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Ode de Ana Maria

ALMEIDA, Simão Farias. Ode de Ana Maria. João Pessoa: Ideia, 2016.

Ivanilde de Lima Barros
Ilustração: Manuela Dib

Ode de Ana Maria, publicado pela editora Ideia em 2016, é o oitavo livro e primeiro romance escrito por Simão Farias Almeida (João Pessoa, PB). O autor é paraibano, morador de Roraima há mais de 18 anos, doutor em Letras, Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), professor do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e escritor de contos e roteiros de cinema, publicados pela mesma editora.

O romance Ode de Ana Maria tem 16 capítulos que se concentram em narrar como cada um dos personagens viveu o dia posterior à tragédia que assolou toda população do distrito, um lugar em que prevalecem exploração ilegal do meio ambiente e disputas por terras. Inserido na temática que é também abundante na produção científica de Simão Farias Almeida, o livro aborda questões de proteção ambiental, direitos dos povos originários e integração das existências.

Ana Maria mora na zona rural do distrito e sua casa se situa numa convergência de terras de outros donos: a sala dela ficava no terreno da grande fazenda do Coronel Tonico; o quarto ficava no território de uma fábrica adquirido ilegalmente ao se apropriar de boa parte do terreno da fazenda e de grande parte do território indígena; e a cozinha, no território indígena wai-wai.

O primeiro capítulo narra Ana Maria chegando ao cartório para tratar do processo em que reivindicava, juntamente com o Coronel e os wai-wai, as terras ocupadas indevidamente pela fábrica, mas não obteve sucesso porque os representantes não compareceram à audiência. Embora fosse contra a fábrica, o Coronel lutava para reaver também a parte da fazenda em que estava a casa de Ana Maria porque, movido por ganância, afirmava que não cederia nenhum palmo de terra a ninguém.

Os pais de Ana Maria haviam trabalhado para o coronel, mas foram assassinados por Tomaz, o capataz da fazenda, quando tentavam impedir que ele violentasse Ana, como fez a vida toda com a filha do Coronel, a menina Alice. Após assistirem ao assassinato dos pais, Ana e sua irmã mais velha, Maria Clara, conseguem fugir, e ambas são sustentadas por um bom tempo pelo vaqueiro Firmino, a alma genuinamente boa do distrito. O Coronel Tonico sabia dos abusos da própria filha e de Ana Maria, assim como de tudo que houve na morte dos pais dela, mas nunca fez nada para defender ou punir alguém.

O presente, enquanto temporalidade de cada personagem, é narrado a partir do mesmo dia na vida de todos os moradores, o dia em que um nevoeiro denso de poeira invade o distrito. Nesse dia, todos eles, além de flutuarem, se sentem extremamente cansados, doentes ou com alguma lesão e tudo à volta e dentro deles está cheio de barro, inclusive seus próprios pulmões. Na casa do Coronel, por exemplo, à mesa de jantar, as travessas servidas pela empregada Maria estão cheias de barro, para a surpresa dos convidados, que involuntariamente começam a expelir formigas pelos ouvidos, narizes e bocas, enquanto só o Coronel expelia minhocas. Essa transcendência em relação ao “real” parece não estar na ordem do realismo fantástico e sim na conexão de existências de mundos e planos diferentes por vias xamânicas que, para além de metáforas, são experiências de outras vivências.

Cada capítulo traz memórias de infância ou de épocas específicas na vida dos personagens; são lembranças que dialogam com as suas atividades, relações e escolhas. Entretanto, essa organização em idas e vindas mescla ações e temporalidades de uma forma que, em certos pontos, torna difuso estabelecer uma relação mínima de causalidade. Diante do desafio de narrar o que ocorre com existências que fogem à lógica e à razão comuns, o romance acaba por criar um estado de incompreensão devido aos fios desencontrados da própria tessitura narrativa.

Todos os personagens formam vínculos que os colocam em situações conflituosas originadas de disputas de poder, dinheiro e terras. O padre do local, por exemplo, recebia propina do Coronel Tonico, vinda pelas mãos de Tomaz. Enquanto o Coronel subornava o padre em troca de apoio junto aos fiéis, a beata roubava esse mesmo dinheiro da sacristia para entregá-lo ao dono da fábrica, cujo intuito era empobrecer indiretamente o Coronel Tonico. O dono da fábrica também patrocinava ataques aos indígenas wai-wai que, por sua vez, se defendiam das investidas ao mesmo tempo que tentavam manter ativo o turismo ambiental à comunidade e à floresta como forma de conscientização.

Cada conflito é narrado como ação ou lembrança de um personagem, tendo o foco na participação que este desempenhara. Já Ana Maria, apesar da presença no título, o que anunciaria protagonismo, não ocupa o lugar central que comumente se aplica às personagens de romances. O capítulo de abertura e o penúltimo falam dessa personagem, que permanece quase esquecida no restante do enredo, não se relacionando com as outras ações principais.

É possível um diálogo entre o enredo do romance e o desastre ambiental de Mariana (MG) ocorrido em 2015, ano anterior à publicação do livro. A tragédia de Mariana degradou 240,88 hectares de mata atlântica, matou 14 toneladas de peixes e atingiu reservas indígenas de três etnias. No âmbito ficcional, a narrativa opta por resolver e encerrar as disputas e os conflitos pelo viés do etéreo, dos castigos e das recompensas pós-morte. Esse caminho parece uma opção confortável ao lidar com questões tão complexas que envolvem violências e sobre as quais há avultada indignação por parte das populações mais atingidas, como os povos originários, ribeirinhos, quilombolas, entre outros moradores de áreas cobiçadas por mineradoras no Brasil.

A ode é uma entrega, o canto final em que Ana Maria vê a justiça sendo feita. Ela e os outros personagens do distrito são a chance de o ambiente ressurgir, recuperando-se da dor do desastre. A poesia do baile impressionista que é a narrativa de Ode de Ana Maria é construída pelos períodos curtos e pela linguagem figurada que rematam sentimentos de dor pela morte misturados à insistente continuidade.

Para saber mais

CARVALHO, Raíssa (2016). Cultura. Obra conta a história de uma mulher que luta pelo direito de moradia. Folha BV, Boa Vista, 11 dez. Disponível em: https://www.folhabv.com.br/variedades/cultura/obra-conta-a-historia-de-uma-mulher-que-luta-pelo-direito-de-moradia/. Acesso em: 16 ago. 2023.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (2015). O desastre. Disponível em: https://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-samarco/o-desastre. Acesso em: 14 ago. 2023.

Iconografia

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Como citar:

BARROS, Ivanilde de Lima.
Ode de Ana Maria.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

29 set. 2024.

Disponível em:

2483.

Acessado em:

19 maio. 2025.