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Um defeito de cor

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2006.

Maria Aparecida Cruz de Oliveira

Ilustração: Ruben Zacarias

A produção de Um defeito de cor, da escritora Ana Maria Gonçalves (Ibiá, MG, 1970), compreendeu uma pesquisa documental de 24 meses e um processo de escrita e reescrita de três anos. Em setembro de 2022, 16 anos após a edição de estreia, a Record publicou uma reedição especial, com novo projeto gráfico e obras da artista premiada Rosana Paulino. Essa reedição apresenta um itinerário visual no início do livro e na entrada de cada capítulo que funciona como uma interação, uma proposta de leitura e interpretação do livro. Conta, também, com uma colaboração, a peça ficcional da escritora Cidinha da Silva, em substituição à tradicional orelha do livro. Além disso, a edição especial presenteia o leitor com o conto afrofuturista inédito “Ancestars”, que faz um diálogo com a narrativa do livro, com histórias do passado, do presente e do futuro ancestral. “Ancestars” é a primeira e aguardada narrativa de Ana Maria Gonçalves após o lançamento de Um defeito de cor. Ainda, para brindar a saúde do livro, em fevereiro de 2024, uma das edições ficou esgotada, duas vezes, depois de a obra servir de base para o samba-enredo da Portela, que ganhou Estandarte de Ouro de melhor escola, enredo e personalidade do Carnaval.

Esse romance brasileiro de 947 páginas mistura ficção e fatos históricos. Os elementos historiográficos estão imersos na vivência cotidiana das personagens. Previamente, na dedicatória do livro, a autora deixa indícios de sua filiação ao gênero do romance histórico ao mencionar agradecimentos a historiadores, sociólogos e antropólogos, que serviram de fontes de inspiração e consulta para a composição da obra. Esse registro é reiterado, por meio de paratexto, no final do livro, com as referências bibliográficas que orientaram a escrita da autora.

Apesar da possibilidade de a obra ser lida como romance histórico, sua trama é narrada em primeira pessoa sob a perspectiva de uma mulher negra idosa. A presença dessa narradora traz um elemento inovador ao gênero, pois, no romance histórico clássico, as mulheres não têm voz, porque a narrativa era sempre apresentada em uma perspectiva masculina. No romance, a linguagem é um destaque e de imediato já convida o leitor a entrar em outra cosmogonia, seja pelo simples uso de dez epígrafes, com provérbios africanos na entrada dos capítulos, seja pela estratégia das notas de rodapé com explicação de termos que conectam o leitor com o mundo linguístico e cultural da narradora africana: ibêji, abiku, malame, olorum, agontimé, Ori, obi, omi, oriki, ayo, Ayzan, Sogbô, Aguê, eguns etc.;  ou expressões como: Kaô kabiecile oba Sango: uma saudação especial a Xangô.

A obra também se sobressai pela construção de uma heroína complexa, Kehinde, que é vítima do capitalismo colonial, mas que também pode se valer dele. É a saga de uma africana idosa, quase nonagenária, que retorna da África para o Brasil em busca do filho roubado e vendido pelo pai português. Ao longo dessas encruzilhadas, ela escreve suas memórias, marcadas por sequestro, abusos, estupros, perdas, violências e escravidão, enfim, todos os ingredientes de uma vivência colonial. Kehinde foi inspirada na figura histórica de Luísa Mahin, mãe do poeta Luís Gama e participante da Revolta dos Malês, movimento importante liderado por escravizados muçulmanos a favor da Abolição. No entanto, a personagem não foi construída apenas com elementos dela, mas é um mosaico de muitas outras mulheres negras brasileiras. Nessas circunstâncias, a ficção amplia o campo de intérpretes negros da nação e se inscreve em um contexto histórico importante na formação do povo brasileiro.

