Ir para o conteúdo

Mário/Vera: Brasil, 1962-1964

FAILLACE, Tania Jamardo. Mário/Vera: Brasil, 1962/1964. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.

Eurídice Figueiredo
Ilustração: Aline Damasceno

Tania Jamardo Faillace (Porto Alegre, RS, 1939) publicou o romance Mário/Vera: Brasil, 1962/1964 em 1983, obra reeditada em 1986 pelo Círculo do Livro. Por intermédio da poeta Lara de Lemos, que a apresentou a Érico Veríssimo, Tania Faillace publicou Fuga (1964), sua primeira novela, pela editora Globo. Seu romance inédito, Beco da velha, foi escrito entre 1976 e 1994 e conta com mais de 7.000 páginas. A primeira parte, “Peças para montar”, veio a público em 2016 numa edição especial de cem exemplares destinados a escolas.

Durante três anos, Tania Faillace escreveu a coluna “Correio do Coração” no jornal Zero Hora, mudando depois para a reportagem. Foi pelo jornalismo que conheceu a dura realidade dos pobres, as injustiças e também os tentáculos da ditadura militar. Em 1966, escreveu uma matéria sobre o famoso “caso das mãos amarradas”, quando o corpo do sargento Manoel Raymundo Soares foi encontrado às margens da ilha das Flores, na região de Porto Alegre, com as mãos amarradas e marcas de tortura. No romance Mário/Vera: Brasil, 1962/1964, há uma referência à revolta dos sargentos.

Segundo a própria autora, o romance Mário/Vera: Brasil, 1962/1964 é autobiográfico. Ele se passa nos anos que antecederam o golpe de 1964. Escrito nos anos 1970, a autora fez pesquisas para contextualizar os fatos; por outro lado, já tinha a experiência e a compreensão do que era a ditadura que ainda estava em vigor. O romance adota a terceira pessoa e a voz narrativa penetra na subjetividade de Vera, mas nunca na de Mário. Não se sabe bem o que Mário pensa ou sente, e a própria Vera não entende seu comportamento bastante errático.

O romance é dividido em cinco partes, com marcação temporal de períodos desiguais: março/maio de 1962, junho/julho de 1962, agosto/outubro de 1962, novembro de 1962/dezembro de 1963 e janeiro/dezembro de 1964. Apesar de haver referências a acontecimentos políticos, os dois protagonistas da história de amor não participaram de atividades de apoio nem de oposição. Vera trabalhava numa repartição em que se veiculavam ideias políticas, demonstrando preocupação com a situação, porém não chegando a integrar nenhuma organização. A ocupação da personagem é a transposição à ficção do trabalho que Tania Faillace exerceu a partir de 1961, quando se tornou arrimo de família na empresa Ascar (hoje Emater) e para a qual escrevia relatórios sobre questões de terras, tendo-se tornado defensora da reforma agrária.

Tanto antes quanto após o golpe, Vera se decepcionava com o rumo dos acontecimentos. Antes do golpe, pensava que seria muito bom acreditar que aconteceria uma nacionalização, a união do povo, uma mudança de lei sobre abuso de poder econômico. Começavam, ao contrário, as “hostes do rosário” de mulheres e a pressão do governo dos Estados Unidos. Sobre a crise dos sargentos, mencionada acima, “correntes de ódio incendiário flamejaram nos jornais, nos discursos públicos para anatematizar, condenar, esmagar de desprezo o atrevimento da plebe fardada”. Se Mário acompanhava pouco as notícias, Vera era mais interessada, estava a par dos conflitos dentro e fora do Brasil e, aos poucos, foi perdendo a inocência e entendendo que as mudanças sonhadas não aconteceriam.

Em meio a diversos conflitos, a imprensa clamava por golpe. “Às vezes, o anúncio da queda inevitável de um ‘presidente falsamente vermelho’; às vezes, a denúncia de golpes e contragolpes populares. O Rearmamento Moral nas favelas, as uniões cristãs contra o perigo comunista, as invasões de terra repelidas a balas militares”. No início de 1964, as tensões se exacerbaram. No dia 1º de abril, o dia do golpe, Vera, como o país, ficou doente. “Vera doente de olhos, ouvidos, corpo inteiro, lendo aquele jornal”.

