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O mundo de Flora

GUTIÉRREZ, Angela. O mundo de Flora. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; Casa de José de Alencar, Programas Culturais, 1990.

Thays Albuquerque
Ilustração: Manuela Dib

O mundo de Flora, romance de estreia de Angela Gutiérrez (Fortaleza, CE, 1945), está centrado nas aventuras da protagonista que dá título ao livro, em diversos momentos da vida de Flô/Florzinha, do nascimento à morte, passando pela memória de quatro gerações de sua família e por cerca de um século de particularidades históricas do Brasil. Nesse percurso, é possível acompanhar as noites insones de Flô, sua paixão pelos livros, as brincadeiras de criança, o sabor do sapoti e da manga em suas lembranças de menina, a primeira menstruação, a entrada na vida adulta com dores e conflitos específicos, como a perda de um filho e uma doença “sem jeito”. A narrativa passeia pela cidade de Fortaleza, no Ceará, os costumes e a vida cotidiana durante o decorrer do século XX.

Angela Gutiérrez é professora universitária cearense. O mundo de Flora obteve em 1987 o Prêmio Estado do Ceará, por unanimidade de votos, e foi publicado, em 1990, pela Universidade Federal do Ceará (Casa José de Alencar, Programas Culturais). Gutiérrez seguiu a carreira literária e publicou títulos como Canção da menina (1997) e Avis rara (2001), além de ter sido eleita em 2019 presidenta da Academia Cearense de Letras, sendo a primeira mulher a ocupar essa posição.

A escritora valeu-se de atributos biográficos na criação da protagonista e chegou a confirmar ter-lhe emprestado “várias de suas características, vivências e experiências” (Kataoka, 2009). O fato de ser professora de Letras também pode ter influenciado no enredo, já que se torna notória a ampla bagagem de leitura da protagonista com meditações em torno da intertextualidade e de questões da linguagem. A narrativa oferece uma aproximação do universo que rodeia Flora com as memórias de seus parentes, uma família abastada do Nordeste brasileiro. A protagonista é uma menina/mulher branca e rica, que possui um olhar atento sobre as experiências pessoais, os acontecimentos da cidade de Fortaleza e alguns burburinhos socioeconômicos e de gênero.

O que se destaca na obra, sem dúvida, é a fragmentação como uma característica que estrutura os capítulos curtos, com distintas vozes narrativas e permeados por uma variedade de gêneros: carta, poema, diário, conto infantil, cantiga etc. Essa multiplicidade gera artifícios no desenvolvimento da trama romanesca no desdobramento, por exemplo, do tempo do relato, em que se alterna a voz narrativa entre a primeira e a terceira pessoa; a protagonista aparece ora criança ora adulta, pois há uma sobreposição de tempos. Além disso, a primeira pessoa não se restringe a Flora Fernández. Outros personagens assumem a primeira pessoa em determinados momentos para contar micro-histórias dentro da narrativa principal delineada pela personagem central. Por fim, a autora apresenta ainda capítulos em que não há um narrador em si, apenas o diálogo de personagens, o que reverbera em um tom teatral.

A tentativa de um entendimento mais estrutural da obra aparece no final da edição de 2008, em que se apresentam dois tipos de sumário. O primeiro está relacionado ao espaço em que se divide a trama: em Casarão, Matosinhos e Cidade. O outro reflete as questões temáticas em esferas como: Flora no espelho de papel; Papéis amarelos de Flora; Labirinto da memória (Retalhos de vida e de morte também); Estórias, causos, missivas, cantorias e outros que tais; Conversas fiadas e outras nem tanto. Essa organização em esferas pode ajudar nos estudos sobre o romance, já que há uma heterogeneidade de lugares, épocas e vozes narrativas.

Nesse sentido, o embaralhamento gerado durante a leitura sobre quem está narrando fica aguçado também, porque há uma repetição dos nomes próprios entre várias gerações da família; por exemplo, Flora Morena se refere à mãe, enquanto Flô/Florzinha à filha. Tal característica pode remeter às confusões de leituras como as de Cem anos de solidão, de García Márquez, que também apresenta a mesma ideia de memória familiar e repetição dos nomes entre os parentes. Como o romance está elaborado em microcapítulos, em uma página pode-se ter até três capítulos, gerando uma fragmentação narrativa constante, o que algumas vezes pode dificultar a leitura para alguém menos experiente no universo dos livros, ao mesmo tempo que pode ser um traço que instigue aquelas pessoas mais interessadas nas estratégias narrativas e nos desafios de compor quebra-cabeças narrativos.

A linha temporal da trama é larga, embora comece in media res com a voz de Flora, desdobra-se do Segundo Império até fins do século XX, mais precisamente na década de 1980, em um ir e vir não só das memórias individual e familiar, mas também coletiva, retratando acontecimentos de amplo interesse público, como o suicídio de Getúlio Vargas, a inauguração de Brasília e as apreensões da ditadura cívico-militar. Esses assuntos aparecem imersos no cotidiano da família de Flora em Fortaleza, demonstrando como poderia ter chegado de fato nas mais diferentes famílias brasileiras do século passado, momento em que a relação dos devaneios da Flora leitora se mistura com o contexto do autoritarismo no Brasil.

