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O beijo na parede

TENÓRIO, Jeferson. O beijo na parede. Porto Alegre: Sulina, 2013.

Elvis Barbosa Caldeira Silva
Ilustração: Douglas Ferreiro

O beijo na parede é o primeiro romance de Jeferson Tenório (Rio de Janeiro, RJ, 1977). A obra foi premiada como “Livro do ano”, em 2014, pela Associação Gaúcha de Escritores (AGES) e selecionada para compor o Plano Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) em 2018. Neste livro, o premiado autor carioca, que há mais de duas décadas reside e atua como escritor e professor em Porto Alegre/RS, dá vida a João, narrador e protagonista da história. João é um menino negro de 11 anos que precisa lutar diariamente contra a vida que lhe é violentamente imposta e que piora após a morte de sua mãe. Alguns temas centrais da obra, como o abandono, a morte, a discriminação racial e a vulnerabilidade social aparecem logo nos primeiros capítulos do livro. Ao longo das páginas, nota-se que o ato de beijar a parede, praticado pelo protagonista, o faz lembrar da mãe e o ajuda a suprir a falta de amor e cuidado. Lentamente, os beijos dados na parede por João vão servindo como descoberta afetiva e sexual do garoto, o que também sugere a transição da infância à adolescência.

A narrativa se passa entre primeiro de maio de 1994, dia da morte de Ayrton Senna, e o ano de 1997. Como primeiro pano de fundo, a cidade do Rio de Janeiro é o local sobre o qual o narrador reconta sua infância e o convívio com os pais em Copacabana. Em seguida, depois das constantes enchentes e do aumento da insegurança no local devido ao conflito armado entre traficantes, a mãe de João decide que seria melhor para o futuro da criança que a família se mudasse para um cortiço na Lapa. A mãe, que trabalhava o dia inteiro e estava quase sempre cansada, ao chegar em casa nunca encontrava o marido, pai de João, descrito como um homem autoritário, constantemente alcoolizado e triste. Em meio à situação precária das condições de moradia, da condição financeira e do desmantelamento do relacionamento de seus pais, João vai apresentando os primeiros traços de sua ética, isto é, de como aprendeu a viver reprimindo seus sentimentos e esperando “ser homem” o quanto antes, a fim de dar cabo de sua infância sofrida.

Após a morte da mãe, dia em que João afirma ter conhecido a tristeza, o protagonista e seu pai mudam-se para a região metropolitana de Porto Alegre, cidade onde residem seus tios paternos, que, diferentemente do menino, eram todos brancos. É na escola em Porto Alegre que João descobre ser negro e, simultaneamente, começa a entender como sua cor passava a afetar diretamente sua vida. A discriminação racial cometida pelos tios e primos faz com que pai e filho sejam agredidos e despejados. Ambos passam a se virar em um quarto alugado de um prédio em ruínas no centro de Porto Alegre, local em que o pai de João cometeria suicídio semanas depois. O protagonista, agora sozinho e desabrigado, passa a perambular pelas ruas da cidade fugindo da tristeza e buscando ajuda, mesmo que de forma inconsciente.

 A tristeza é concebida por João como uma espécie de doença contagiosa que primeiro alcança a mãe, depois leva o pai e, no decorrer das páginas, acaba contaminando cada uma das personagens de O beijo na parede. Por meio da relação que o menino vai estabelecendo com as personagens e com a própria solidão, o romance vai gradativamente sendo firmado como uma narrativa que mistura memória, crítica social e construção de identidade. Assim, João passa de um órfão sem-teto a um menino negro que vai se descobrindo e que resiste às dificuldades. À medida que a narrativa avança, o protagonista é acolhido e aprende a acolher, tendo como principais companheiros a literatura e as personagens da comunidade marginalizada que é construída ao seu redor.

A relação que o menino estabelece com a literatura se dá, primeiramente, no Rio de Janeiro. Como fuga às condições degradantes e para se divertir, João descobre um livro que apoiava o pé quebrado da mesa de sua casa. O livro, de capa dura e vermelha, contava com a ilustração de dois cavaleiros desenhados em dourado. Tratava-se de um exemplar de Dom Quixote, clássico atribuído a Miguel de Cervantes. O menino, cuja alfabetização estava atrasada devido ao baixo rendimento escolar e ao progressivo abandono da escola, passa a se refugiar entre os poucos trechos da história que conseguia ler e compreender. A partir desse primeiro contato com a literatura, em meio à tristeza e à fome, João dá os primeiros passos de sua formação como leitor e sujeito. No capítulo 5, por exemplo, há o momento em que João, em sua breve estadia em um abrigo para menores, lê e explica trechos de Dom Quixote para os colegas inserindo os nomes deles na trama, de maneira a incluir os garotos, retendo as atenções e alegrando aqueles que participavam do momento.

