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Os supridores

FALERO, José. Os supridores. São Paulo: Todavia, 2020.

Juliana Florentino Hampel
Ilustração: Dona Dora

É consenso entre críticos da obra de José Falero (Porto Alegre, RS, 1987) que o tema da violência sistêmica perpassa sua produção. Segundo Ramiro Valdez (2022), em artigo a respeito de Os supridores (2020), o romance pode ser enquadrado na categoria “romance da violência”, quando esta opera como mediadora das relações sociais. Desse modo, o autor é capaz de promover “uma radiografia do conflito social contemporâneo” por escrever a partir de um lugar de pertença e enraizamento ou, como afirma a estudiosa Andrea Kahmann (2021), por “ser” e não apenas morar no lugar de onde e sobre onde escreve.

Falero, ao escrever a partir do fora, das bordas da cidade, de forma inseparável de sua experiência pessoal como morador do subúrbio e trabalhador braçal, burla as regras do jogo da linguagem. Ele escreve porque responde a um compromisso político que lhe dá a possibilidade de transpor níveis hierárquicos inovando a partir de espaços de desprestígio. Assim, consagra-se como um escritor que é espectador e, ao mesmo tempo, participante do “jogo do fora” das regiões distantes do centro, onde tudo é diferente: ali se fala outra língua, há outras crenças, percepções e ambições que, para serem recriadas ficcionalmente, exigem um novo tipo de linguagem.

O romance Os supridores é a segunda obra publicada por Falero, o qual foi finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura em 2021, além de vencedor do Prêmio AGES no mesmo ano. Antes dele, Falero havia publicado o livro de contos Vila Sapo (2019), pela editora independente Vienas Abiertas, e, depois, Mas em que mundo tu vive? (2021), uma coletânea de crônicas. As três obras têm o mesmo cenário – a periferia porto-alegrense – e retratam o dia a dia de seus habitantes e trabalhadores mais desprezados, como faxineiros, garçons e repositores, e o preconceito diário sofrido por esses cidadãos.

O enredo nos coloca em contato direto com a trajetória de dois colegas, Pedro e Marques, que trabalham como repositores na filial de uma rede de supermercados e que, não encontrando meios de alterar seu status social, decidem vender maconha para filhos de famílias ricas que usam a droga como entretenimento. A maconha é escolhida em detrimento de outros narcóticos por algumas razões elencadas por Pedro, que é o idealizador do negócio. A primeira é que se trata de um entorpecente não desejado pelas facções do bairro, por reverter pouco lucro a seus distribuidores, o que permitiria que os dois se tornassem apenas trabalhadores autônomos e escapassem da violência perpetrada por esses grupos em busca do domínio espacial de potenciais áreas de distribuição. O segundo motivo é não ter que prestar contas a um patrão, já que a proposta de Pedro é de divisão igualitária dos lucros, em um projeto com feições marxistas.

Nos debates que tem com Marques, Pedro argumenta que “pra início de conversa nunca quis ser um traficante”. No entanto, ele “também não queria o que tavam [lhe] enfiando goela abaixo: a vida fodida que [ele] tinha. [Ele] queria era dinheiro”. Como o colega continua desconfiado, Pedro inicia mais um de seus monólogos sociopolíticos presentes a todo momento no romance, demonstrando o arcabouço cultural adquirido durante as intermináveis viagens de ônibus no percurso casa-trabalho, em que ele “desenvolvera – a duras penas – a invejável capacidade de ler no ônibus sem ter enjoo”, tendo assim descoberto a obra de autores como Karl Marx, Shakespeare e Agatha Christie. É com base nesses pensadores que toma a decisão irreversível de “vender maconha como forma de abandonar o rumo inglório em que estava alinhada sua patética vida de cidadão trabalhador”, para, por fim, “entrar de penetra na grande festa da gastança despreocupada, para a qual nunca fora nem seria convidado”.

Desse modo, ele procura explicitar ao companheiro de trabalho que as ideias de meritocracia, fundadas no mito do esforço individual e apresentadas no vídeo usado no treinamento de novos funcionários da rede de supermercados Fênix, são mentiras perpetradas pelas classes dominantes para naturalizar a desigualdade e a exploração que fundamentam o mundo do trabalho sob a égide do sistema capitalista, no qual as leis do Estado só existem para proteger o lucro dos patrões sobre o esforço dos trabalhadores. “Te liga nessa viagem […] Imagina que tu abre o teu próprio negócio […] Na real tu merece ficar com todo o lucro do negócio […] Todo dinheiro que é fruto do teu esforço pessoal, do trabalho que tu realiza, tudo tem que ser teu”. Mas, como ele continua explicando ao amigo, o “tal do empreendedor” não pensa assim, pois ele visa ao lucro: “Eles não se preocupa com a pessoa. […] Eles quer só se aproveitar da situação pra ganhar mais e mais dinheiro, sem precisar trabalhar mais e mais eles mesmo”.

