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Ribanceira

JURANDIR, Dalcídio. Ribanceira. Rio de Janeiro: Record, 1978.

Edmon Neto
Ilustração: Graça Craidy

Na leitura mais compartilhada pelos estudiosos de Dalcídio Jurandir (Ponta de Pedras, PA, 1909 – Rio de Janeiro, RJ, 1979), Ribanceira, romance publicado em 1978, encerra a sequência de dez narrativas que integram o chamado Ciclo Extremo-Norte, inaugurado em Chove nos campos de Cachoeira, de 1941. A saga formativa de Alfredo, que sai criança da Ilha do Marajó e ganha as ruas de Belém, perpassa uma Amazônia que não se deixa representar pelas descrições apressadas. Pelo contrário, Dalcídio Jurandir complexifica o imaginário sobre a região Norte por meio de técnicas narrativas altamente sofisticadas e construções imagísticas muito singulares, de modo que sua assinatura é reconhecida pela crítica especializada e pelos seus, infelizmente, poucos leitores no Brasil.

Após passagem traumática pelo Rio de Janeiro no romance anterior, Chão dos lobos, Alfredo chega a uma cidade erguida no Baixo Amazonas, conhecida hoje como Gurupá; na ficção, Ribanceira. Alusão à geografia da margem elevada do rio, do despenhadeiro ou do precipício, o romance é espécie de alegoria da ruína. Com seus então 19 anos, Alfredo é nomeado secretário do intendente municipal, com quem é responsável pela vigilância patrimonial de três cemitérios da cidade. Nesse lugar derruído, onde o intendente percebe que se tornara “depositário de destroços”, “inventariante de fantasmas arquivistas da catástrofe”, Alfredo traz à memória “a violência da civilização contra os índios, a cruz dos brancos fincada no chão dos massacres”, nas palavras de Ernani Chaves para o prefácio da 2ª edição. Gurupá-Ribanceira é cidade circunscrita pela morte e pela decadência pós-ciclo da borracha, cujo ocaso vai ocorrer quase em meados do século XX em muitas regiões amazônicas. Nessa narrativa dalcidiana também é comum a representação do deslocamento de imigrantes vindos de localidades distintas do Brasil e do mundo, datado do tempo de grandes lucros com a exploração da borracha e dos quais sobraram apenas a decrepitude. A construção de uma personagem como Bensabá, senhor de origem marroquina e responsável pelos cuidados de um quarto cemitério destinado aos judeus, aponta também para a presença na Amazônia dos povos oriundos da diáspora judaica, iniciada no início do século XIX.

Arquitetado para se passar no fim da República Velha no Brasil, o texto de Dalcídio Jurandir chega ao nível do esfacelamento, segundo a professora e pesquisadora Marli Tereza Furtado. As muitas sobreposições de espaços e tempos, mencionadas pela professora, são construídas por intermédio da experiência e da memória de Alfredo, ambas interferindo no estatuto narrativo e no acolhimento das muitas outras vozes que atravessam o romance, sendo recomendável conhecer a trajetória do protagonista para também perceber o adensamento da sua construção psicológica e o seu reconhecimento identitário. Essa técnica de Dalcídio gera alguma dificuldade para os não iniciados em seu estilo, sobretudo nos últimos romances nos quais os níveis da narrativa são trabalhados em jogos de espelhos, evidentes ou não, revelando, simultaneamente, eventos do passado justapostos ou aglutinados aos do presente. Somam-se à técnica, o léxico e as idiossincrasias do português falado no estado do Pará e as muitas contribuições de línguas e inflexões originárias, o que se traduz em imanências as quais os glossários disponíveis nas edições mais recentes não dão conta de explicar. Isso porque, acima de tudo, a poesia de Dalcídio Jurandir dita o tom no universo amazônico construído ao longo de mais de quarenta anos dedicados ao Ciclo Extremo-Norte. O efeito de tudo isso incide sobre a busca de Alfredo pela compreensão de si mesmo enquanto homem negro em terra onde o embranquecimento não só é uma das reações violentas à abolição da escravidão, como também é empreendimento levado a cabo por personagens como Seu Guerreiro, comerciante imiscuído à lógica da “branquidão social”, descrito em certa altura como “preto de cu branco”.