Ao passo que o protagonista descobre as letras e se atém cada vez mais às cores e às dores das pessoas, uma comunidade de pessoas marginalizadas vai fazendo parte do seu cotidiano. Pouco a pouco, essas pessoas que historicamente são colocadas às margens ou mesmo abandonadas pela sociedade vão dando forma a uma espécie de família marginalizada de João, sendo constituída das prostitutas, Estela e Verônica, e dos idosos, dona Dinorah e Sr. Ramiro. É em meio a essa comunidade que João redescobre o afeto, seja pelos cuidados de mãe que Estela oferece ou por meio das conversas e conselhos de Sr. Ramiro.

O beijo na parede não é só um romance sobre uma criança brasileira abandonada e sobre racismo estrutural. Tampouco pode ser considerado apenas como uma narrativa pessimista e sem esperança. O trabalho que lança Tenório como romancista e que abre as portas para mais duas publicações, Estela sem Deus (2018) e O avesso da pele (2020), é também sobre amadurecimento emocional e acolhimento. A crítica social e a denúncia recaem sobre a falta de políticas públicas que acolham e reintegrem as pessoas desses grupos marginalizados ao passo que escancara as várias formas de preconceito incutidas na sociedade e as fragilidades do ser humano.

Por vezes, a narrativa se assemelha a momentos que o autor de fato viveu. Assim como João, Jeferson Tenório mudou-se do Rio para Porto Alegre e passou por dificuldades na nova cidade. O relato do escritor vai além, em entrevista concedida para a revista Z Cultural, em 2021, Tenório relembra sua chegada a Porto Alegre e as primeiras impressões sobre o frio, seja esse relativo à temperatura ou aos relacionamentos humanos. Relembra também como o racismo na capital gaúcha era e ainda continua sendo algo recorrente e normalizado. O romance em questão e o trabalho de Jeferson Tenório são relevantes para o debate acerca da questão racial ao mesmo tempo que promove a conscientização e articula a descoberta do racismo pela personagem principal.

Como narrador, João se dirige ao leitor em diversos momentos. Essa estratégia de escrita, que instiga a atenção e estimula a participação do leitor, diz muito não só da solidão do protagonista, mas do papel do leitor na literatura moderna e contemporânea, seja em prosa ou poesia. Em outras palavras, o leitor no romance de Tenório é retirado de um lugar meramente figurativo: o narrador interage diretamente com o leitor de O beijo na parede, estreitando o distanciamento entre a obra e quem a lê. Essa estrutura narrativa simula que o leitor teria a possibilidade de intervir e decidir sobre o que ele quer ler ou não. Esse procedimento oferece, para além de um efeito de maior intimidade entre narrador e leitor, uma leitura mais participativa e instigante.

O beijo na parede é um romance de narrativa inquietante, por vezes de linhas duras e sentimentos sufocantes, justamente por tratar das vulnerabilidades e da miséria humana. Em relação à miséria, o texto deixa explícito que não se trata apenas de falta de dinheiro, trazendo à tona uma miséria mais absoluta, que diz respeito à pobreza nas relações humanas e como esse desamparo afeta de maneira cruel a vida das pessoas mais necessitadas. João vai aprendendo a cuidar daqueles que, a princípio, cuidaram dele, alimentando o corpo e a alma de pessoas também perdidas e abandonadas. O menino passa a mitigar a tristeza em si e nas pessoas à sua volta, usando da imaginação, da literatura e do ato de recontar memórias e histórias para acessar e cuidar da saúde mental e física das personagens, especialmente dos dois idosos do prédio. Quando Sr. Ramiro, que passa a ser o melhor amigo do protagonista, diz a João: “Temos sempre que carregar alguma dor”, ele lamenta sua tristeza ao passo que revela uma lição ao garoto: é preciso viver e olhar para o abandono dos outros para encarar o próprio desalento e, sempre que possível, afastar a tristeza.

Para saber mais

RESENDE, Beatriz; AMARAL, Jorge; BANDEIRA, Lucas (2021). Agora é a minha vez: entrevista com Jeferson Tenório. Rio de Janeiro: Revista Z cultural. Disponível em: http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/agora-e-a-minha-vez-entrevista-com-jeferson-tenorio/. Acesso em: 10 jun. 2023.

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Como citar:

SILVA, Elvis Barbosa Caldeira.
O beijo na parede.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

29 set. 2024.

Disponível em:

2445.

Acessado em:

19 maio. 2025.