O livro foi dividido em dez capítulos. O primeiro é mais breve, com 15 subtítulos, porém traz uma narrativa intensa: Kehinde apresenta ao leitor a origem dos seus deslocamentos territoriais forçados, o início de um processo motivado pela violência colonial, pelas atitudes brutais que sustentam o projeto colonial, o qual a trouxe ao Brasil em um navio negreiro. Tudo começa em 1910, quando uma menina de seis anos, de Savalu, reino de Daomé, África, é obrigada a sair de sua terra com sua irmã Taiwo e sua avó Dúrójaiy, depois que sua mãe, Dúróorílke, e irmão, Kokumo, são mortos pelos “guerreiros” do rei Adandozan. Viajam para o litoral, Uidá, mas lá não ficam livres da violência colonial, pois as irmãs gêmeas são capturadas para serem levadas ao Brasil.

Os demais capítulos são marcados pelos seguintes acontecimentos: desembarque da protagonista na Ilha dos Frades e sua venda, no mercado, para o fazendeiro Sinhô José Carlos; a infância e adolescência na casa-grande, na senzala pequena e na senzala grande, onde vai conhecer a face explicitamente mais dura da escravidão; segue-se, então, a vida da protagonista agora na cidade, no Solar da Sinhá Ana Felipa; conhece-se uma cerimônia de batismo na cultura iorubá, a consagração, cerimônia de nome Banjokô; finalmente se avança para o início dos fatos que levam Kehinde a conquistar autonomia e liberdade, o trabalho de ganhadeira com a venda de cookies; por fim, a narrativa apresenta os avanços, os desdobramentos das conquistas e a autonomia de Kehinde, bem como os limites.

Um defeito de cor é uma carta-convite para se conhecer o Brasil. O título do livro exige a nossa atenção se quisermos elaborar uma leitura acertada da obra e do país. Isso porque ele denuncia o racismo estrutural que nega aos(às) negros(as) o direito à subjetividade. É problematizada uma estrutura racista que vê algumas pessoas meramente como “raça” e faz delas “sujeitos incompletos” no sentido de que lhes são vedadas certas esferas de subjetividade: política, social e individual. Em contraponto, as histórias de negros(as) assumem o protagonismo no livro.

Dessa forma, essa obra vencedora do Prêmio Casa de las Américas problematiza uma ferida que nunca foi tratada: o racismo. É a narrativa da colonização brasileira apresentada em seu estado bruto, com as projeções de problemas que persistem no Brasil contemporâneo, uma vez que, nessa trama, o racismo não é pensado apenas como referência de um passado colonial, mas também como uma realidade traumática, que ainda tem sido negligenciada. Enquanto narrativa das gêneses de um Brasil fundamentalmente colonial, é uma longa história de silêncio imposto, vozes silenciadas, torturadas, línguas africanas rompidas, língua colonial imposta (portuguesa), discursos interrompidos e impedidos. Mas, além disso, é um arranjo de voz da resistência, é a busca por apresentar nossa história silenciada.

Ler Um defeito de cor é dialogar com as manifestações políticas, culturais e históricas de um país diverso. É contemplar a exaltação da memória ancestral africana no Brasil, que, apesar da história de violência, tem sido exemplo de resistência cultural, religiosa e artística. De tal modo, essa leitura nos traz a esperança da possibilidade de projetarmos um país justo para todos.

Para saber mais

OLIVEIRA, Maria Aparecida Cruz de (2021). Meninas negras no romance afro-brasileiro. Brasília: Edições Carolina.

OLIVEIRA, Maria Aparecida Cruz de (2019). Representações decoloniais: as meninas negras no romance afro-brasileiro contemporâneo. Tese (Doutorado em Literatura) – Universidade de Brasília, Brasília.

MIRANDA, Fernanda Rodrigues de; OLIVEIRA, Maria Aparecida Cruz de (Orgs.) Ana Maria Gonçalves: cartografia crítica (2020). Brasília: Edições Carolina.

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Como citar:

OLIVEIRA, Maria Aparecida Cruz de.
Um defeito de cor.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

27 set. 2024.

Disponível em:

2411.

Acessado em:

19 maio. 2025.