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K. – Relato de uma busca

KUCINSKI, Bernardo. K. – Relato de uma busca. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

Amanda Lacerda de Lacerda
Ilustração: Graça Craidy

“Caro leitor: Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”. Essa é a primeira frase de uma advertência ao leitor que inicia o romance K. Relato de uma busca, de Bernardo Kucinski (São Paulo, SP, 1937). A afirmação é paradoxal e sintetiza uma aporia inerente ao discurso do trauma (sua escrita problemática, inviável, de clareza e nitidez comprometidas) que permeia toda a obra. O livro narra a história de um pai em busca da filha desaparecida durante a ditadura civil-militar no Brasil, estabelecendo um paralelo com a própria história familiar do autor, imbricando fatos verídicos e inventados, entrelaçando as múltiplas narrativas da história e a plasticidade da memória.

Bernardo Kucinski é paulistano, filho de imigrantes poloneses, e consagrou-se como jornalista. O reconhecimento de sua atuação nessa área rendeu-lhe diversas premiações, entre elas o Prêmio Especial Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, em 2018. Foi militante do movimento estudantil contra a ditadura (1964-1985), preso e exilado, voltando ao Brasil em 1986, quando assumiu o posto de professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, cargo do qual, atualmente, está aposentado. Sua trajetória familiar é marcada pelo desaparecimento da irmã Ana Rosa Kucinski Silva, também militante de esquerda, presa e torturada pelos militares em 1974.

Explorando a ditadura como temática, Bernardo Kucinski publicou também a coletânea de contos Você vai voltar pra mim e outros contos (2014), a novela Os visitantes (2016) e os romances: Júlia: nos campos conflagrados do senhor (2020) e O congresso dos desaparecidos (2023). Em podcast promovido pela revista Quatro Cinco Um, em 2020, quando do lançamento de Júlia, o autor comenta: “Na medida em que vou me aproximando daquela idade-limite, eu sinto cada vez mais a necessidade de tratar desse tema da ditadura”. Dessa forma, a literatura vai se estabelecendo como uma possibilidade de reelaboração do trauma e espaço potente de representação do horror que, pela narração estética, leva o leitor a sentimentos de repulsa e mal-estar diante do enredo.

O romance constitui-se de modo polifônico e híbrido. Entre os capítulos que narram propriamente a busca do pai pela filha, alternam-se breves narrativas em uma multiplicidade de vozes, entre elas: a amante de um torturador, a sessão de terapia da faxineira de uma casa de tortura, a carta a uma amiga da desaparecida, informes sobre aparelhos e pontos, a ata de uma reunião de congregação universitária, a entrevista com um general cassado, relatos de militantes da luta armada e diálogos entre torturadores. Todas elas circundam uma figura central, o pai que empreende uma busca incontornável e infrutífera. Capítulos aparentemente independentes narram diferentes perspectivas e vivências da ditadura brasileira de modo a se entrecruzarem. Cada narrativa pode ser lida como um fragmento fabularmente elaborado do que ocorreu naqueles tempos em que o leitor é posto num lugar análogo ao do protagonista K., na busca por sentido, experimentando a apreensão de um real fraturado.

A forma de cada capítulo também varia e a história vai sendo contada por meio de cartas, entrevistas, atas de reunião e relatos de memória, emoldurados por duas narrativas construídas como uma espécie de contextualização dos episódios. Em “As cartas à destinatária inexistente” e “Post Scriptum”, que marcam, respectivamente, o início e o fecho da obra, o texto está em itálico, como a diferenciar uma voz narrativa. Esse narrador dialoga com o tempo presente situando essas duas pontas do romance no dia 31 de dezembro de 2010 e estabelecendo essa moldura que delimita e, ao mesmo tempo, em seu interior, permite o trânsito por diferentes tempos e visões sobre o trauma da ditadura, amalgamando a ficção e a história, preenchendo “as lacunas de esquecimento e os bloqueios do subconsciente com soluções inventadas”, como é citado na advertência ao leitor.

