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Gaspar e a Linha Dnieperpetrovski

CAPPARELLI, Sérgio. Gaspar e a Linha Dnieperpetrovski. Porto Alegre: L&PM, 1994.

Aline Leal Fernandes Barbosa

Ilustração: Marlova Assef

Gaspar e a Linha Dnieperpetetrovski, romance de Sérgio Capparelli (Uberlândia, MG, 1947), narra um período conturbado na vida da família Barsotti, agricultores de Passo das Antas, uma pequena terra em Cosenza, colônia ítalo-sul-rio-grandense, nos anos da Segunda Guerra Mundial. No Brasil, vivia-se o governo de Getúlio Vargas, em que recaía sobre o imigrante italiano a suspeita de quinta-colunismo, de ser espião de Mussolini ou agente do anarquismo internacional. Gaspar é filho de Emanuel Barsotti, italiano que, ainda jovem, viera tentar a vida no Brasil, e de Dona Marietta, uma mulher dedicada ao lar. O protagonista é retratado como um tipo dotado de vigor físico, porém acometido de certa deficiência intelectual: “Aos 12 anos tinha sido expulso da escola porque não acompanhava o ritmo de aprendizado dos outros alunos. Agora, com 23, era capaz de substituir Nero puxando o arado, de tão forte”. Nero é o cavalo que o pai chicoteia até fazer sangrar para arar a terra magra e pedregosa que teimam em cultivar. Esse cavalo aparece para Gaspar como assombração, tornando-se mais recorrente após morrer de exaustão em um dia de trabalho intenso. Os outros membros da família são: Mariana, a irmã bebê por quem Gaspar tem grande afeição; Beatriz, a irmã mais velha, que não quer repetir o destino doméstico das mulheres, como o de sua mãe; Tio Leo, irmão de Emanuel, que vivera alguns anos na Argentina, onde conhecera um tal de Jorge Luis Borges; sua esposa, tia Carmelinda; e Agnes, a filha do casal, prima e afeto de Gaspar e Beatriz, que vai viver em Passo das Antas durante o período em que se desenvolve a trama.

O romance começa com a invasão às terras da família Barsotti por Baldosso e Oliveira, agentes da companhia rio-grandense Álcool-Motor cedidos pela polícia política de Getúlio Vargas. Eles estão interessados em apropriar-se das terras da região para desmatá-las, plantar mandioca e produzir combustível. A ameaça de perder a terra atravessa todo o romance, servindo como o fio que conduz grande parte das tramas que fazem o enredo avançar.

Certo dia, um homem chamado Ménard chega a Passo das Antas, por indicação de tio Leo, para alugar a casa do moinho por uma temporada. Ainda que Emanuel não estivesse muito interessado, o forasteiro lhe oferece a exata quantia necessária para quitar a hipoteca de suas terras. Professor de literatura, escritor e amante da fotografia, Ménard tem uma tese de viés platônico que propõe que a ideia precede a realidade. Assim, segundo ele, qualquer obra imaginada teria seu correspondente na realidade: “Penso que uma obra literária – um romance, por exemplo – pode existir factualmente no mundo real, ocorrendo apenas um descompasso de tempo e pequenas nuances a que chamo disfarces”. Ménard parece ser dotado do poder da vidência, tanto do futuro quanto do passado. Seu interesse na fotografia diz respeito sobretudo a seu potencial de duplicação – senão de multiplicação – do mundo.

Tio Leo – de espírito revolucionário – retorna de uma longa temporada na Argentina para Cosenza, onde abre uma gráfica e imprime um jornal anarquista clandestino chamado O revoltado. Durante uma conversa com o irmão Emanuel, comenta estar impressionado com a força do exército alemão. Esse comentário lhe rende a pecha de admirador do nazi-fascismo, fornecendo respaldo à perseguição pela polícia varguista e justificando a invasão de suas terras.

Enquanto isso, a amizade e a proximidade de Beatriz e Agnes vão se estreitando, levando-as a excluírem Gaspar de suas brincadeiras íntimas. As duas rejeitam o destino de dona de casa que veem em Marietta, não querem se casar e ficar confinadas ao ambiente doméstico. Ao fim do romance, preparam-se para ir viver em Porto Alegre, rompendo com o ciclo repetitivo das famílias de colonos.

A presença de Ménard é cada vez mais incômoda; suas premonições causam desconforto nos habitantes da pacata cidade. Aos poucos, ele vai adquirindo contornos de louco, perturbado, quando começa a perceber que o avançar das tramas está fugindo ao seu controle, na medida em que as personagens não seguem o destino que ele lhes havia escrito. Gaspar o adverte para não se intrometer em sua vida, ao que Ménard responde: “Tenho de cuidar de ti. Você é meu filho”. A referência ao personagem borgiano é explícita: aquele que reescreve ipsis litteris o Quixote de Cervantes, mas que, no entanto, cria um outro romance.

