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O menino no espelho

SABINO, Fernando. O menino no espelho. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 1982.

Luma da Silva Miranda
Ilustração: Leonardo Almeida Filho

O romance O menino no espelho é construído a partir das memórias de infância do escritor Fernando Sabino (Belo Horizonte, MG, 1923 – 2004), o que faz com que uma mescla entre ficção e realidade evoque as diversas experiências infantis afetivas, inventivas e aventureiras de um menino de oito anos de idade. Com tom autobiográfico, a narrativa se passa no início da década de 1930, na cidade de Belo Horizonte, e é no prólogo, “O menino e o homem”, que somos apresentados ao narrador-personagem Fernando em um dia de chuva, que fez a casa dele ficar repleta de goteiras. Depois de ter passado a chuva e de o menino ter iniciado uma brincadeira com as formigas no seu quintal, Fernando recebe a visita de um homem misterioso, com quem ele demonstra ter bastante afinidade. Para esse homem, Fernando conta diversas aventuras suas, que, em seguida, serão narradas ao longo dos dez capítulos da obra.

A relação entre o protagonista e os animais perpassa a obra do início ao fim. O capítulo I, “Galinha ao molho pardo”, por exemplo, mostra a relação entre Fernando e os animais que faziam parte da sua vida e que viviam em seu quintal. Dentre eles, havia uma galinha chamada “Fernanda”, que foi batizada com esse nome pelo próprio protagonista. Uma vez apegado a ela, Fernando não quer que Fernanda seja servida no almoço de domingo da família. Os animais, além de representarem a natureza, desempenham um papel importante ao longo do romance, já que a aproximação entre Fernando e seus animais de estimação, como o cachorro Hindemburgo, o coelho Pastoff, o papagaio Godofredo, a galinha Fernanda, entre outros, evoca uma espécie de liberdade de forma espontânea, que também faz parte do universo da própria criança. Em outras palavras, essa relação com os animais simboliza a liberdade de existir, sem as pressões e regulamentos típicos dos relacionamentos interpessoais na sociedade.

Uma das temáticas mais recorrentes que aparecem no romance é o universo do lúdico infantil. No capítulo II, “O canivetinho vermelho”, Fernando adquire poderes especiais depois de assistir a um filme no qual o personagem principal fazia milagres, pregando algumas peças em seu irmão e na empregada Alzira. No capítulo III, “Como deixei de voar”, Fernando cria um avião, que naquela época era chamado de aeroplano, com peças encontradas em seu quintal. No capítulo IV, “O mistério da casa abandonada”, Fernando e sua amiga Mariana tornam-se espiões da Sociedade Secreta Olho de Gato e, para se comunicarem de maneira disfarçada, utilizam a chamada “língua do p”, que era uma brincadeira bastante popular entre as crianças. No capítulo V, “A aventura na selva”, o narrador fala de sua experiência como escoteiro e conta o dia em que se perde de seus colegas em um acampamento e, por isso, tem que sobreviver em uma mata fechada, até ser reencontrado. Nesse capítulo, o personagem Fernando mostra a importância de ter habilidades de sobrevivência em um ambiente hostil, como saber se orientar por meio dos pontos cardeais, tendo como referência a posição do sol: “Bastava virar à esquerda para o poente, e tinha à minha frente o norte, às costas o sul e à direita o leste”.

No capítulo VII, “O menino no espelho”, Fernando procura desesperadamente um sósia, mas só vai encontrá-lo em seu reflexo no espelho. Ao ganhar vida, o reflexo sai do espelho e, além de brincar com Fernando, passa a substituí-lo em várias tarefas enfadonhas que ele precisa cumprir, como ir à escola. O nome do menino no espelho é Odnanref e, assim como o nome, suas noções de direita e esquerda também eram invertidas. Essa foi a experiência mais fantástica, segundo o protagonista. No capítulo VIII, “Minha glória de campeão”, o protagonista narra a única vez que fez uma jogada bem-sucedida no futebol e, com isso, ganhou notoriedade entre os colegas da escola, algo muito desejado pelo menino, que não era considerado bom no futebol. Na narrativa, é possível identificar não apenas as brincadeiras infantis comuns na década de 1930, mas também diversos objetos usados nessas atividades, como futebol de botão, bola de gude, coleção de selos e figurinhas.

