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Os sinos da agonia

DOURADO, Autran. Os sinos da agonia. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1974.

Selma Vital
Ilustração: Manuela Dib

A literatura de Autran Dourado (Patos de Minas, MG, 1926-2012) é marcada pela presença do barroco e por referências ao teatro grego. Ambos os elementos se destacam em Os sinos da agonia, romance publicado em 1974 e laureado com o Prêmio Paula Brito, um entre os vários que o escritor recebeu ao longo da carreira, incluindo os prestigiosos Camões (2000) e Machado de Assis (2008), pelo conjunto de sua obra.

Ambientada no século XVIII, na cidade de Vila Rica, a trama remete ao mito grego de Hipólito e Fedra e às suas releituras nas tragédias de Racine e Eurípedes. Embora muitos trabalhos acadêmicos estabeleçam e investiguem as associações ao mito e às tragédias por ele inspiradas, a leitura (e compreensão) da obra não prescinde conhecê-las.

A narrativa retrata o declínio da exploração do ouro no período colonial e em alguns momentos sugere, sem citar, a iminência da Derrama, evento que desencadearia a Inconfidência Mineira. O próprio autor, contudo, nega caráter de romance histórico à sua obra, inclusive evita o uso de datas ou nomes de personagens reais.

De qualquer forma, muitas das descrições são fiéis ao período, demonstrando acurada pesquisa histórica por parte do autor, o que pode justificar o tempo que a obra levou para ser escrita: três anos. Segundo afirmou Dourado em entrevista à Folha de S. Paulo, em julho de 2005, o livro que mais tempo exigiu dele.

O romance se divide em quatro partes, ou jornadas, número similar aos atos numa tragédia. A voz do narrador heterodiegético se mistura aos pensamentos dos personagens. Assim, a primeira jornada nos apresenta Januário, fugitivo, mameluco, filho bastardo, que volta a Vila Rica, onde pesa sobre ele acusação do assassinato do “potentado” (designação bastante usada ao longo da narrativa) João Diogo. Este, por sua vez, marido de sua amante e grande paixão, Malvina. Tudo isso, no entanto, não fica claro ao princípio. Aliás, vamos nos inteirando da trama aos poucos, sob as perspectivas dos narradores que se sucedem nas jornadas seguintes. Na segunda, conhecemos João Diogo e ficamos sabendo do casamento dele com Malvina e do amor desta por seu enteado, Gaspar, a quem o narrador se volta na terceira jornada.

A jornada final alterna as vozes de Malvina, Gaspar e Januário. Testemunhamos as reflexões de cada um sobre os fatos finais, incluindo a dos escravizados Inácia e Isidoro, cujas digressões revelam personagens menos simples do que se supõe ao princípio. Especialmente Isidoro, que vai nitidamente se transformando e fortalecendo ao longo de sua própria jornada.

Em linhas gerais, João Diogo Galvão é um viúvo, dono de grande fortuna. Apesar de muito próximo ao Capitão-general, representante do reino nas minas, suas origens obscuras o levam a buscar uma esposa de família nobre, em Taubaté, interior de São Paulo, que emprestasse certo brilho à sua posição de potentado em Vila Rica. A barganha é também conveniente para a aristocrática, mas decadente, família da noiva, que vê no abastado João Diogo a oportunidade de retorno aos tempos de glória. A filha prometida, Mariana, é, no entanto, trocada pela caçula, Malvina, que de forma premeditada seduz o noivo da irmã.

Por conta da beleza e da desenvoltura da jovem esposa nas artes do sexo, João Diogo se coloca, sem restrições, à mercê dos caprichos de Malvina, deixando-se vestir melhor e até morar em condições mais confortáveis por influência dela o que, deduz-se, o coloca mais à altura de sua posição social na colônia.

Talvez por tédio ou interessada em despertar o ciúme de Gaspar, seu casto enteado e enamorado, Malvina se envolve num arriscado caso de amor com Januário. O adultério acontece sob o teto de João Diogo e de Gaspar, com a ajuda de Inácia, “escudeira” fiel de Malvina.

Januário, manipulado pela ruiva Malvina, cujos encantos são sempre descritos em tons superlativos, é incensado a cometer um crime da forma mais covarde, com a promessa de que a amante fugiria com ele. Malvina não cumpre a parte do acordo e Januário acaba preso, só conseguindo fugir com a ajuda do pai, homem branco de certo prestígio na região.

