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Enquanto meu pai morre

GARCIA, Alfredo Guimarães. Enquanto meu pai morre. Bragança: Pará.grafo, 2019.

Angela Rodriguez Mooney

Ilustração: Espírito Objeto

Enquanto meu pai morre (2019), primeiro romance do escritor paraense Alfredo Guimarães Garcia (Bragança, PA, 1961), narra a história de Joaquim, um homem de meia-idade que retorna a Benquerença, no estado do Pará, após mais de uma década exilado no exterior. Foi o golpe ditatorial de 1964 que o fez abandonar sua terra natal e aventurar-se por Cuba, Buenos Aires, Paris, Barcelona, Santiago do Chile, Zaragoza, entre outras cidades. Embora a anistia política no país houvesse permitido o retorno de muitos dos exilados políticos ao Brasil em 1979, Joaquim apenas voltaria em 1989, para acompanhar o pai, que se encontrava próximo à morte. Esse reencontro é permeado por ansiedades e estranhamentos em relação a um país marcado por modernidades de consumo e por jingles da campanha eleitoral dos candidatos Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Mello, na primeira eleição democrática à presidência após a ditadura.

Enquanto meu pai morre está organizado em 13 capítulos, nos quais o narrador percorre memórias relacionadas a eventos e pessoas com quem reata contato durante seu retorno e que foram importantes em seu passado (“Retorno”, “Joaquim”, “Joshua”, “Nágila” etc.). Três desses capítulos, “Primeiro Sonho”, “Segundo Sonho” e “Terceiro Sonho”, apresentam uma narrativa diferente dos demais, contribuindo para dar uma coesão lírica à obra, abalizando um trajeto de nascimento, infância e morte.

Desde “Retorno”, primeiro capítulo, presenciamos Joaquim tentando articular histórias pessoais e coletivas a partir de restos e reminiscências do passado. Esse trabalho de rememoração é desenvolvido no texto de forma fragmentada; lembranças da infância e da juventude são entrecortadas por poemas, canções e jingles de candidatos. A intertextualidade, que na narrativa se manifesta de forma explícita, é o elemento formal mais marcante na obra. Toda a narrativa é costurada ao redor de textos que buscam ilustrar eventos do passado. Desse modo, versos de Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Walt Whitman, Manuel Bandeira, canções de Caetano Veloso, Orlando Silva, entre outros, aparecem como dispositivos para explicar sensações e valores do protagonista diante dos desafios vivenciados por ele e pela sociedade durante os anos 1960 e 1970. Por exemplo, ao descrever os motivos que o levaram a se exilar durante a ditadura, Joaquim menciona a impossibilidade de convivência na sociedade hipócrita da época, o “despropósito das coisas do estado, a falência das nossas elites, a criação de uma burguesia estúpida, iletrada, anódina e lambedora dos sacos patronais”. Em seguida, cita os versos de “Só a natureza é Divina, e Ela não é Divina”, do heterônimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro. Os versos do poeta português aparecem em outras passagens, como quando o protagonista descreve a prisão do pai, simpatizante do Partido Comunista, que esteve preso por dois dias, mas permaneceu em silêncio durante todo o interrogatório. Nessa passagem, o narrador Joaquim termina o relato com estrofes de “Hora absurda”.

A abundância de citações no texto, muitas vezes após a introdução de eventos críticos na reconstrução da memória pessoal e coletiva, parece competir, e por vezes distrair ou mesmo borrar, as particularidades de um passado que, com esses dispositivos, se revelam passageiras. Em Teoria estética, Theodor W. Adorno explica que diante da desumanização, de uma experiência que, por definição, é irrepresentável, a relação e as convenções triviais com a linguagem são obrigatoriamente revistas. Uma ruptura que possibilite um caminho diferenciado de conhecimento e formulação de ideias se faria, então, necessária. Sem essa diferenciação, a linguagem não é capaz de embarcar a nova realidade e provocar no leitor a estranheza, terrível e singular, da experiência representada. Por isso, para Adorno, a literatura seria um dos poucos lugares em que o sofrimento pode ainda encontrar sua própria voz e consolo, sem se ver imediatamente traído. Apesar de sua potencialidade, Adorno nos lembra também da possibilidade, sempre presente, de sublimação do horror por meio da estilização estética. Em vez de provocar o estranhamento necessário para aproximar-se da experiência de Joaquim, a estetização do narrado, por meio do excesso de intertextualidade de conteúdo literário na obra, provoca uma dessensibilização e afastamento daquilo que se deseja representar.

Em Enquanto meu pai morre observa-se também uma urgência em narrar acontecimentos que marcaram a formação do protagonista e do país, como a construção da estrada Transamazônica, a renúncia do presidente Jânio Quadros, o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil, o assassinato de John Lennon, o golpe ditatorial no Chile e o suicídio de Salvador Allende. Com isso, a obra ganha uma configuração de diário, mas vacila diante do imperativo de Walter Benjamin de “escovar a história a contrapelo”. Se é verdade que o narrador narra eventos históricos sob o ponto de vista dos vencidos, articulando seu discurso a partir dos restos e reminiscências do passado, a ausência de uma crítica em relação à classe à qual pertence revela a inconsistência de uma esquerda acomodada pelas injustiças e desigualdades no país.