A infância, porém, não é livre de conflitos, que, eventualmente, surgem no cotidiano da criança. No capítulo VI, “O valentão da escola”, Fernando narra uma experiência de bullying na escola. O valentão Birica e seu comparsa Jacaré desferem, impunemente, diversos tipos de golpes (sardinha, tostão, cacholeta, coque) nas crianças da escola, além de outras brincadeiras que envolvem pancadas perigosas, como a chamada “cama de gato”. Nesse capítulo, Fernando descobre que, por mais que fosse pacífico, poderia ser tomado por uma coragem que o faz enfrentar o valentão da escola. No capítulo IX, “Nas garras do primeiro amor”, Fernando fora rejeitado por Mariana, que não queria ser sua namorada por já estar apaixonada por um ator famoso. Ele relata então sua primeira paixão pela prima Cíntia, que viera do Rio de Janeiro passar as férias na casa do primo no interior. Cíntia, mais velha, com cerca de 17 ou 18 anos, começou a sair com um rapaz chamado Peixoto, por quem Fernando desenvolveu um sentimento de rivalidade e, com a ajuda do seu cachorro Hindemburgo, prega uma peça nele. No capítulo X, “A libertação dos passarinhos”, Fernando e Mariana embarcam em mais uma aventura. Dessa vez, querem se vingar do vizinho, o major Alberico Pape Faria, que, após ter sido molhado devido à brincadeira de jogar água que Fernando fazia, foi reclamar do menino para seu pai. Em uma nova implicância com o vizinho, Fernando não teve tanta sorte para escapar e acabou recebendo um cascudo violento dado pelo major. Como forma de vingança, Fernando e Mariana acionam novamente a Sociedade Secreta Olho de Gato e decidem realizar uma boa ação libertando os passarinhos do major. Essa ação, apesar de enfurecer o vizinho, deixa as crianças satisfeitas, pois conseguiram concretizar sua vingança planejada.

No epílogo, há uma mudança de narrador, pois quem narra agora é o próprio autor, Fernando Sabino. Nessa parte final, Sabino, saudoso de sua infância, relembra o quintal onde brincava em Belo Horizonte e seus pais. Ele parece vivenciar uma espécie de viagem no tempo e se questiona sobre a identidade daquele homem misterioso que havia conversado com ele quando era criança, apresentado no prólogo da obra. O romance então se encerra com Sabino retornando à sua máquina de escrever, em seu apartamento no Rio de Janeiro, deixando esse enigma em aberto para a interpretação do leitor.

Resumidamente, cada capítulo do romance apresenta um novo aspecto da vida do pequeno Fernando, incluindo a riqueza da imaginação infantil por meio das brincadeiras e os conflitos que surgem nessa fase. Aliás, muitas dessas aventuras foram contadas pelo próprio menino Fernando para o adulto misterioso, já no prólogo da obra. Ao final do romance, percebe-se que essas aventuras foram algumas das mais marcantes da infância não só do protagonista Fernando, mas também daquele homem misterioso, isto é, do próprio Fernando Sabino. Todos os capítulos contam com ilustrações de Carlos Scliar, que retratam parte da narrativa.

Embora o romance traga a leveza e a ludicidade do universo infantil vivenciado em um ambiente rural, qualquer leitor, mesmo que tenha vivido sua infância em contextos diversos, pode sentir uma forte identificação com o menino Fernando. A narrativa, construída mediante o emprego do discurso direto, apresenta uma linguagem muito próxima da oralidade, sendo, portanto, fluida e de fácil compreensão – traço marcante do estilo de Sabino, não apenas nessa, mas em outras de suas obras.

Reconhecido por sua produção de crônicas, as características estilísticas de Fernando Sabino estão relacionadas a elementos como flagrantes do cotidiano, coloquialismo, uso de frases curtas, senso de humor e trocadilhos. Na obra do autor, O menino no espelho é um exemplar da habilidade do escritor em abordar temas do dia a dia por meio do bom humor, da leveza e do lirismo.

O leitor contemporâneo pode deleitar-se com a leitura dessa obra, pois a infância nesse romance é retratada com bastante simplicidade e de maneira muito saudável: o menino Fernando vive em um lar com sua família, podendo usufruir dos cuidados dos pais e parentes, além de alimentar suas amizades e dedicar-se a diversas brincadeiras em seu tempo livre. Todo o potencial imaginativo da criança parece ser explorado nessa narrativa leve, bem-humorada e que leva o leitor a uma profunda reflexão sobre a infância. Em 2013, foi lançado o filme O menino no espelho, dirigido por Guilherme Fiúza Zenha, inspirado no romance homônimo de Fernando Sabino. Ademais, é bastante comum que esse romance infantojuvenil seja trabalhado em turmas do ensino fundamental no Brasil.

Para saber mais

ABREU-OKI, Raquel (2022). Proposta de leitura e compreensão do clássico O menino no espelho, pelo viés da análise do discurso. Gláuks: Revista de Letras e Artes, n. 1, v. 22, p. 93-104. Disponível em: https://doi.org/10.47677/gluks.v22i01.289. Acesso em: 24 jul. 2023.

FONSECA, Aytel Marcelo Teixeira (2014). Romance O menino no espelho na sala de aula: tensão entre ficção e realidade. In: XVIII CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA E CRÍTICA LITERÁRIA. RIO DE JANEIRO – CIFEFIL, 18., 25 a 29 ago. 2014, Universidade Estácio de Sá – Campus Nova América. Cadernos do CNLF, v. XVIII, n. 8 – História da Literatura, p. 165-182. Rio de Janeiro: Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos. Disponível em: http://www.filologia.org.br/xviii_cnlf/cnlf/08/013.pdf. Acesso em: 24 jul. 2023.

Iconografia

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Como citar:

MIRANDA, Luma da Silva.
O menino no espelho.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

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literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

29 set. 2024.

Disponível em:

2463.

Acessado em:

19 maio. 2025.