As tensões entre o ficcional e o real atuam de modo a vivificar a permanência dos resquícios da ditadura civil-militar, construindo novas representações acerca desse passado coletivo. As fronteiras incertas entre literatura, memória e história criam condições de reescrita e desvelamento de eventos históricos de opressão que passam por constantes processos de relativização e apagamento. Desse modo, observa-se na obra um empenho por dar luz a novas reflexões e entendimentos sobre um passado autoritário.

A busca do pai é o que entrelaça narrativas tão variadas e dá sentido ao romance. Ao longo desse processo, K. se vê cada vez mais distante de obter informações confiáveis sobre o paradeiro da filha e se desenha a impossibilidade e a inerência dessa busca. O uso da expressão “foram desaparecidos” merece destaque. A construção passiva atua como parte de um trabalho de ressignificação e enfrentamento ao regime ditatorial por meio do modo como se nomeia um acontecimento social. A linguagem estabelece uma resistência ao discurso que normaliza o desaparecimento como fenômeno unicamente voluntário, solapando o caráter sistemático da ditadura, que fez uso do sequestro, tortura e assassinato de seus opositores.

A distância do encontro com essa verdade sobre onde está a filha, contraditoriamente, aproxima K. de seu próprio passado, de modo que passam a se entrelaçar as suas memórias de pai, em passagens da infância da filha (como quando lhe deu seus primeiros óculos), com as lembranças, especialmente, de um passado mais remoto, de sua atuação como militante comunista na Polônia durante a Segunda Guerra Mundial, e que resultou em seu exílio. Há similaridades na trajetória de K. e da filha, ao optarem pela militância política de esquerda, que se revelam de modo progressivo no desvelar das lembranças de K., ainda latentes, sobre sua juventude.

Dessa forma, “fabulação” e “soluções inventadas” convivem com “recordações” e “lacunas do esquecimento” como em todo exercício memorialístico, assumindo-se a narrativa como metáfora de um processo psíquico. A busca empreendida pelo pai torna-se elo entre passado e presente e permite afirmar que sua história é sempre evocada pelas incidências de sua memória, como duplamente sobrevivente de catástrofes. Os tempos narrativos se sobrepõem, alternando entre o passado da perseguição vivida como judeu comunista e o presente da busca incessante e infecunda pela filha sequestrada e morta pela ditadura.

Em todo o percurso de K., destaca-se a importância do não dito e das elipses, posto que são elas que tornam difícil chegar a uma completude dos rastros na busca empreendida pelo pai e do quadro que compõe os significados do romance. No capítulo “Um inventário de memórias”, por exemplo, a fotografia ganha espaço privilegiado, pois K. encontra uma caixa com fotos antigas da filha que o fará, mais uma vez, percorrer a sua própria história. Cada fotografia cumpre um lugar de abertura, de amplificação da memória, e impõe a fabulação de informações que estão fora do quadrante fotográfico. O protagonista se depara com um universo novo ao perceber que não tem fotos com a filha e, nas poucas em que ela aparece, não sabe dizer quem são as pessoas que a acompanham, levando-o a imaginar os caminhos que a teriam conduzido para a militância ou apenas tentando explicar sua ausência. Assim, K. vai sendo tomado por sentimentos de culpa e arrependimento, pois, junto a essas fotografias, estão outras onde ele figura entre militantes e gente importante na juventude, momentos de sua trajetória pessoal dos quais se orgulha e que contrastam com a escassez de registros da filha, ato perpetuado não apenas por ele, mas por toda a família: “Lembrou-se que nas duas últimas folhas vazias a mulher colara retratos dos filhos, não mais que dois ou três, e uma fotografia da primeira neta. Mas nenhum retrato da filha”. O álbum de fotos, portanto, funciona não somente como registro lacunar, mas também como entrada para a rememoração de seu passado em que se destaca a ausência de registros seus com a filha. Já no presente, se sobressai o constrangimento que sente ao desconhecer a história de vida dela: “E só agora percebe, naqueles recortes de tempo e espaço, como a filha fora um ser frágil. K. nunca imaginou que fotografias pudessem suscitar sentimentos assim fortes. Algumas parecem até querer contar uma história”.