Apesar de Tania Faillace recusar o rótulo de feminista, sua protagonista é de certa maneira feminista. É ela quem seduz o homem que a atrai, exerce sua sexualidade fora do casamento e tem um filho. A relação amorosa entre Vera e Mário é bastante conturbada porque ele é casado e não se separa da esposa, situação que se complica mais ainda após o nascimento de um filho. Há também uma diferença de classe social entre os dois: Vera tem um perfil de classe média enquanto Mário é operário. Ela se revolta com as condições de trabalho de Mário: demissões, horários rígidos, descontos nos pagamentos, salários insuficientes, ou seja, a exploração da classe trabalhadora pelos patrões que só visam ao lucro. Para a autora, trata-se da vitória da convenção e da mediocridade, da negação da intensidade vital era paixão que unia os dois amantes (citado por Oliveira).

A postura feminista é explícita em vários momentos do romance, notadamente em relação à autonomia das mulheres, à independência financeira proporcionada pelo trabalho e ao exercício da sexualidade. A protagonista pensa que “esta terra de merda não está preparada para a independência feminina – mulher sozinha é mulher em quarentena”.

Faz-se menção ao abuso sexual de crianças, no caso de um maloqueiro que abusara das quatro filhas. É tematizado também o preconceito racial quando Vera conversa com um rapaz na praia que lhe pergunta se ela ainda não tinha reparado que ele era negro. A situação desencadeia a lembrança de tantas iniquidades relacionadas à história do escravismo no Brasil e aos mendigos afogados no Rio de Janeiro, “os escravos da família Godoy, no Mato Grosso, recebendo 100 chibatadas por desobediência, e os catadores de sobras nas feiras […]”.

Vera tem um caderno no qual tentava se explicar. “Cavoucar na intimidade escabrosa de suas insuficiências. Tripas à mostra, terrores, infância, desejos, covardias, obstinações – todo um mundo secreto que a humilhava, mas que se esforçava por dissecar até o fim”. A partir dessa encenação de escrita da protagonista, fica explicitado que Vera é um alter ego da própria escritora. Ela confessa, em entrevista publicada no fascículo de Autores gaúchos (1988), que, após a morte de Miguel Vieira, pai de seu filho Daniel, escreveu seis capítulos sobre o relacionamento amoroso deles, mas não conseguiu prosseguir. Dez anos depois, mostrou o texto a Carlos Jorge Appel, que lhe sugeriu ampliar o alcance, o que a levou a fazer pesquisas sobre o período. Através da criação de personagens secundárias e da recriação do clima político da época, a autora ampliou o escopo da intriga, tornando o romance mais denso.

Para saber mais

BALIEIRO, Deise Mara. Mário/Vera, Brasil 1962-1964 de Tania Jamardo Faillace: o tecer de um tempo e o tecer da escrita. Dissertação (Mestrado em Letras), Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, 2015. Disponível em: http://ufsj.edu.br/portal2-repositorio/file/mestletras/Dissertacao%20Deise%20Mara%20Balieiro(1).pdf. Acesso em: 30 maio 2023.

BITTENCOURT, Gilda Neves da Silva (1999). O conto rio-grandense: tradição e modernidade. Porto Alegre: Editora da UFRGS.

FAILLACE, Tania Jamardo (1988). Autores gaúchos. Porto Alegre: IEL, vol. 17.

OLIVEIRA, Gabrielle Toson de (2018). O lugar e a voz de Tania Jamardo Faillace na literatura sul-rio-grandense. Monografia (Licenciatura do Instituto de Letras), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

POLESSO, Natalia Borges (2011). As relações de poder e o espaço urbano como região nos contos de Tania Jamardo Faillace. Dissertação (Mestrado em Letras, Cultura e Regionalidade), Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul.

Iconografia

Tags:

Como citar:

FIGUEIREDO, Eurídice.
Mário/Vera: Brasil, 1962-1964.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

23 set. 2024.

Disponível em:

2190.

Acessado em:

19 maio. 2025.