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Pssica

AUGUSTO, Edyr. Pssica. São Paulo: Boitempo; Belém: Samauma, 2015.

Jéssica Leonila de Sousa
Ilustração: Graça Craidy

Em Pssica, Edyr Augusto (Belém, PA, 1954) apresenta uma narrativa curta e densa em que tematiza o universo das drogas e do tráfico de mulheres por meio de uma violência pulsante que predomina em todo o livro. Com uma linguagem direta, sem uso intenso de metáforas e repleto de oralidade, o autor traça um panorama da criminalidade cotidiana do Brasil, mais precisamente de algumas regiões do Pará. Assim, ainda que ficcional, a obra é primordial para a compreensão do contexto atual brasileiro bem como para o entendimento de aspectos de estilo narrativo presentes na literatura brasileira contemporânea.

A narrativa apresenta os mais perversos crimes em um ritmo acelerado – que o autor consegue principalmente por uso dos sintagmas curtos e do discurso indireto livre. Em uma mesma página, muitos atos vertiginosos acontecem, pois a violência é banalizada e a vida não possui valor nenhum. A escrita de Edyr Augusto lembra, em certo aspecto, a de Rubem Fonseca no que se refere a um “realismo feroz”, segundo a definição de Antonio Candido sobre uma tendência narrativa da segunda metade do século XX. Essa ferocidade é relativa ao modo com que a narrativa agride o leitor por meio da violência não só temática como também formal, assim como a capacidade de retratar o mundo real despido de floreios, numa espécie de representação do mundo em sua total brutalidade.

Em menos de cem páginas, o autor apresenta um número extenso de personagens divididos em dois núcleos – um que se passa em Belém e outro que inicia em Marajó. Os capítulos são intercalados com esses núcleos em duas linhas de enredo. Além disso, o tempo na narrativa não é linear; portanto, acompanha-se o desenvolvimento desses dois grupos de personagens até que eles se encontram. Cada capítulo termina em uma cena de suspense, gerando a expectativa de que o próximo lhe dê continuidade, o que não acontece, uma vez que o capítulo seguinte retoma a outra linha narrativa. Esses recursos também são utilizados pelo autor em romances como Belhell e lembram as técnicas de montagem cinematográfica.

A narrativa se inicia com uma adolescente de 14 anos, Janalice, sendo expulsa da casa dos pais. Após ter um vídeo íntimo vazado em que praticava sexo oral com o namorado, ela foi enviada para morar com a tia no centro de Belém, no Pará. Logo no primeiro capítulo, a jovem é estuprada pelo namorado da tia, envolve-se com uma usuária de crack, é sequestrada e vendida para traficantes de mulheres como escrava sexual.

O segundo capítulo inicia com outra linha de enredo, apresentando a história de Manoel Tourinhos, natural de Angola, cuja trajetória é marcada por seu serviço como atirador durante a Revolução Angolana. Após o assassinato dos seus pais, ele fugiu para Portugal e, posteriormente, foi morar em Belém. Apesar de sua origem, Manoel foi apelidado de “Portuga” devido à sua pele branca.

Em um evento realizado na Ilha do Marajó, Manoel conheceu a mulher que se tornaria a sua esposa. O casal decidiu morar por ali e abrir um pequeno estabelecimento comercial. Em determinado dia, enfrentaram uma tentativa de assalto por parte de ratos d’água, uma espécie de piratas que roubavam cargas de navios e praticavam diversos delitos. Portuga, em sua defesa, mata um dos assaltantes e, em retaliação, os criminosos sequestram sua esposa e a matam de forma brutal, esquartejando-a. A partir disso, o percurso do personagem será vingar a morte de sua mulher.

O livro expõe questões como tráfico de mulheres, prostituição e exploração infantil, não pelo sequestro e venda de Janalice, mas também mediante outras personagens, que por vezes sequer são nomeadas, reforçando a ideia da banalização da violência; com isso, todas as vidas se tornam descartáveis. A ganância por dinheiro não é o único motivador para as brutalidades cometidas pelos personagens, mas o sexo, atrelado à relação de poder, também funciona como um mobilizador, um meio e quase como um fim. As temáticas se misturam e crimes, como roubo e assassinato, raramente aparecem sozinhos nas cenas: são acompanhados de crimes sexuais. Os poderes políticos também surgem emaranhados nesses temas e reforçam o elo entre hierarquia, crime, violência e barbárie.

Janalice percorre, como escrava sexual, diversas regiões do Pará, passa pelo Amapá e, por fim, chega à Guiana Francesa. Durante esse trajeto, o narrador conta as histórias de outros personagens que se envolvem com o garimpo, como é o caso de Manoel Tourinhos, e com a prática de roubo de carga, praticado pelo grupo de criminosos que assassinam a esposa de Manuel. As passagens narram os roubos das embarcações, que acontecem acompanhadas do estupro dos passageiros pelos assaltantes.