Se, por um lado, as questões sociais de amplo conhecimento estão enfocadas, por outro, temas comuns do dia a dia aparecem igualmente celebrados em meditações da menina Florzinha. Nessa linha, há uma presença marcante da metalinguagem em uma reflexão permanente sobre a língua – porque aparecem trechos em espanhol, inglês e francês também – e sobre a literatura, com diversas citações, sejam implícitas ou explícitas, a autores e obras clássicas (Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Fernando Pessoa, Virgílio, Camões etc.). O livro destaca-se, ainda, pela riqueza lexical, o aprofundamento nos diferentes vocábulos e ortografias das variadas épocas representadas, além da variação dialetal de Fortaleza. Percebe-se, dessa forma, uma preocupação em tentar registrar a variação linguística marcada por diferentes traços: etário, estilo, socioeconômico e étnico (porque, embora não esteja tão explícito, pressupõe-se na leitura pelo recorte da época que as empregadas domésticas sejam negras).

O pensamento sobre a língua diz das relações sociais, dos preconceitos, da arquitetura das convivências que priorizam determinadas variantes em detrimento de outras diretamente relacionadas a quem usa tal e qual sua variedade linguística. A menina Flô parece entender isso também a partir do medo do “carão”, da reclamação da mãe se falasse como as empregadas pobres e negras.

O enredo vai assim se embrenhando por diversas sendas, ora se volta mais para o interior de Flora, ora para as mais diversas situações de personagens que estão no seu entorno. Se hora há leveza nas histórias de criança e no universo lúdico representado pelas brincadeiras e imaginações de Flora menina, por outra parte, depara-se também com a dor, a morte, a depressão, a partir de recortes das vivências de mulher, por exemplo, ao perder o filho e a devastação dessa angústia delineia-se através de um poema logo após a perda da protagonista.

Configura-se o foco narrativo principal nas vivências de Flora, seja criança seja adulta, na inocência ou no desespero do cotidiano. Compreende-se que esse trabalho de aprofundamento na personagem e no seu olhar sobre o mundo, ademais dos pontos já citados, consiste em um mérito do romance de Gutiérrez.

No entanto, até a infância/adolescência está marcada pelos desafios do recorte de gênero destacado através da violência: “Ouvi um psit que vinha de uma moita. Olhei para lá e vi um homem com tudo de fora. Era teso, escuro e peludo. E o homem ria”. Gutiérrez apresenta, nesse trecho, um exercício de autoria feminina, priorizando o ângulo da mulher diante de situações de violência de gênero.

O mundo de Flora foi bem recebido pela crítica e pelos leitores cearenses na época de sua primeira publicação. Continuou despertando interesse nas décadas seguintes, sendo solicitado como leitura obrigatória do vestibular da Universidade Federal do Ceará durante os anos 2000. Muito dessa recepção se deve ao desempenho das técnicas narrativas de Gutiérrez e ao olhar ora lúdico ora angustiado da menina e da mulher Flora no espaço específico de Fortaleza se ampliando para percepções da memória coletiva do Brasil.

Para saber mais

KATAOKA, Ayla Maria Diógenes (2009). O mundo de Flora: a infância através do olhar arguto de uma menina. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2009. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/2799. Acesso em: 12 jul. 2023.

LINHARES, Carlos (1997). Uma leitura de canção da menina. Revista da Academia Cearense de Letras, v. 52, p. 37-48.  Disponível em: https://academiacearensedeletras.org.br/revista/revistas/1997/ACL_1997_07_Uma_Leitura_de_Cancao_da_Menina_Linhares_Filho.pdf. Acesso em: 7 set. 2023.

MONTEIRO, Túlio (2020). As técnicas da intertextualidade no livro “O mundo de Flora”, da escritora cearense Angela Gutiérrez. Disponível em: https://tuliomonteiroblog.wordpress.com/2020/01/14/as-tecnicas-da-intextualidade-no-livro-o-mundo-de-flora-da-escritora-cearense-angela-gutierrez/. Acesso em: 20 ago. 2023.

MORAES, Vera (2010). O mundo de Flora: a arte de narrar. Disponível em: https://academiacearensedeletras.org.br/revista/Colecao_Diversos/Mulher_Literatura/ACL_A_Mulher_na_Literatura_25_O_Mundo_de_Flora_a_arte_de_narrar_VERA_MORAES.pdf. Acesso em: 7 set. 2023.

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Como citar:

ALBUQUERQUE, Thays.
O mundo de Flora.

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literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

29 set. 2024.

Disponível em:

2472.

Acessado em:

19 maio. 2025.