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O guarda-roupa alemão

LAUS, Lausimar. O guarda-roupa alemão. Rio de Janeiro: Pallas, 1975.

Giuliano Lellis Ito Santos
Ilustração: Manuela Dib

Nascida em Itajaí, Lausimar Laus (Itajaí, SC, 1916 – Rio de Janeiro, RJ, 1979) foi professora, jornalista e escritora. Formou-se normalista em 1936 pelo Instituto Estadual de Educação em Santa Catarina. Mais tarde, licenciou-se em Letras pela Universidade Santa Úrsula e obteve seu mestrado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com uma dissertação sobre Carlos Drummond de Andrade. Posteriormente, concluiu seu doutorado na Universidade de Madri. Em 1952, ela recebeu o prêmio da Academia Brasileira de Letras de teses, o que permitiu a publicação de seu livro O romance regionalista brasileiro no ano seguinte. Além disso, traduziu o livro Projeto para uma revolução em Nova York, de Allain Robbe-Grillet, premiado também pela Academia Brasileira de Letras. No campo acadêmico, Lausimar foi professora da Universidade Federal Fluminense.

Escritora versátil, Lausimar Laus produziu uma variedade de obras, abrangendo desde livros destinados ao público infantil e juvenil até obras com observações de viagens, além de contribuições significativas para a imprensa periódica. Ainda que não tenha se exercitado muito no campo do romance, seu livro mais conhecido é O guarda-roupa alemão, que teve sua primeira edição em 1975. Esse livro fez parte da lista de leitura obrigatória para o vestibular da Universidade Federal de Santa Catarina no ano de 2011.

O guarda-roupa alemão foi o segundo romance publicado por Lausimar Laus. Seu primeiro livro, Tempo permitido, precedeu-o, enquanto o terceiro, Ofélia dos navios, só foi publicado após o falecimento da autora. Juntos, esses três livros formam uma trilogia que aborda a colonização alemã em Santa Catarina. No momento de sua publicação, O guarda-roupa alemão recebeu leituras de escritores renomados, como Rachel de Queiroz e Alceu Amoroso Lima.

Esse romance acompanha a família Ziegel e suas memórias entrelaçadas com a história da região. O tema central é a imigração alemã na região de Santa Catarina, especificamente na cidade de Blumenau. Para contar essa história, a autora optou por uma narrativa descontínua, principalmente levando em conta a temporalidade cronológica. Contudo, o leitor não deve se sentir perdido, pois alguns acontecimentos históricos servem como guias ao longo da narrativa.

Inicialmente, a história regional emerge, por exemplo, por meio da alusão à enchente de 1880 e à figuração da enchente de 1911 em Blumenau. No campo da história nacional, percebe-se sua manifestação mediante acontecimentos mencionados ao longo da narrativa, tais como a Guerra do Paraguai, lembrada pela participação de Ervin Ziegel (bisavô de Homig, um dos protagonistas) ao lado dos brasileiros, provavelmente em 1865. Outro exemplo é a presença de uma delegação para inspecionar a cidade de Blumenau durante a campanha de nacionalização, possivelmente em 1939, no governo de Getúlio Vargas. Por fim, a obra traz referências à história da Europa, principalmente no que diz respeito à Alemanha. Acompanhando o livro, assiste-se à ascensão do nazismo, à deflagração e às consequências da Segunda Guerra Mundial, além da reverberação de tais acontecimentos em solo brasileiro.

Como dito, a narrativa não é linear, pois apresenta uma estrutura baseada no fluxo de consciência, em que um narrador externo adentra os pensamentos de certas personagens, em especial de Homig, um bisneto dos Ziegel. Além disso, a narrativa apropria-se de outros gêneros discursivos, trazendo para o interior do romance trechos de diários e cartas.

O que se vê, portanto, é uma história privada que está na superfície da narrativa e focaliza a família Ziegel, que, desde sua matriarca, Ethel, a Grossmutter, busca meios de se estabelecer em solo brasileiro. O que chama atenção nessa história é que ela está embasada em grande parte na rememoração de Homig. Neto da vó Sacramento, uma indígena criada pelas freiras, Homig figura como “bugre” – termo pejorativo utilizado para designar indígenas – e como o último dos Ziegel. O discurso presente na representação histórica do romance reflete o tratamento desfavorável reservado aos indígenas; e a rememoração de Homig surge, portanto, como um meio de equilíbrio que pode indicar, ao final, a aceitação do Brasil como nação. Não se pode ignorar, porém, a carga semântica que esse foco narrativo pode representar.