 Boa parte do enredo de Ribanceira gira em torno da chegada de Alfredo à cidade. Num mesmo dia, três são os momentos constitutivos de uma ambiência que sugere o desmoronamento de todas as coisas. A visita aos três cemitérios, o jantar na casa do ex-intendente coronel Cácio e o baile na casa de D. Benigna são eventos que preparam a queda do farol presente no trapiche às margens do rio, construção-símbolo das cidades ribeirinhas. Antes da consolidação desse fato narrativo, Alfredo é apresentado às desigualdades locais por meio de signos da finitude. Já numa primeira tarefa na intendência, ele inspeciona prostitutas a capinarem os seus próprios túmulos no cemitério a que são designadas e percebe as divisões sociais e preconceitos na comparação com o cemitério das mulheres consideradas de respeito e com o cemitério dos homens. Essas imagens tornam o cenário, apresentado a Alfredo, corrosivo cartão-postal, que dará ao intendente a certeza de que se administram escombros, e ao secretário trará, de forma incontida, marcas de Cachoeira e Belém, estilhaços do passado a atingirem em cheio os modos pelos quais o presente é capturado pelo narrar. Exemplo disso é a presença no espaço público de uma carruagem fúnebre (coche) adquirida durante a belle époque da borracha e cuja utilidade é ressignificada pelas figuras errantes da cidade. O coche traz à memória de Alfredo alguns eventos que se passam no terceiro romance do Ciclo, Três casas e um rio, e figura como um dos objetos-síntese da decadência física e simbólica de Ribanceira.

No jantar oferecido pelo coronel Cácio a Alfredo e ao novo intendente, cria-se uma ambientação dissimulada, construída com os elementos presentes na sala de jantar, incluindo aí quatro espelhos. Essa cena cruza, de modo radical, a memória de Alfredo e a memória coletiva da região, trazida à tona pela materialidade da casa burguesa em decadência, erigida pela economia da borracha de outrora. Pelos espelhos, o protagonista enxerga, em perspectivas distintas, imagens concretas, como o coche e os cemitérios, e também a dissolução moral da família do coronel, ironizada pela oferta do banquete. E, para unir-se a esse mesmo propósito e encerrar o primeiro dia de Alfredo em Ribanceira, o baile de D. Benigna cria uma sequência de desencontros em uma festa insuportável na qual Alfredo constata o real posicionamento racista da anfitriã com relação aos negros, tendo o jovem seu momento maior de afirmação identitária. Após esse último evento, a narrativa segue a iminente queda do farol do trapiche e, juntamente com a destruição real dos espaços ribeirinhos, o retroceder frente a uma possível formação heroica de Alfredo, que termina ainda mais aturdido em Belém, perdido na profusão dos muitos fluxos de consciência que o atravessam.

 Dalcídio, embora seja menos conhecido pelos seus poemas do que pelos seus romances, é notório poeta. A intensidade de sua escrita, movida por uma sintaxe única e criadora de um universo ficcional muito peculiar ao qual somos apresentados, permite uma experiência de leitura sempre em suspensão. Ainda ao falar de ruínas, muitas delas deduzidas das formas de violência social como o racismo e suas múltiplas manifestações, há um ritmo que incide sobre as frases de Ribanceira como se fossem versos proferidos pelo narrador ou por outras vozes: “Alfredo escuta. Vivos e mortos, uns e outros, sempre carecidos. Comadre Nhá Barbra, esta, lhe abre o baú da família: D. Amélia no chalé, ao espelho, rosto de baunilha e delírio. Pretas de Areinha passando a ferro a cambraia das brancas, pretos do Araquiçaua apanham goiabas para a calda dos brancos, pretos da Rui Barbosa […], a comadre Nhá Barbra, espichada, saia feita do camisão do Fiscal de Consumo, pé no chão, pedindo vela para as suas almas”.

Como todo grande narrador, Dalcídio Jurandir alcança as lonjuras da poesia e com ela constrói o esteio de sua obra. Os romances do Ciclo Extremo-Norte, na sequência em que foram publicados, são: Chove nos campos de Cachoeira (1941), Marajó (1947), Três casas e um rio (1958), Belém do Grão-Pará (1960), Passagem dos inocentes (1963), Primeira manhã (1967), Ponte do galo (1971), Os habitantes (1976), Chão dos Lobos (1976) e Ribanceira (1978). Alfredo é das figuras mais emblemáticas da cultura paraense, muito porque as narrativas que giram em torno dessa personagem são comumente associadas ao autor que lhe deu vida literária. No dia 16 de junho, comemora-se, no Pará, o dia de Alfredo, versão do Bloom’s day, que celebra, no mesmo dia, Leopold Bloom, do aclamado Ulysses, de James Joyce.

Para saber mais

CHAVES, Ernani (2020). Gurupá, Ribanceira e Itá: apogeu e decadência numa comunidade amazônica. In: JURANDIR, Dalcídio. Ribanceira. Bragança: Pará.grafo, p. 7-22.

FURTADO, Marli Tereza (2020). O espaço degradado da Amazônia em Ribanceira, de Dalcídio Jurandir. Revista TOPUS, v. 6, n. 1, p. 26-35.

PANTOJA, Edilson (2015). Filosofia, antropologia e reportagem em Ribanceira: considerações sobre o desviver na Amazônia de Dalcídio Jurandir. Amazônia, Revista de Antropologia, Belém, v. 2, n. 7, p. 428-454.

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Como citar:

OLIVEIRA, Edmon Neto.
Ribanceira.

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Brasília. 

30 set. 2024.

Disponível em:

2514.

Acessado em:

19 maio. 2025.