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Vento de queimada

LEONES, André de. Vento de queimada. Rio de Janeiro: Record, 2023.

Adérito Schneider
Ilustração: Dona Dora

André de Leones assume seu sétimo romance Vento de queimada como um “pequi noir”. Associar um (sub)gênero essencialmente estadunidense como o noir ao pitoresco e exótico pequi é uma armadilha, mas comer pequi não é mesmo tarefa para incautos. E Leones faz essa provocação de forma consciente e consistente. Vento de queimada não é um romance exótico e muito menos bairrista; não peca pela afetação ufanista e romantizada dos defensores da “valorização da cultura regional” (ou mesmo “brasileira”). Vento de queimada é um romance sobre seres humanos lidando com questões como amor, relações familiares, amizade, carreira profissional, violência, sexo e outros temas recorrentes na obra do autor.

Porém, um noir ambientado em Goiás tem sempre algo de western, outra referência que o autor assume sem temor, mas também sem pastiche. Um faroeste sem cavalos (eles estão mais ocupados dando coice em ditadores ou atuando em pornôs hípicos da Boca do Lixo), mas com muito bangue-bangue. E, num romance em que dezenas de cidades são colocadas no mapa, em vez de cavalos andando em movimento de L num tabuleiro de xadrez, temos diversos peões andando em linhas tortas com seus carros carburados por estradas poeirentas.

O enredo se desenvolve no Brasil dos anos 80 (mais especificamente, em 1983, reta final da ditadura civil-militar), numa época em que a paulistana Boca do Lixo, antro das pornochanchadas, gênero cinematográfico genuinamente brasileiro, cujos filmes conseguiam tanto driblar a censura dos milicos quanto concorrer com o mercado hollywoodiano nas finadas salas de cinemas de rua, estava vivendo sua crise final com a popularização da televisão e o fenômeno do VHS. Numa crise, é preciso se reinventar. E, portanto, as produções cinematográficas da Boca do Lixo foram se tornando cada vez mais pornograficamente explícitas e não tardou para que os produtores recorressem ao que acabou se tornando um subgênero da pornochanchada: sexo com cavalos. É nesse contexto que se desenvolve Vento de queimada.

No romance, acompanhamos Isabel, uma mulher formada em história que abandona a carreira ainda no início, depois de um evento trágico em 1979. Ela desiste de se tornar professora para pegar em armas. Não contra a ditadura, que já aniquilou seus dissidentes nos Anos de Chumbo e vive momentos de reabertura democrática e anistia, mas ao lado do pai, um ex-policial que virou pistoleiro. E, assim, a seguimos em um road novel pelas paisagens áridas do Cerrado, passando por Goiânia e sua região metropolitana, Brasília e suas cidades-satélites, municípios do interior goiano (Silvânia, Minaçu, Caldas Novas e tantos outros), a cosmopolita metrópole de São Paulo e Santos, com seu mitológico mar.

Isabel é uma mulher descrita como sendo “magrelinha”, de rosto comum. Porém, ela não é tão comum como aparenta. Isabel tem dois namorados e é uma mulher que atira e mata. Uma jovem franzina que não se intimida diante de trogloditas e poderosos, talvez por não ter muito mais a perder. E, assim, uma série de assassinatos (e outras violências) se alastram como fogo tocado pela ventania em época de seca. Em delírio, a protagonista profetiza que será consumida pelo fogo. Ela e toda a humanidade. O fogo como possibilidade de cura. Isabel é uma fênix que precisa chegar ao fundo do poço e renascer da vingança. E vingança exige sangue.

O romance começa em Goiás (Velho, o município; antiga capital goiana), num feriado, em meio a um evento religioso e turístico: a Procissão do Fogaréu, em que homens vestidos como membros da Ku Klux Klan percorrem as ruas de pedra vilaboenses com tochas nas mãos, numa cerimônia católica que, paradoxalmente, parece celebrar mais os torturadores romanos do que o torturado Jesus Cristo. E a tortura ocupa um espaço central em Vento de queimada. Afinal, estamos falando de ditadura civil-militar e suas horrendas sequelas. Dessa forma, a tortura torna-se um tema fundamental no romance, proporcionando um debate ético que determina escolhas e caráter de personagens num submundo de criminalidade marcado pela violência em suas formas mais extremas e cruéis, assim como (aparentes) ausências de fronteiras morais e legais – como em todo bom noir. Em mais de um momento, personagens se questionam se seriam ou não capazes de torturar alguém e, caso sim, em quais situações, ou seja, questionando-se sobre os limites da violência que são capazes de cometer.