O crítico Flávio Aguiar, em artigo de 2011, ano do lançamento do romance, afirma que a obra compreende um processo catártico, como uma espécie de atualização das reminiscências. Essa “purgação da memória” não é entendida pelo crítico como esquecimento ou anestesia, mas como resgate do passado e emancipação do futuro, evitando assim a repetição do primeiro. A dinâmica do lembrar e esquecer é vivida pelos sujeitos no pós-ditaduras como enfrentamento ao discurso oficial que prima pelo consenso, pela ideia de que é preciso “virar a página” e construir o futuro, sem qualquer acerto de contas com o passado. Nesse contexto, a literatura pode, eticamente, assumir um papel de resistência.         

A memória coletiva também é objeto das reflexões de K. Em “As ruas e os nomes”, o protagonista é convidado a visitar um loteamento “do outro lado da ponte Rio-Niterói” em que as ruas ganham nomes de desaparecidos políticos, incluindo os de sua filha e genro. Diante disso, reflete sobre o fato de nunca ter observado os nomes das ruas e viadutos pelos quais passa cotidianamente, como se esse evento o tivesse alertado para uma face desumana do regime ditatorial, que naturaliza sua permanência por meio de quem se homenageia nas grandes metrópoles brasileiras. Nesse capítulo, observa-se um diálogo com a perspectiva histórico-cultural acerca do cuidado com a memória pública e o respeito à dor dos perseguidos por regimes de exceção. Nesse contexto, K. percebe o esvaziamento de significado dessa homenagem aos militantes desaparecidos.

A escrita literária sobre as ditaduras civis-militares vem ganhando novas projeções com obras contemporâneas que problematizam o lugar íntimo e social que esse evento histórico e traumático ocupa na sociedade brasileira. K. tem lugar paradigmático na profusão desses trabalhos, produções amplamente encorajadas e consolidadas a partir de 2014, no bojo da Comissão Nacional da Verdade e do cinquentenário do Golpe Militar no Brasil, efeméride que foi (e segue sendo) fruto de disputa, já que pessoas e instituições permanecem questionando se foi um golpe, uma revolução, um movimento. Nesse cenário, o romance de Kucinski corrobora a dimensão das relações entre ética e estética na literatura brasileira.

Para saber mais

AGUIAR, Flávio (2011). O livro do Bernardo. Observatório da Imprensa. 31 out. Disponível em: https://www.observatoriodaimprensa.com.br/armazem-literario/_o_livro_do_bernardo/. Acesso em: 08 dez. 2023.

BRAIT, Beth (2019). Discursos de resistência: do paratexto ao texto. Ou vice-versa? ALFA: Revista de Linguística, São Paulo, v. 63, n. 2, p. 243-263. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/11452. Acesso em: 10 set. 2023.

Ditadura e Literatura #22 [Locução de]: Paulo Werneck. [S. l.] 451 MHz Podcast, 17 de jul. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zmByOleFRZ8. Acesso em: 27 dez. 2023.

FINAZZI-AGRÒ, Ettore (2020). O corpo expropriado: Bernardo Kucinski – Diário de uma perda. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, v. 60, p. 1-6. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/30753. Acesso em: 10 set. 2023.

LACERDA, Amanda Lacerda de (2022). Construir a ficção, reler a História: literatura contemporânea e ditaduras latino-americanas. São Paulo: Lutz.

RUSSO, Vicenzo (2017). Pater, pátria e a memória como patrimônio: sobre K.: relato de uma busca, de Bernardo Kucinski. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, v. 50, p. 35-46. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/10166. Acesso em: 10 set. 2023.

SCARAMUCCI, Marianna (2020). Monumentos precários: luto (im)possível e lápides de papel em K.: relato de uma busca. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, v. 60, p. 1-14. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/30755. Acesso em: 10 set. 2023.    

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Como citar:

LACERDA, Amanda Lacerda de.
K. – Relato de uma busca.

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contemporânea, 

Brasília. 

22 set. 2024.

Disponível em:

1843.

Acessado em:

19 maio. 2025.