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Sargento Getúlio

RIBEIRO, João Ubaldo. Sargento Getúlio. Rio de Janeiro: Artenova, 1971.

Mykaelle de Sousa Ferreira
Ilustração: Dona Dora

João Ubaldo Ribeiro (Itaparica, BA, 1941 − Rio de Janeiro, RJ, 2014) foi escritor, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e vencedor de diversos prêmios literários, entre eles, o Prêmio Camões, em 2008, conferido a prestigiados autores de língua portuguesa, e o Prêmio Jabuti, em 1972. Além do reconhecimento no cenário nacional, suas obras foram amplamente traduzidas para diversos idiomas, como demonstra o caso do romance intitulado Sargento Getúlio, segundo livro de sua carreira.

Trata-se de um romance regionalista, ambientado no sertão de Sergipe. Publicado em 1971, durante o período da ditadura, cuja ordem política autoritária e repressiva promoveu uma doutrina de prisões, torturas e assassinatos contra indivíduos que eram considerados inimigos do Estado, essa obra de João Ubaldo Ribeiro levanta questões fundamentais acerca desse contexto político-social do país. Sargento Getúlio é um livro narrado em primeira pessoa, a partir da perspectiva do sargento da Polícia Militar do Estado de Sergipe chamado Getúlio Santos Bezerra, personagem-protagonista que dá título à obra, encarregado de levar um preso comunista da cidade de Paulo Afonso à de Barra dos Coqueiros, ambas localizadas no Nordeste. No entanto, após ser informado de que o plano fora cancelado devido à pressão da imprensa e de outras instâncias governamentais, Getúlio mata o tenente responsável pela notícia e segue adiante com a viagem na companhia do motorista Amaro, que se tornará “o melhor amigo que um homem já pôde ter”. Essa tomada de decisão do protagonista gera o conflito principal da narrativa, uma vez que a obstinação de Getúlio não permitirá obstáculos em seu caminho.

Os demais personagens que acompanham Getúlio na estrada – o parceiro Amaro e o preso sem identificação, acusado de subversão comunista – tornam-se meros ouvintes das peripécias vivenciadas pelo protagonista, sempre triunfante nos próprios relatos. Assim como tais personagens, é como se o leitor também estivesse diante de um longo monólogo, no qual apenas a voz do narrador-personagem ganha destaque. Será, portanto, a partir do olhar e da voz do narrador-personagem, que os oito capítulos da narrativa vão adquirir dinamismo. Assim, uma vez iniciado o romance, a leitura flui de maneira simples.

Sem dúvida, a linguagem expressada pelo protagonista é um dos pontos que mais chama atenção do leitor. O vocabulário de Getúlio contém expressões relativas tanto a seu próprio contexto de enunciação (“filho dum cabrunco”, “bexiguento”, “da moléstia”, “quengo”, “arrodeia”, “uma ruma”, “deixar por derradeiro”, entre outras), como de outras variantes linguísticas facilmente identificadas em contextos informais de enunciação de falantes do português brasileiro, tais como: “adevogado”, “excelença”, “menas”, “embigo”, “sastifação” ou “previlege”, para citar apenas alguns exemplos. Desse modo, a narrativa é lida como um fluxo contínuo de palavras, tal qual uma transcrição direta da fala e da consciência do narrador-personagem repleta de marcas de oralidade, histórias, memórias e piadas: “Ninguém conversa, acho que sou eu que mais converso, mas pode crer que você assim estica a canela no primeiro dia que Deus der. Viu o cachorro do padre, eu tive um cachorro assim, quer dizer um cachorro mais ou menos dessa marca de cachorro só que mais grosso, que o nome era Logo-Eu-Digo, porque o povo perguntava o nome e eu dizia Logo-Eu-Digo e ficava calado.”

O personagem de Getúlio é descrito como um homem valente, na faixa etária entre os 30 e 40 anos, que cumpre todas as ordens sem questioná-las, pois, ainda que o protagonista desobedeça ao pedido do seu chefe pela interrupção do esquema em andamento, Getúlio defende uma ética pessoal, uma cartilha de preceitos que não lhe permite abandonar suas ações de maneira incompleta. É nesse sentido que o tema da violência aparece no livro tanto como parte estruturante da narrativa quanto a partir da caracterização do protagonista. Por meio de atos violentos, Getúlio tenta compreender seu próprio lugar no mundo, tornando-se cada vez mais semelhante a um capanga fora da lei ou cangaceiro vingador, que age a partir de sua própria conduta. Como afirma o personagem no trecho: “o chefe mandou buscar isso aí e eu fui, peguei, truxe, amansei, e vou levar porque, mesmo que o chefe agora não possa me sustentar, eu levei o homem e chego lá entrego. É preciso entregar o bicho. Entrego e digo: ordem cumprida.”

Getúlio passa a questionar a própria trajetória somente após o encontro com a personagem de Luzinete, mulher com quem terá um caso de amor. No entanto, será após uma emboscada em que Getúlio presencia as mortes de Luzinete e do companheiro Amaro que o protagonista, tomado pelo desejo de vingança, decide manter sua missão até o fim, quando também será morto em uma emboscada, em uma cena extensa que finaliza o romance.

Em síntese, o livro circunscreve a linguagem das zonas rurais do Nordeste brasileiro, sob a perspectiva de um protagonista que reproduz a violência das relações sociais de dominação e poder, embora ele mesmo seja um indivíduo que vive à margem de tais relações. É como se a escolha de Getúlio conduzisse necessariamente à sua derrota. Ou seja, a violência que motivou a trajetória do personagem foi a mesma que o tornou vítima, de modo que a sua morte surge como o único horizonte possível para resolver as tensões que foram cultivadas pelo protagonista ao longo da narrativa.

Publicado há mais de cinquenta anos, esse livro de João Ubaldo Ribeiro permanece atual, pois tanto a censura como a repressão promovidas por instituições militares ao redor do país, dos sertões às periferias, passando pelo centro das grandes cidades, não foi completamente erradicada do cenário social. Sargento Getúlio é uma leitura fundamental para quem deseja ter contato com uma experiência de linguagem inovadora, além de articular em seu enredo uma potente crítica social sobre as armadilhas impostas pelo autoritarismo.

Para saber mais

GIL, Fernando C. (2009). A narrativa rural e a violência em Sargento Getúlio. Terceira Margem, Rio de Janeiro, v. 13, n. 21, p. 187-205, ago./dez.

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Como citar:

FERREIRA, Mykaelle de Sousa.
Sargento Getúlio.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

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literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

30 set. 2024.

Disponível em:

2519.

Acessado em:

19 maio. 2025.