricas condições de subalternização e exploração das comunidades quilombolas.
O livro é dividido em três partes e cada uma delas conta com uma narradora diferente, ou seja, uma voz e uma perspectiva particular que vem complementar e densificar o olhar sobre a história que as une. A primeira delas, denominada “Fio de corte”, é assumida pela irmã mais velha, Bibiana. Sua versão da história está centrada na reconstrução do passado desde aquele fatídico acontecimento pelo qual se tornou voz de sua irmã até o dia em que, por causa de uma gravidez não planejada, decide deixar a comunidade de Água Negra junto com Severo, seu primo e amante.
A segunda parte, “Torto arado”, é narrada por Belonísia, a irmã mais nova, que ficou mutilada naquele acidente de infância. O ponto de partida do seu relato é a narração de uma das versões de um sonho recorrente em que se ligam memórias próprias daquela cena trágica do emudecimento com a figura desconhecida de um homem branco que a atormenta. Essa narração explora a vida adulta das irmãs e permite reconhecer a especial conexão que Belonísia vai estabelecendo com as tradições e os saberes ancestrais do seu povo. O relato da irmã mais nova finaliza com outra das tragédias do livro: o assassinato do cunhado que, depois de seu retorno a Água Negra, tinha se convertido em líder e militante dos direitos da comunidade.
Por último, a terceira parte, “Rio de sangue”, é narrada por Santa Rita Pescadeira, uma entidade encantada com a capacidade de montar nos corpos de determinados indivíduos, que são chamados por ela de “cavalos”. Nesse ponto do romance, o leitor já sabe da existência desse ser ancestral e de suas aparições na figura de Dona Miúda, e a introdução da voz da encantada oferece um ponto de vista sumamente interessante ao convocar, em primeira pessoa, antigos segredos e memórias da comunidade. Com essa particular estratégia, o livro estabelece relações temporais mais amplas que facilitam o entendimento das conexões entre as injustiças do passado e do presente, assim como também da resiliência e da fortaleza que caracteriza a seu povo: “Gente que atravessou tudo suportando a crueldade que lhes foi imposta”.
Essa série de histórias interconectadas permite ao leitor ingressar no mundo de uma coletividade que, sem estar excetuada de tensões e contradições internas, luta por sobreviver às precariedades, explorações e injustiças que se estendem ao contexto pós-escravagista brasileiro. Por isso, esse contexto percorrido, traçado pelas vozes de suas protagonistas, contribui para estabelecer uma aproximação que permite o reconhecimento das complexidades e das riquezas de existências historicamente marginalizadas do projeto nacional, assim como pôr em valor as maneiras com que elas experimentam, entendem e configuram o mundo que habitam.
Nessas explorações, os jarês, práticas religiosas afro-indígenas tão caraterísticas da Chapada Diamantina, ocupam um lugar especial, espaço de muitos encontros e desencontros não só entre as personagens, mas também entre valores e saberes que estão em permanente disputa e negociação. É o que acontece quando, por exemplo, Zeca Chapéu Grande, pai das protagonistas e líder espiritual da comunidade, num desses rituais e abrigando no seu corpo a Santa Bárbara, propicia a demanda de uma escola para a comunidade; ao passo que o prefeito da cidade, devedor de um favor curativo dessa tradição historicamente estigmatizada, não tem mais saída e cede à exigência do povo.
Torto arado mergulha, com um ritmo acelerado e um estilo intimista, nas complexas emoções e relações de seus personagens, convocando saberes da tradição oral, destacando conhecimentos das culturas afro-brasileiras e privilegiando uma perspectiva feminina para a história do Brasil. Nesse ponto, são expostas as violências sofridas pelas mulheres − em certas situações, equivalentes a situações de escravidão, como sinaliza Belonísia no capítulo 10 da segunda parte −, mas também os gestos de cumplicidade e apoio entre elas. Essas formas vinculares são as que, no romance, geram verdadeiras redes de resistência e poder.