O contexto histórico de uma colônia italiana no Sul do país na década de 1940 vai sendo apresentado ao longo da narrativa. Há o campo da tradição, representado pelos pais, firmes na manutenção do status quo; há a vontade de transgressão, de ultrapassar a situação que se oferece como destino, encaminhada por Beatriz e Agnes, que insinuam uma relação homoerótica. Segundo a orelha do livro, escrita pelos editores, Gaspar tem inspiração no personagem de Werner Herzog Caspar Heuser, que possui uma leve deficiência intelectual, porém está obstinado a conduzir os acontecimentos. A Linha Dnieperpetrovski, do título do romance, aparece em algumas poucas citações. Quando estava no hospital para tratar de uma lesão causada pelo trabalho excessivo na colheita, Emanuel compra um rádio para seguir as notícias da guerra: “De fato, o pai seguia passo a passo os avanços e recuos dos japoneses a caminho de Rangum […] E reclamava que os estrondos dos canhões do general Timochenko, defendendo a linha Dnieperpetrovski, não o deixavam dormir”. A linha defendida parece ser aquela em que se escreve uma história, sempre ameaçada de ser atacada, seja pelas personagens que se revoltam contra seu determinismo literário, seja pelo real que irrompe no fictício – e vice-versa.

São as mal traçadas linhas que Gaspar – foco narrativo do romance – contesta do seu suposto criador. Por que ele o teria feito assim, por que havia tramado o seu tormento, “urdido a sua incapacidade de adaptação ao mundo”? No entanto, parece que nem tudo ia de acordo com o que queria Ménard, e ele sugere que talvez seja Tio Leo o “exímio construtor de abismos”. Assim, seria Ménard também uma ilusão, personagem de algum construtor de mundos, ou seja, de um escritor de literatura, o autor do romance, que nos leva, no seguir dessa linha, ao próprio Capparellli. Sabendo-se ilusão de uma ilusão, Gaspar decide atentar contra a própria vida, acreditando assim deter algum controle. O romance de Capparelli termina junto com o texto de Ménard, personagem de Tio Leo, tipógrafo anarquista. Ambos anunciam o fim ao mesmo tempo, coincidindo em colocar o ponto final. Fica evidente o caráter metalinguístico e a narrativa em abismo que Capparrelli quer orquestrar, em referência e reverência ao mestre argentino das letras.

O romance, fincado histórica e geograficamente, quer, ao que parece, evidenciar o que há de construção em toda narrativa, indicando um sujeito responsável por criar vidas, conflitos, relações, cenários: como se o personagem-autor rompesse a quarta parede e se revelasse simultaneamente para os seus personagens-criaturas e para o público-leitor. Intercala-se, assim, o aceno que o romance faz para o mundo “real” – isto é, o mundo da não ficção, em que os acontecimentos ditos históricos se desenvolvem – e o que faz para o mundo das ilusões, que seria o mundo da própria literatura. Essa fricção é o fundamento do romance, o solo em que ele se desenvolve. A tese de Ménard, que é a tese do próprio romance, de que haveria um mundo das ideias que precede o mundo real, é desenvolvida de modo a criar certa oscilação narrativa. Ainda, o foco narrativo de um personagem com deficiência intelectual propicia algumas cenas inusitadas, como aquela em que ele pede três bananas splits a cinco graus de temperatura, o que oferece certa graça ao romance e um potencial desestabilizador. Ménard, por sua vez, parece cada vez mais louco, apartado do mundo da razão. Apesar da pequena reviravolta a que se assiste – a de que Ménard é também fruto de uma imaginação –, há pouco espaço para se imaginar um desfecho diferente daquele em que o personagem-autor e a narrativa se extinguem mutuamente. No entanto, o autor consegue, com certo êxito – graça e habilidade romanesca –, brincar de exibir a arquitetura de um texto literário, desconstruindo-a para colocar outra de pé, ou seja, produzindo uma metaficção. O romance é dividido em três partes: 1. Plantio; 2. Crescimento e 3. Colheita, invocando a estrutura de uma narrativa em três atos, a mais tradicional de um romance com começo, meio e fim.

Para saber mais

DALCASTAGNÈ, Regina (2001). Personagens e narradores do romance contemporâneo no Brasil: incertezas e ambiguidades do discurso. Diálogos Latinoamericanos, Aarhus Universitet Dinamarca, n. 3, p. 114-130.

DALCASTAGNÈ, Regina (2005). Vivendo a ilusão biográfica. A personagem e o tempo na narrativa brasileira contemporânea. Literatura e sociedade, São Paulo, v. 10, n. 8, p. 112-125.

DALCASTAGNÈ, Regina (2012). O narrador e suas circunstâncias. In: DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Vinhedo: Horizonte. p. 75-107.

FABRETTI, Lígia Maria (2013). Itinerário de um poeta: Sérgio Capparelli e a poesia infantil e juvenil. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual de Maringá, Maringá. Disponível em: http://repositorio.uem.br:8080/jspui/bitstream/1/4134/1/000205592.pdf. Acesso em: 22 dez. 2023.

RUSSEL, Giselle (2009). Da página do livro à tela do computador: um percurso histórico para a poesia infantil. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo. Disponível em: http://dspace.mackenzie.br/handle/10899/25424. Acesso em: 22 dez. 2023.

Iconografia

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Como citar:

BARBOSA, Aline Leal Fernandes.
Gaspar e a Linha Dnieperpetrovski.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

29 jul. 2024.

Disponível em:

1826.

Acessado em:

19 maio. 2025.