Os leitores são apresentados a Januário quando ele retorna a Vila Rica, onde tudo está preparado, com grande festividade, para sua “morte em efígie” e esperado enforcamento.

Dourado carrega nas tintas do maniqueísmo ao compor alguns dos personagens. Enquanto Gaspar, o casto e bravo caçador, tem ares de arcanjo, Malvina é o arquétipo da malvada. Poucas vezes suscita simpatia, mesmo quando esta seria plausível. Afinal, não surpreende nem seria totalmente condenável o amor por Gaspar. Ambos são jovens, sensíveis, apreciadores de música. Mesmo o peso de uma relação incestuosa seria diluído, considerando que os dois são próximos em idade e que não se conheciam antes do casamento. Ela também não ofendia a memória santificada da mãe de Gaspar, porque antes de conhecê-la João Diogo era viúvo há anos. Paradoxalmente, João Diogo se torna um homem melhor, mais afeiçoado ao filho, graças à influência dela.

Mas nada disso merece nota. Malvina, não nos esqueçamos, também “rouba” o noivo da irmã, escolhe Januário como amante, sendo este por diversos fatores o mais vulnerável hierarquicamente, e o chantageia para conseguir se livrar de João Diogo. Para piorar, subjuga a envergadura moral de Gaspar, ponto bem definido na narrativa, reforçando a vilania de Malvina ou, mais provável, sua total falta de bom senso.

A pesquisa de Dourado fica evidente, seja na estrutura do romance, seja no vocabulário selecionado ou nos detalhes que informam o universo da Vila Rica setecentista, mas nem por isso a narrativa se torna pesada. O narrador ulterior garante o tom clássico, adequado, sem ser hermético e a transição de foco narrativo flui com naturalidade.

À parte o drama romântico, os elementos barrocos merecem atenção especial. A morte em efígie, por exemplo, ritual ao qual o autor se refere nas epígrafes do livro, consistia em uma farsa na qual um boneco era torturado e “morto” na ausência do condenado. Na prática, indicava infâmia gravíssima que implicava na perda de todos os direitos, diante da família e da sociedade, e confisco de bens. Além disso, qualquer pessoa poderia matar o condenado sem risco de punição.

Consta que o ritual da morte em efígie teria sido o mote do livro para Dourado. Talvez por isso alguns críticos vejam na obra mais do que a versão de um clássico grego, mas uma referência velada ao período da ditadura militar, no qual o Brasil ainda estava mergulhado quando o livro foi lançado, e sob o qual algumas pessoas foram exiladas e de alguma forma usurpadas de seus direitos civis. Por fim, os sinos do título, que já prenunciavam agonia, recebem do narrador explicação quase didática e nos dá a oportunidade de aprender sobre o significado do número e do tom das badaladas e de seu papel na vida da comunidade colonial.

Para saber mais

GOMES, Evellin Naianna Souza Oliveira; BARROS, Flávia Aninger de (2022). Nas tramas do destino: os fios de Malvina. Gláuks Revista de Letras e Artes, v. 22, n. 3, p. 31–47. Disponível em: https://doi.org/10.47677/gluks.v22i3.322. Acesso em: 14 jul. 2023.

RUFINO, Nathaly de Oliveira; MARQUES Rodrigo de Albuquerque (2018). A ficção e a construção narrativa em Autran Dourado: algumas considerações. Revista Água Viva, v. 3, n. 2, p. 1-12. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/aguaviva/article/view/23536. Acesso em: 17 jul. 2023.

SILVA, Marisa Correa; OLIVEIRA, Vicente Soares de (2004). Os sinos da agonia, de Autran Dourado: tragédia clássica e romance pós moderno. Revista Via Atlântica, n. 7, p. 11-120. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/49791/53895. Acesso em: 14 jul. 2023.

FIGUEIREDO, Nathaniel (2014). Mito e símbolo em Autran Dourado: uma leitura de Os sinos da agonia pela perspectiva do imaginário. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande. Disponível em: https://repositorio.furg.br/handle/1/6101. Acesso em: 17 jul. 2023.

LIMA. Susana (2004). Identidades nas fronteiras: espaços possíveis em Os sinos da agonia, de Autran Dourado. Estudos da Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 23, p. 67-87. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/8991. Acesso em: 14 jul. 2023.

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Como citar:

VITAL, Selma.
Os sinos da agonia.

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brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

29 set. 2024.

Disponível em:

2494.

Acessado em:

19 maio. 2025.