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O nome do Bispo

TAVARES, Zulmira Ribeiro. O nome do Bispo. São Paulo: Brasiliense, 1985.

Cristiane Côrtes
Ilustração: Telma Scherer

A paulista Zulmira Ribeiro Tavares (São Paulo, SP, 1930 – São Paulo, SP, 2018) foi uma intelectual e pesquisadora. Escrevia crítica de cinema e publicou, além de romances, contos e poesias. Dos nove livros publicados, destacam-se Termos de comparação (1974), Joias de Família (1990) e Região (2012). Vesúvio (2012) foi sua última obra publicada de poemas inéditos. A autora também ministrou um curso de pós-graduação em cinema na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, além de ter sido conselheira da Cinemateca Brasileira.

Mesmo com reconhecimento da crítica, Tavares não é uma escritora conhecida pelo grande público. O romance de estreia da autora, O nome do bispo, publicado em 1985 pela editora Brasiliense, foi muito bem recebido pela crítica e premiado em 1986 como melhor obra nacional de ficção. Em 1991, a autora recebeu o Prêmio Jabuti com seu segundo romance, Joias de família, na categoria Livro do Ano de Ficção.

A obra de 1985 apresenta o protagonista Heládio Marcondes Pompeu e seu drama existencial suscitado por uma fístula no ânus que o leva, durante os dias de internação para a sua retirada, a revisitar sua vida e as personagens que fizeram parte de seus maiores dramas. Episódios do passado são recuperados nos devaneios do narrador numa trama burlesca que desvenda a tradicional elite paulista pela porta dos fundos, na qual os “cômodos inferiores” estão expostos e as aparências não enganam mais.

O romance apresenta um enredo aparentemente simples centrado na figura do decadente Heládio, herdeiro do importante nome do bispo tio-avô paterno. Dividido em dois níveis, o narrador onisciente conduz o leitor a uma trama em primeiro plano que se ocupa da trajetória desse senhor de meia idade desde a internação decorrente de um aborrecimento causado pelo incômodo anal – descrito como uma espécie de “prolongado, sensível e caracolante rabo” – e os preparativos da operação até o pós-operatório e a alta, precedida de um “tombo homérico de comédia pastelão”, nas palavras de Schwarz no posfácio da obra. O segundo nível, elaborado a partir de flashbacks, constrói uma crítica que desmantela o perfil sofisticado da elite paulista, revelando a sua decadência.

O protagonista Heládio é descrito como um senhor modesto de 50 anos pertencente a uma tradicional família paulistana. É corretor do ramo imobiliário e não chegou a completar os estudos de Direito sob o pretexto de uma doença infecciosa recorrente, a mononucleose atípica. Na tentativa de se encontrar na profissão, abriu uma loja de eletrodomésticos, com a ajuda do pai, empreendimento também fracassado após a morte do genitor. O casamento, também mal-sucedido, gerou um filho e prejuízos com a divisão dos bens herdados do pai. Ele experimentou ampliar os negócios, diversificando as atividades: venda de máquinas operatrizes, esquadrias de alumínio e produtos agrícolas, ano após ano em queda apesar da proteção materna. Todos esses fatos, associados à infância e à adolescência, são apresentados a partir da ala velha no hospital Santa Teresa, onde Heládio está internado, sozinho, para resolver o inconveniente provocado pelos “cômodos inferiores”, termo que nomeia o primeiro capítulo da obra.

As vivências pessoais, experiências e dores se misturam aos devaneios do herdeiro. O deslumbramento pela família cede, aos poucos, lugar ao declínio de uma geração fracassada. Tio Oscar, tia Clara Nardelli, tia Maria da Glória, prima Vivi, primo Afonso e vovó Maroquinhas surgem no capítulo “Mágicas” entre os afiados comentários da prima e os shows do branquíssimo tio Oscar, um ilusionista que chegou a ser confundido com um lorde inglês quando se hospedou na Inglaterra. Heládio, então com dez anos, encanta-se com as apresentações de magia do tio farsante. A narrativa se desvencilha do passado e cede lugar a um narrador de segundo plano capaz de penetrar na grande farsa que o protagonista insiste em manter nos escombros de sua memória. À medida que a narrativa avança, um sofisticado jogo de ilusão revela, por exemplo, que o pitoresco e eclético tio Oscar esconde seu rosto negro por trás da ilusão eurocêntrica típica da burguesia brasileira: “Esse rosto negro, interior, sempre esteve escondido por detrás do rosto da superfície, mas sempre o marcou aqui e ali em uma modelagem discreta, todavia firme e bastante perceptível: o crespo do cabelo, a conformação das narinas.”

