Ir para o conteúdo

Ideias para onde passar o fim do mundo

ALMINO, João. Ideias para onde passar o fim do mundo. São Paulo: Brasiliense, 1987.

Bianca Magela Melo
Ilustração: Bia Wouk

A cidade de Brasília é o cenário para Ideias para onde passar o fim do mundo, primeira ficção de João Almino (Mossoró, RN, 1950), assim como foi para os romances posteriores desse autor nascido no Rio Grande do Norte que viveu boa parte da vida na capital federal. No entanto, trata-se de uma Brasília deslocada e insólita. Na época do lançamento, em 1987, o país respirava ares de promessa após duas décadas de ditadura. Enquanto fora da ficção as atenções estavam na capital e no governo José Sarney, o livro de João Almino planta na política nacional o primeiro presidente negro eleito, Paulo Antônio. O ponto inicial da trama é uma foto do dia da posse desse presidente, tirada pelo fotógrafo Cadu, de quem, mais tarde, se conhecerá o relato de envolvimento íntimo com algumas das personagens desse registro fotográfico.

Na obra, o mundo tende a acabar em Brasília. A arquitetura estrutural e humana da cidade não pode durar, prevê a médium e vidente Íris, responsável por uma pitada de misticismo na trama. O narrador, ao contrário, dedica o livro aos ratos, acredita na sobrevivência de imensos deles e de plantas secas do planalto. A postura do narrador em relação à cidade inclui a ironia, como nos momentos em que ele brinca com a perspectiva de Brasília personificar o papel de capital do dito país do futuro: “espaços feitos para automóveis e homens gigantes” ou “para seres extraterrenos e naves espaciais”.

Íris, que mantém contato com ocupantes de um disco voador e percebe uma catástrofe a ponto de ocorrer no centro político do poder do país, é conselheira da primeira-dama Madalena. Em fuga do hospital, após uma viagem espiritual (ou imersão delirante), Íris encontra uma agitada multidão que acompanhava um comício do presidente, este que, daí a algum tempo, no feriado do carnaval, seria sequestrado. Essa cena da multidão volta na narrativa sob a perspectiva de diferentes personagens.

Na definição “Sobre o autor” do próprio livro, João Almino é apresentado como um “irrealista pós-romântico que acha a realidade inaceitável”. O ensaísta, diplomata e professor de ciência política, hoje premiado ficcionista, afirma ter levado 16 anos, entre mudanças e pausas, para encerrar o primeiro de seus oito romances publicados. O termo “híbrido”, amplamente usado para caracterizar narrativas atuais, é aplicável a esse livro escrito há quase quatro décadas: há uma mistura de registros  (realista e fantástico) e de gêneros e registros (fotografia, cinema, literatura), bem como o jogo narrativo com um narrador-fantasma cuja palavra é colocada em questão por uma manobra surpreendente na parte final do romance.

Sim, o narrador é o espírito de um falecido que “monta” nas personagens, faz deles cavalos – no sentido de incorporação de um corpo por uma entidade ou espírito. Aqui há uma referência assumida a Memórias póstumas de Brás Cubas com a escolha de narrar, não a si, mas a outros: “Morto, rendo homenagem ao velho Machado. Não me interessa saber se começo do começo ou do fim. Não quero narrar minha morte. Não me chamo Brás Cubas”. A dose alta de metalinguagem que o texto contém se deve muito às explicações do narrador sobre um suposto roteiro cinematográfico que ele está escrevendo. As escolhas, dúvidas, propostas de inícios, preferências e caminhos pensados são apresentados à pessoa leitora. “Engana-se você ao pensar que a história de Eva possa resumir-se num capítulo”; ou “Você me desculpe, prefiro um começo como um continho de fadas: era uma vez léptons e logo prótons e nêutrons”. Essa conversa, talvez mais um emparelhamento com Machado de Assis, soa excessiva aos ouvidos de hoje em alguns trechos.

De forma esquemática, o enredo detalha a ideia para um filme, tendo como cenário dois fatos pretensamente históricos: a eleição do primeiro presidente negro no país; e uma mobilização popular nas ruas de Brasília. Estão no foco ainda entrelaçamentos de caminhos das personagens da foto, mas quem aparece mais detalhadamente é o trio de mulheres composto, além da vidente Íris, pela migrante nordestina Berenice, empregada doméstica em Brasília e vítima do machismo da época, e pela irmã do presidente, Eva, figura depressiva e que sofre por amor. João Almino afirmou, em discurso proferido em 2011, por ocasião de uma das premiações concedidas a seu romance Cidade livre, que o fundamental para ele em sua criação literária é a experiência da própria linguagem; “Ainda que não houvesse enredo, meu objetivo seria que o texto se sustentasse pela escolha mesma das palavras, umas se juntando a outras de forma inesperada, evitando os lugares comuns”. Dessa maneira, reforça que as palavras criam “novas formas de expressão e espaços amplos para a imaginação”.