Por exemplo, ao retornar a Benquerença e assumir os cuidados do pai doente, Joaquim busca cuidadores que se revezem nas responsabilidades durante o dia e a noite. Nessa procura, é orientado por Nágila, antigo afeto da juventude e com quem estabelece um romance após seu retorno do exílio, a contratar um enfermeiro chamado Benedito. A amante revela que o rapaz é seu meio-irmão, filho do relacionamento que o pai teve com a empregada Mundica, e que foi enviado após o nascimento para viver uma “infância paupérrima” com uma tia na periferia. Durante o encontro dos irmãos, Joaquim lembraria que Benedito esteve em sua casa algumas vezes no decurso de sua infância, nos eventos em que era trazido para cuidar de Joaquim durante as copiosas festas da abastada família: “Quando vinha ao casarão (…) Benedito ganhava gorjetas generosas para brincar com alguns dos moleques e molecas da parentela, enquanto tios e tias, adultos e adolescentes ou estavam se empanturrando de maniçoba (…)”.

A miséria na qual cresce o filho da empregada é um detalhe naturalizado que parece não afetar a veneração que Joaquim e todos seus colegas que se opuseram à ditadura atribuem ao “professor e advogado respeitável” e pai do protagonista. É notável que Benedito, já adulto, retorne à casa paterna mais uma vez como empregado, repetindo o destino da mãe, agora na função de cuidador do pai. Mantém-se, dessa forma, uma ordem e um sistema de classe em que a elite, seja ela de esquerda ou de direita, é beneficiada. Denunciado na literatura de Conceição Evaristo – “A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para ‘ninar os da casa-grande’ e sim para incomodá-los em seus sonhos injustos” –, o mito da democracia racial, o convívio amigável de pessoas de raças e classes socioeconômicas distintas no Brasil, é articulado em Enquanto meu pai morre, fazendo jus à referencialidade em relação ao mundo empírico bastante comum na literatura brasileira contemporânea. Nesse ponto, a obra se apresenta como uma importante contribuição na tradução da dificuldade da elite de esquerda em romper, ou mesmo reconhecer, privilégios e injustiças históricas atualizadas em um convívio tão próximo.

Mesmo no último capítulo, intitulado “Despedida”, onde Joaquim e Benedito acompanham os últimos suspiros do pai, a reflexão do narrador sobre o infortúnio do irmão, que chora copiosamente a morte de um pai desconhecido, naturaliza e isenta sua família e sua classe de qualquer responsabilidade: “Como acolhia a chacota dos outros meninos — e sim, lhes digo, os infantes são muito cruéis quanto a isso! — na escola, na rua? Filho da puta. Filho do vento. Filho do boto. Filho… Sem pai. Sem história… Um punhal que a vida lhe cravara logo no nascimento”.

Foi a vida, e não o pai de Joaquim, que beneficiado de uma relação de poder, abusou sexualmente de uma empregada. Foi a vida, e não o pai, que não reconheceu o filho e cuidou de sua formação. Foi a vida, e não a mãe e o pai de Joaquim, que se livrou da criança, mandando-a viver com uma tia distante.

No capítulo “Benedito”, destinado à vida do irmão, a história dos anos de formação deste aparece intercalada com a história de Joaquim, durante o período em que ambos estudaram em Belém. Nesse capítulo, fica evidente o desinteresse de Benedito pela política e pela repressão imposta pelo governo ditatorial na época, enquanto Joaquim se engajava no Movimento Secundarista de Resistência ao Golpe Militar (MSRG), apoiado pelo Partido Comunista do Brasil. Ao ser delatado aos militares, Joaquim fugiria do país em direção ao Chile. Benedito, ao contrário, “passava incólume por tudo isso”, tentando concluir o curso de enfermagem com imenso sacrifício.

Tal paralelismo provoca questionamentos sobre como condições socioeconômicas influenciaram o engajamento político da época, ilustrando uma dinâmica apontada pela pesquisa de Marcelo Ridenti, a qual revela que a maioria dos jovens adeptos da luta armada pertencia às camadas médias e altas intelectualizadas. Embora não tenham participado da luta armada, Joaquim e os demais personagens na obra, com exceção de Benedito e das duas personagens femininas, Nágila e sua irmã, Jahara, ostentam erudição em diálogos permeados novamente por citações e clamores rebeldes contra a classe burguesa. Declara-se o ódio aos militares e à elite decadente, enquanto seus cafés continuam sendo servidos por mãos serviçais.

Para saber mais

ADORNO, Theodor W. (2015). Teoría estética: obra completa 7. Madrid: Ediciones Akal.

BENJAMIN, Walter (1994). Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. v. 7. Trad. de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense. p. 222-232.

EVARISTO, Conceição (2007). Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (Org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições. p. 16-21.

NUNES, Joaquim Gonzaga; SILVA, Milva Valéria Garbellini e (2021). A tríade autor, texto e leitor no romance Enquanto meu pai morre, de Alfredo Guimarães Garcia: perspectivas de leitura. In: ORTIZ, Iza Reis Gomes; PEREIRA Eliane Auxiliadora; MOLINA, Maria de Fátima Castro de Oliveira (Orgs.). Literatura, cultura e sociedade. Porto Velho: Coleção Pós-Graduação da UNIR – EDUFRO. p. 112-124.

RIDENTI, Marcelo (2010). O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora Unesp.

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Como citar:

MOONEY, Angela Rodriguez.
Enquanto meu pai morre.

Praça Clóvis: 

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crítico 

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literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

29 jul. 2024.

Disponível em:

1832.

Acessado em:

19 maio. 2025.