Todos esses diálogos e pensamentos estão enredados em uma trama que expõe a queda e a ascensão do percurso da gente periférica durante o período de mais ou menos dois anos – os registros vão de 2009 a 2011 –, nos quais se contrapõem os discursos diretos das personagens, simulando uma linguagem pertencente a um determinado grupo social no momento de sua realização, repleta de escolhas que se distanciam da gramática normativa, e o discurso do narrador, no qual a língua adquire contornos mais formais, com o uso, por exemplo, do pretérito mais-que-perfeito, que não pertence ao linguajar popular.

O trabalho com a linguagem é primoroso na alternância dos registros formal e informal da língua, contando com a presença de um narrador revelado inesperadamente nas páginas finais do livro, que vai aos poucos descortinando uma “geografia da violência”. Em diversos trechos, ele evidencia ao leitor as condições precárias do próprio protagonista em seu trajeto centro-periferia, “no interior do outro ônibus, em pé, apertado entre trabalhadores cansados, [quando] Pedro perdeu-se em pensamentos, contemplando a noite pela janela”, além da desigualdade do espaço urbano: “À medida que o veículo avançava em direção ao extremo leste da cidade, a paisagem ia se tornando mais hostil e miserável diante de seus olhos”.

O narrador também explica ao leitor a violência simbólica presente na narrativa, materializada na distinção de classe que impede os moradores de usufruírem de bens culturais disponíveis a eles – a “Vila Lupicínio Rodrigues era o indesejado quintal dum importante centro cultural do mesmo nome” –, mas que, apesar disso, existia “só para provar que a distância entre a cultura e as pessoas pobres não era física”, dado que os moradores da vila não frequentavam o espaço, pois “era como se soubessem, ou sentissem, que aquilo não estava ali para eles, como de fato não parecia mesmo estar”.

O discurso de Pedro se aproxima ao do narrador em terceira pessoa, porém com um registro totalmente diferente: “E do ponto de vista deles, a gente só nasceu nas condição que a gente nasceu porque nossos pai foro preguiçoso; e a gente só continua nas mesmas condição porque a gente também é preguiçoso”. Daí resulta a inovação da escrita de Falero, composta por uma experimentação com a linguagem poucas vezes vista, repleta de gírias locais, “atropelos” sintáticos e de um discurso elaborado no presente pelo falante que tem a necessidade de uma expressão pungente, violenta, ágil e feroz, adequada para refletir a realidade desses espaços marginais invisibilizados: “a gente não pode querer o que eles têm, a gente só pode aparecer lá, no castelo, se for pra limpar o chão ou podar os arbusto, e depois disso, a gente que volte pro buraco de onde a gente veio”.

Apesar da dureza e da crueldade evidenciadas nas páginas de Os supridores, sua mensagem final soa como um questionamento ao leitor  sobre o espaço da periferia como produtor exclusivo da violência que assola o Brasil. Ao narrar a trajetória de jovens periféricos submetidos a empregos formais mal remunerados e que optam por trabalhar no narcotráfico a fim de alcançarem melhores condições de vida para si e para as pessoas que amam, Falero sugere a hipótese de que a desigualdade social, a maior das violências a que as populações vulneráveis são submetidas, na realidade vem de cima para baixo, do centro para as bordas, quando os poderosos buscam aprisionar os cidadãos ditos de terceira classe em posições subalternas.

A presença de um narrador que nasce a partir dessas experiências e que procura entender a razão de tudo isso acontecer pode ser interpretada como a tentativa do autor de encontrar saídas não violentas para a situação. Ou seja, ao munir o cidadão de conhecimento sobre sua própria condição, Falero o arma para que possa escapar ou até mesmo eliminar a violência que prevalece entre nós. A literatura, assim, surge como recusa à desumanização e a todo processo de exploração que insistem em pôr em jogo a dignidade humana.

Para saber mais

KAHMANN, Andrea Cristiane (2021). A literatura trânsfuga de José Falero. Aletria, Belo Horizonte, v. 31, n. 3, p. 97-118. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/29268. Acesso em: 20 jul. 2023.

LIMA, Alvaro Moreira (2022). Os “crias” do nosso Brasil: a relação entre ficção literária e realidade social em Os Supridores de José Falero. Lavrapalavra, São Paulo, 4 jul. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2022/07/04/os-crias-do-nosso-brasil-a-relacao-entre-ficcao-literaria-e-realidade-social-em-os-supridores-de-jose-falero/. Acesso em: 15 jun. 2023.

VALDEZ, Ramiro (2022). Os Supridores, de José Falero: uma radiografia das violências no Brasil contemporâneo. Revista Contraponto, v. 9, n. 2, p. 132-151. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/contraponto/article/view/129107. Acesso em: 15 jun. 2023.

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Como citar:

HAMPEL, Juliana Florentino.
Os supridores.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

29 set. 2024.

Disponível em:

2502.

Acessado em:

19 maio. 2025.