A obra é situada em Belém do Pará, mas, como outros livros do autor, o cenário poderia ser qualquer lugar do Brasil, pois representa os conflitos entre a urbanização pensada para não contemplar os problemas sociais existentes, deixando à margem a população mais vulnerável, com um Estado não só omisso, mas conivente com a corrupção. Apesar das riquezas naturais de Marajó e do alto índice populacional em Belém, o que reflete na alta arrecadação de impostos, tais recursos não são destinados aos serviços à população, situação que a obra mimetiza de forma convincente ao retratar a presença de riqueza e de miséria em um mesmo espaço.

No livro, surgem figuras políticas como um governador, um prefeito e um deputado, que são representados como personagens-tipo que assumem características e comportamentos já conhecidos da classe política. Esses personagens não só praticam corrupção e crimes hediondos, como utilizam todo o aparato estatal para encobrir tais atos e ganhar o apoio da população. Quase ao final da narrativa, os crimes cometidos pelos políticos são denunciados e noticiados, mas outras autoridades acobertam tudo, evidenciando a existência de um esquema amplo de corrupção.

Em 2017, foi noticiado que Andrea Barata Ribeiro, Bel Berlinck e Fernando Meirelles, da produtora O2 Filmes, adquiriram os direitos do livro para o cinema e que a adaptação marcaria a estreia de Quico Meirelles, filho do diretor de Cidade de Deus, no cinema. No site da editora Boitempo, Fernando Meirelles deixou comentários sobre seu fascínio pela escrita de Edyr Augusto, ressaltando aspectos formais do livro que muito se assemelham ao roteiro de filmes, tais como a quase preterição de descrição de personagens e de cenários, deixando a tarefa de preencher essas lacunas a cargo do leitor. Em entrevista à TV Boitempo, Edyr Augusto falou sobre a escolha do título e o significado da palavra “psica”, uma gíria que significa praga, maldição, mau-olhado. Segundo o autor, a palavra é muito usada em Belém e tem origem no nheengatu, língua indígena pertencente à família tupi-guarani. Ele a escolheu não só pela carga semântica, mas também pela sonoridade, e aproveitou o som sibilar para acrescentar mais um “s”, resultando em Pssica.

Tanto o conteúdo semântico quanto a sonoridade da palavra refletem de forma eficiente o conteúdo e a forma da obra: o plano semântico com seus percursos e desfechos de infortúnio dos personagens – principalmente no que se refere às temáticas do livro; a forma, pois comparar o prolongamento do som da palavra, por vezes incômodo, com a narração em discurso indireto livre causa uma estranheza inicial no leitor e prolonga a leitura de trechos com muitos eventos brutais, já que uma segunda leitura ao trecho se faz necessária para a compreensão, estendendo o incômodo na leitura.

Para saber mais

AUTIELLO, Sheila (2020). Da casa ao macrobordel: o remanescente colonial da escravidão e os (necro)negócios “gore” do Brasil contemporâneo, no romance “Pssica”. Tintas. Quaderni di letterature iberiche e iberoamericane, n. 9, p. 45-58. Disponível em: https://riviste.unimi.it/index.php/tintas/article/view/14624.

AUTIELLO, Sheila (2021). Necronarrativas em três romances contemporâneos brasileiros. Tese (Doutorado em Letras) – Instituto de Letras e Comunicação, Universidade Federal do Pará, Belém. Disponível em: http://repositorio.ufpa.br:8080/jspui/handle/2011/15324.

BELO, Geovane et al. (2022). A representação da criminalidade na narrativa de Pssica, de Edyr Augusto. In: CONGRESSO NACIONAL DE EDUCAÇÃO – Conedu, 8., 13 a 15 out., Maceió/AL. Anais […]. Campina Grande: Realize Editora, 2022. Disponível em: https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/88446.

CANDIDO, Antonio (2017). A nova narrativa. In: CANDIDO, Antonio. A educação pela noite. 6. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul.

MOREIRA, Alex (2018). Pssica, de Edyr Augusto: Amazônia laisse-faire ou o retorno ao inferno verde? In: ENCONTRO ABRALIC, 16., 30 jul. a 3 ago., Brasília, 2018. Anais […]. Brasília: Abralic, p. 2106-2120. Disponível em: https://www.abralic.org.br/anais/?ano=2018

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Como citar:

SOUSA. Jéssica Leonila de.
Pssica.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

29 set. 2024.

Disponível em:

2507.

Acessado em:

19 maio. 2025.