Entretanto, ainda que milicos e suas parentelas marquem presença constante no romance, a ditadura é apenas o pano de fundo deste contexto decadentista de um Brasil que ainda não migrou para a Nova República. Assim, nesse cenário de “cidadãos de bem”, o que não falta em Vento de queimada, além de sexo e violência, é machismo, misoginia, homofobia e gordofobia saltando das páginas, numa escolha (corajosa) que o autor faz por retratar o Brasil dos anos 80 de forma realista. André de Leones não escreve histórias sobre como o mundo deveria ser, mas sobre como ele realmente é. E a crueza (e crueldade) desse universo predominantemente masculino pelo qual Isabel trafega pode deixar de cabelos em pé leitores mais sensíveis, que buscam na literatura o “politicamente correto”, modelos de herói, reafirmação de seus valores ou coisa do tipo.

Olhar estrangeiro em terra de ninguém

A primeira frase do livro é um diálogo de um gringo com um “levíssimo sotaque estrangeiro”. A violência não tira férias (feriados e datas comemorativas organizam a cronologia da trama) e o “caubói” Andrew J. Gordon, parceiro de Isabel (nos dois sentidos), é o personagem que tanto acentua este olhar estrangeiro (“Brasil: um amontoado de países estrangeiros. Para onde quer que se olhe. Uma terra estrangeira depois da outra”) quanto proporciona os melhores diálogos espirituosos, sagazes e sarcásticos (no melhor estilo noir) desse casal culto no meio de tanta gente chucra.

Dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam o Centro-Oeste como a região brasileira com maior crescimento populacional nos últimos anos. A região ocupa um espaço central na sociedade brasileira não apenas pela localização da capital do país, mas especialmente em virtude do agronegócio – para o bem (o “agro é pop”, motor do crescimento do PIB brasileiro) e para o mal (o desmatamento do Cerrado tem atingido níveis recordes nos últimos anos). Além disso, a música sertaneja (em seus diversos subgêneros) ostenta há anos a preferência musical dos brasileiros, além de cifras consideráveis num mercado que, mais do que musical, reflete um estilo de vida (moda, gastronomia, automobilismo etc.). Apesar disso, o Cerrado do Centro-Oeste ainda é uma paisagem rara na literatura brasileira.

Em Vento de queimada, a paisagem cerratense está presente de forma não romantizada, ufanista. Muito pelo contrário, ela é retratada em sua aridez, o que lembra os romances regionalistas dos anos 30 que lidavam com a seca do sertão nordestino, porém contendo em si toda a violência e tensão sexual que infesta as páginas do romance. Num determinado trecho, Leones descreve um ônibus dando ao automóvel ares animalescos: “o veículo urrando a cada troca de marcha, engasgando aqui e ali, uma monstruosidade enferrujada e disentérica a resmungar que pode morrer a qualquer momento” – e o que pode ser visto de suas janelas é uma “paisagem, algo que lhe parece remexido e arreganhado feito uma cama de puteiro”. O mesmo vale para humanos. Uma das passageiras desse calhambeque caindo aos pedaços chama a atenção por seu aspecto enfermo: “a magreza da mulher, tão descolorida quanto a cidade que adentram, o rosto encovado, a aparência doentia, a boca pequena e ressecada”.

Uma característica marcante de Vento de queimada é a oralidade dos personagens. Como num bom noir, o romance é marcado por diálogos. E, neste que talvez seja o seu romance mais explicitamente e conscientemente goiano, o autor recorre ao “goianês” (o que pode ser constatado especialmente nos personagens Velho e Abner), usando gírias e expressões marcadas por uma grafia peculiar que pode soar estranha (estrangeira) aos não goianos. Tudo sem afetação e com muita naturalidade.

Portanto, temos em Vento de queimada uma combinação da destreza da literatura pulp dos noir e westerns, com sexo, violência e diálogos saborosos, mas que ganham peso em complexidade com uma trama bem arquitetada (mesmo que partindo de clichês) e uma protagonista (feminina) que faz das estradas não apenas lugar para deslocamentos (ação), mas também para ruminar em tempo psicológico as amarguras de sua vida – o que faz com certa prolixidade, ainda que consciente, como uma ressaca que deixa resquícios de vômito na garganta, pois o passado é para Isabel como arroto de pequi (quem comeu, sabe do que estou falando).

Para saber mais       

SÁ, Sérgio de (2023). ‘Pequi noir’ de André de Leones tem sucessão de tiros certeiros. Estado de Minas. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/pensar/2023/08/25/interna_pensar,1551614/pequi-noir-de-andre-de-leones-tem-sucessao-de-tiros-certeiros.shtml. Acesso em: 6 jun. 2024.

Iconografia

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Como citar:

SCHNEIDER, Adérito.
Vento de queimada.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

27 set. 2024.

Disponível em:

2424.

Acessado em:

19 maio. 2025.