Os episódios recuperados pelo narrador revelam aquilo que pertence à porta dos fundos e escoa através da “fissura anal, a pequena estúpida ferida aberta, o nítido corte, tumultua e trunca não apenas essa, como todas as outras formas de acordo que até então vem ele mantendo com o mundo”. O que se pode considerar como segundo plano da narrativa é normalmente desencadeado pelos analgésicos e anestesias, liberando o fluxo de consciência e revelando uma realidade dos “Pompeu”, mantida nos cômodos inferiores, até então inacessível.

Os capítulos seguintes ocupam-se em destrinchar a elite paulista e a invenção de uma tradição escondida atrás da arrogância e da hipocrisia, tecidas em uma narrativa ensaística cuidadosamente construída. A estrutura da obra revela um projeto estético atento. A situação ridícula marcada pela fissura anal reverbera em uma seleção vocabular dentro de um campo semântico específico descrito de início como “cômodos inferiores”, “vida interior”, “rabo caracolante”, para finalmente reconhecer a dor de um “beliscão no cu”. Outro aspecto da seleção vocabular é a repetição de certas palavras que desencadeiam as impressões que o leitor construirá no que se pode chamar de “plano de fundo da narrativa”, como a afirmação “estou só” repetida enfaticamente cada vez que alguém pergunta a Heládio onde está seu acompanhante, já que é praxe estar acompanhado em procedimentos cirúrgicos. A ênfase na ausência de uma companhia já revela um problema que o protagonista se esforça para esconder.

Assim como a máscara de tio Oscar cai expondo o rosto negro, Heládio é desnudado em sua vida ridícula mascarada por um aparente equilíbrio, um vocabulário pomposo e uma intelectualidade mentirosa. Uma pilha exagerada de livros evidencia a vida de aparências a que Heládio pertence e sua tentativa de esconder a vida medíocre e comum que levou até então. A evidência de que o protagonista não leu e nem lerá as obras empilhadas em sua escrivaninha fazem parte da vida empolada, desmascarada pela refinada ironia presente na obra, como atesta Schwarz em seu texto “Um romance paulista”, assinado como posfácio do romance. O crítico afirma que a hábil narrativa parte de uma simples fissura anal para despertar o “embananado herdeiro” de seus medos e expor as vergonhas suas e de sua família, sintetizando a problemática modernização da elite brasileira, pois a ficção “compõe um destes seres híbridos e racionais em que se reconhece a consistência do moderno”.

A tentativa de resumir uma obra tão complexa já revela a habilidade de Zulmira Tavares em narrar. A fissura presente na relação entre a burguesia paulistana e o moderno, apresentada numa perspectiva histórico-materialista, denota a erudição de uma autora que deveria pertencer ao elenco dos grandes nomes da prosa brasileira. Compara-se a autora ao modo de narrar de Machado de Assis pela acidez na construção da ironia, pela astúcia no jogo de mascarar e desmascarar a perversidade e a mediocridade da sociedade brasileira. Nesse sentido, a obra atende ao leitor que procura uma trama desafiadora, seja pelo diálogo com o ensaio, seja pelo olhar cirúrgico em descrever a realidade da tradição paulista. Assim, a leitura de O nome do bispo, de Zulmira Ribeiro Tavares, é emblemática por evidenciar as fissuras da sociedade moderna.

Para saber mais

BRANDÃO, Luís Alberto (2005). Porosidades – O imaginário da tradição: Zulmira Ribeiro Tavares. In: BRANDÃO, Luís Alberto. Grafias da identidade: literatura contemporânea e imaginário nacional. Rio de Janeiro: Lamparina; Belo Horizonte: Fale (UFMG).

GUEDES, Flávia Cristina de Araújo (2020). A nação, a família e o herdeiro: romance e sociedade em O nome do bispo, de Zulmira Ribeiro Tavares. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Universidade de Brasília, Brasília.

MASSI, Augusto (2012). Posfácio: Prosa de fronteira. In: TAVARES, Zulmira Ribeiro. Região ficções etc. São Paulo: Companhia das Letras.

PEN, Marcelo (2004). Ficção afiada de O nome do bispo retorna em nova edição. Folha de S. Paulo, Ilustrada, São Paulo, 21 ago. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2108200406.htm. Acesso em: 2 jun. 2024.

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Como citar:

CÔRTES, Cristiane.
O nome do Bispo.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

29 set. 2024.

Disponível em:

2478.

Acessado em:

19 maio. 2025.