A chegada de um livro como Torto arado num contexto local e internacional atravessado pela reemergência e pelo fortalecimento de expressões neofascistas é mais do que oportuna. Isso é assim sobretudo por se tratar de uma obra com a capacidade de se aprofundar − com um olhar sensível, crítico e original − nas tramas perversas das lógicas necropolíticas a partir da recuperação de experiências de um Brasil profundo e, muitas vezes, esquecido. As histórias tramadas em Água Negra funcionam como testemunhos ficcionais da caducidade de modelos com eixo na propriedade privada, ao mesmo tempo que como reivindicação de formas alternativas de ser e estar no mundo, em que o vínculo com a terra é sagrado e ancestral.
O impacto que a obra tem causado no âmbito da cultura brasileira não só pode ser medido a partir das múltiplas premiações e reconhecimentos recebidos pelo autor ou pelo número recorde de venda de seus exemplares, mas também pode ser dimensionado pela rápida expansão desde o diálogo com outras disciplinas artísticas. Exemplo disso é a música “Torto Arado” (2023), do cantor Rubel em colaboração com Liniker e Luedji Luna; a peça teatral Depois do silêncio (2022), da diretora Christiane Jatahy; assim como a obra da artista gráfica Linoca Souza, hoje parte da identidade visual da obra. Esta última foi utilizada como arte de portada da edição brasileira e conta com a particularidade de ter colocado em diálogo a obra de Viera Júnior com uma das fotografias que compõe a série Nouvelle semence (2010), realizada em Camarões, pelo artista italiano Giovanni Marrozzini.
Além de Torto arado, Vieira Junior é autor de mais um romance e três livros de contos. Dentro da produção contística, encontram-se Dias (2012) − vencedor do Concurso XI Projeto de Arte e Cultura −, Oração do Carrasco (2017) − finalista do Prêmio Jabuti na categoria contos e vencedor do Prêmio Humberto de Campos da União Brasileira de Escritores − e Doramar ou a odisseia (2021). Sua obra mais recente, “Salvar o Fogo” (2023), é o segundo romance da trilogia inaugurada por Torto arado e, portanto, continua a explorar as relações humanas com e na terra, os saberes que se constroem em torno desse objeto de permanentes disputas simbólicas e materiais e os vínculos de poder extremamente desiguais que definem os conflitos relacionados a ela. Dessa forma, Itamar Vieira Junior deixa aberta a expectativa em relação a um novo romance e a novas explorações críticas sobre um dos temas cruciais da sociedade brasileira atual.
Para saber mais
CANDIA, Luciene; CABRAL, Rayssa Marques (org.) (2022). Torto arado: perspectivas críticas. Catu: Bordô-Grená. Disponível em: https://www.editorabordogrena.com/_files/ugd/d0c995_a1168d6ec6064e048a3ab8010e14f9bb.pdf. Acesso em: 10 set. 2023.
CHAGAS, Silvania Núbia (2022). Torto arado ou torto encanto: o jarê contando história. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 66, p. 1-14. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/46951/36244. Acesso em: 10 set. 2023.
OLIVEIRA, Rejane Pivetta; CAIMI, Claudia Luiza (2023). Imaginário afro-ameríndio e utopia política em Torto arado. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 67, p. 1-9. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/47361/36991. Acesso em: 10 set. 2023.
TOLENTINO, Luana (2021). O Brasil profundo em Torto arado, de Itamar Vieira Junior. Literafro: o portal da literatura afro-brasileira. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ficcao/1465-itamar-vieira-junior-torto-arado Acesso em: 10 set. 2023.
TORRE, Michelle Márcia (2022). As formas de resistência em Torto arado, de Itamar Vieira Junior. O eixo e a Roda, v. 31, n. 1, p. 161-186. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/o_eixo_ea_roda/article/view/18552. Acesso em: 10 set. 2023.
Iconografia