Ainda que a narração seja predominantemente centrada em Homig, é a presença feminina que chama atenção, pois a difícil tarefa de se estabelecer em um espaço distante de sua terra natal surge como um trabalho feminino. A Grossmutter é a personagem mais ambígua da narrativa; na maior parte das vezes em que surge no romance, ela demonstra estar no controle, impondo-se de forma rígida e com visão prática, porém carrega um passado de artista: era pintora durante a juventude em Paris.

Outro aspecto que chama atenção é a figuração do guarda-roupa que dá título ao livro. Vindo da Alemanha, o móvel foi trazido pelo velho Ziegel “no frágil barco da travessia dos mares”. Chamado de Kleid por Homig, apelido que guarda parte de sua designação: kleiderschrank, ele torna-se uma personagem importante, pois a rememoração de Homig se inicia, nas primeiras páginas, quando o neto se coloca diante dele. Nesse sentido, todo o romance sugere um diálogo entre Homig e Kleid, interação que funciona como gatilho para as lembranças da família. Além disso, o guarda-roupa mantém um segredo doméstico em uma de suas gavetas, que será aberta somente pelo último dos Ziegel.

De um ponto de vista mais formal, destaca-se a preocupação da autora em buscar um modo de reproduzir as variantes da fala, tanto no português falado pelos alemães quanto na fala do padre Melcher: “Non descolparr Nosso Senhourra. Veir parra a missa está um oprrigazon”; quanto na fala dos brasileiros, como na de Praxedes: “Sabe o que mais, seu dotô? Eu vou mas é m’imbora”. Num espaço em que o comércio se fazia entre grupos com identidades diferentes, relacionadas também à língua que usavam para comunicação, a tentativa de transcrever alguns aspectos fonéticos das variantes é importante, pois reconstitui certo ruído na relação entre brasileiros e alemães.

Além das primeiras dificuldades na adaptação à nova terra pelos imigrantes alemães no século XIX, outro momento de choque entre brasileiros e “alemães” ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial. A campanha de nacionalização, que incluía o ensino de português para os falantes de alemão, é um aspecto importante desse período. O romance retrata o clima desse período como hostil, o que de certa forma ecoa os combates entre os Aliados e o Eixo.

Algumas personagens expressam falas racistas, evidenciadas quando uma tia de Homig se recusa a aceitar o sangue de um “mulato”, dizendo que “brasileiro tem sífilis”. Esse caso ilustra o poder da propaganda nazista, que influencia parte da família Ziegel. Dessa perspectiva, pode-se até mesmo traçar um paralelo entre as crenças da personagem e as fake news que circulam nos dias de hoje.

O que liga esses dois boatos é a capacidade de engajamento e isolamento dos indivíduos. A tia de Homig havia ido para a Alemanha e retornado há pouco tempo, estando, portanto, sob grande influência da propaganda nazista. Por outro lado, no território brasileiro, o partido nazista oferecia escolas alemãs aos seus conterrâneos. Com isso, conseguia isolar a comunidade a partir de um material didático “fiel ao pensamento social da ‘nova’ Alemanha, para introduzir tudo o que ditava o III Reich”, como diz o narrador. Nesse sentido, havia uma comunidade identificada pela nacionalidade, que era justamente o público-alvo do partido e que poderia compor seu contingente. A crença apresentada pela tia de Homig não fazia parte de toda a comunidade alemã de Blumenau; o próprio sobrinho ria de suas falas e a satirizava com imitações. As fake news funcionam com a mesma finalidade: são disseminadas em comunidades virtuais que, de algum modo, se identificam com o enunciado, o que cria engajamento e estabelece fronteiras entre comunidades. Assim, criam-se grupos isolados, onde o controle de informação fica mais fácil e torna esse grupo mais suscetível a aceitar certos boatos como verdadeiros.

Enfim, O guarda-roupa alemão destaca-se como uma narrativa construída de modo fragmentário, permitindo que o leitor viaje pelo espaço privado da colonização alemã na região de Santa Catarina. A partir de acontecimentos controversos, a obra leva a refletir sobre a constituição das nacionalidades e os percalços da imigração.

Para saber mais

GONÇALVES, Cristiane Roveda (2012). Memórias da colonização: ficção e realidade em O guarda-roupa alemão, de Lausimar Laus. Dissertação (Mestrado em Literatura) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Disponível em: http://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/103438. Acesso em: 2 dez. 2023.

VIEIRA, Vilca Marlene (1978). Uma leitura metafórica d’O guarda-roupa alemão, de Lausimar Laus. Dissertação (Mestrado em Letras – Literatura Brasileira) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Disponível em: http://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/74834. Acesso em: 2 dez. 2023.

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Como citar:

SANTOS, Giuliano Lellis Ito.
O guarda-roupa alemão.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

29 set. 2024.

Disponível em:

2457.

Acessado em:

19 maio. 2025.