Em Ideias para onde passar o fim do mundo, as narrativas sobre personagens e acontecimentos são rápidas e se sobrepõem, não se fixando com grande força individual. O narrador-fantasma convive a cada vez com uma personagem, e é seu movimento que conduz a narrativa, fazendo oscilar o ponto de vista da observação. Mesmo com Íris, Berenice e Eva, a nuance é mais existencial do que subjetiva, com o narrador pontuando sempre sua própria presença e perspectiva. Em alguns momentos em que as luzes estão sobre as três mulheres, separadamente, predomina uma prosa poética, como no trecho: “Depois fui também, pouco a pouco, descobrindo que ela [Berenice] vivia num mundo que dava num muro”; ou neste sobre Íris: “Às vezes a gente deve ir até o fim da intensidade que tem dentro de si – era o que pensava – senão acaba sentindo como se morresse. Tinha, portanto, que fugir, como um dia tinha fugido de casa de seus pais”.

A foto que originou a narrativa foi mostrada ao narrador por sua esposa Silvinha. A imagem chama atenção por destoar do presente mundial, “prenúncio de grandes guerras”. A composição com pessoas felizes festejando era um aparte e demonstrava um lado romântico da população, ao imaginar que “desta vez seu sonho ia ser possível com a eleição de Paulo Antônio”. Era um sonho que carregava “a utopia do desprezo completo pelo poder”. No entanto, após o sequestro do presidente, tem-se a ideia de que forças contrárias iniciaram embates vigorosos – a pouca sustentabilidade do governo federal sendo uma outra imagem para o fim do mundo.

Tivesse o livro sido escrito por um/a autor/a negro/a, possivelmente o presidente Paulo Antônio teria recebido uma construção mais representativa. Apresentado como o primeiro presidente negro da história do país e como “filho adotivo de um general”, sua presença em cena é mínima. O próprio fantasma-narrador chega a aparecer mais nas suas oscilações e na relação com Silvinha, que é filha de Madalena. A eleição de um presidente negro em um país profundamente marcado pelas questões raciais teria, em outro contexto, amplo espaço para ser mais profundamente explorada. O preconceito em relação ao presidente é explicitado, porém, difusamente, a exemplo das falas do namorado de Berenice, Zé Maria, que estaria envolvido em movimentos de oposição ao presidente: “E Zé Maria, ele mesmo meio escuro, tinha lhe dito um dia a ela, Berenice, que Paulo Antônio era preto querendo se passar por branco, mas isso até hoje ela não sabia o que significava”.

Da forma como o romance foi estruturado, a questão do preconceito racial não se encontra no centro da narrativa e não recebeu muita atenção como tema da obra. Verdade que a ficção de João Almino não se constrói com um único centro de atenção. O livro pode ser consultado hoje pela perspectiva de invenção narrativa, retrato de uma época e de um artista, e pela gênese da relação ficcional de Almino com a cidade de Brasília, objeto de fascínio e canteiro de invenções para ele ao longo da vida. Lugar “sem passado, sem tradição, onde as verdades se construíam livremente”, como afirmou o narrador de Ideias para onde passar o fim do mundo. Essa cidade, local onde floresceram tantos capítulos da nossa história política, também testemunhou o surgimento de seitas místicas e profecias sobre o fim do mundo, associadas ao seu próprio nascimento e ocupação.

Para saber mais

BULCÃO, Armando (1987). O Brasil com um presidente negro, civil e popular. Correio Braziliense, Aparte, domingo, 8 de nov.

STRELETCKI, Ana Carolina Canuto (2021). Brasília: espaço, patrimônio e narrativas nas obras de João Almino. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de Brasília, Brasília. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handle/10482/43027. Acesso em: 12 ago. 2023.

FISCHER, Almeida (1988). Ficção. Recensão crítica. João Almino, Ideias para onde passar o fim do mundo. Colóquio Letras, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, n. 102, p. 134-135.

LAFETÁ, João Luiz (2004). Entre a fotografia e o romance. In: LAFETÁ, João Luiz. A dimensão da noite e outros ensaios. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34. p. 522-524.

Iconografia

Tags:

Como citar:

MELO, Bianca Magela.
Ideias para onde passar o fim do mundo.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

29 jul. 2024.

Disponível em:

1837.

Acessado em:

19 maio. 2025.