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Estive em Lisboa e lembrei de você

RUFFATO, Luiz. Estive em Lisboa e lembrei de você. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Gabriel Estides Delgado
Ilustração: Jamilly Starling

A capa da primeira edição de Estive em Lisboa e lembrei de você estampa sobre o fundo preto um bonito galo português de Barcelos, num pontilhismo texturizado de bibelô. E como comumente se vê nos suvenires lusos, corações estão estilizados junto ao símbolo do país. Trata-se de um pequeno romance – pelo tamanho, uma novela – do consagrado escritor mineiro Luiz Ruffato (Cataguases, MG, 1961). Esse aspecto comercial ostensivo de Estive em Lisboa e lembrei de você não é por acaso. O livro é o produto mais bem acabado do fenômeno editorial que sacudiu o mercado das letras nas décadas de 2000 e 2010 no Brasil. A coleção “Amores Expressos”, bancada pela Companhia das Letras e pelo produtor Rodrigo Teixeira, enviara ao exterior 17 escritores, em sua maioria absoluta homens e do Sudeste brasileiro – motivo de grande desconforto e debates públicos na imprensa –, para que, em diversas metrópoles estrangeiras, vivessem por um mês elaborando o que viria a ser uma obra de inspiração afetiva. A prosa, ainda, deveria guardar algo de roteiro, tendo em vista ser mais facilmente adaptada para o cinema, isto é: escrita rente à fala, diálogos vívidos, construção plástica do texto, pontuação cênica detida.

Se apenas a fórmula dessa técnica narrativa – e, sobretudo requisitada por um projeto de cunho essencialmente comercial – não alcançaria por si só nada além do que as páginas de um manual de escrita criativa, sua aplicação à perfeição, como é vista em Estive em Lisboa e lembrei de você, depende do conteúdo que vai como que imantar essa forma. Surge nesse ponto de modo proeminente o motivo que sustenta o edifício ruffatiano numa obra já extensa e incontornável para o entendimento social e cultural do Brasil contemporâneo: decadência profunda da industrialização brasileira na virada do século XXI, figurada numa espécie de “aquário” retumbante desse processo que é Cataguases, pequena cidade da Zona da Mata mineira onde nasceu o escritor e cuja indústria têxtil pujante na primeira metade do século XX produzirá, mais tarde, levas de migrantes, em direção a centros urbanos maiores.

Essa escalada populacional concentracionária, de que Ruffato ainda tira as consequências em livros mais recentes, encontra na pequena novela, que merece destaque, um ponto de inflexão importante. É que tudo ali, como veremos, corre em sobretom em relação ao restante da obra do autor. Nessa opereta, seus leitores têm o privilégio de ver até onde pode ir o estilo que satura notas de um “mineirês” a um só tempo popular e melancólico, e também observar um Ruffato livre das pesadas cargas de escritor engajado que sobrecarregam seus enredos, nunca neles negando o humor característico de toda boa literatura, mas impedindo, sim, o escracho permanente, que, entretanto, vem a lume em Estive em Lisboa e lembrei de você.

O primeiro exagero picaresco da história diz respeito à trama básica que vive o protagonista. Serginho é um cidadão de Cataguases que resolve emigrar para Portugal; ocorre que, bem-vista, essa não é lá bem uma tradição da cidade ou mesmo da Zona da Mata, mais ligada à migração local para o Rio de Janeiro e São Paulo. A ideia é extravagante, quixotesca, exógena, literária. Para ela, uma solução bem se enquadra: Ruffato “entrega” a narração do livro a seu personagem. No livre discurso em primeira pessoa, os delírios de humor, puxando o que de melhor o acento mineiro pode entregar – na melhor tradição de Guimarães Rosa – escorrerão o escracho programado por esse modus autoral algo único na obra ruffatiana. Vejamos quando surge a ideia da imigração por parte de Serginho: “O resto da semana gastei agitado, sem condição de dormir ou alimentar direito, um trem esquisito, um lado, bobo-alegre, projetava, daí a pouco, caminhando, por aquelas mesmas ruas, feito lorde, o povo todo puxando-saco, Serginho isso, Serginho aquilo, Doutor Serginho, só faltava deitarem no chão para eu pisar em cima, mas o outro lado, cu-na-mão, pouco andejo, de cidade-grande conhecia, de passagem, o Rio de Janeiro (cinco vezes, em excursão, pra molhar os pés no mar em Copacabana, subir no bondinho do Pão de Açúcar, ver jogo do Flamengo no Maracanã) e São Paulo (pra Semíramis comprar roupa pra revender), e Juiz de Fora também, mas Juiz de Fora não conta, é meio quintal de Cataguases, além de Piúma, que virou febre ir passar o fim de ano na praia lá (…), entretido em jogar buraco e cacheta a-valer na pracinha do Pau-Morto (por causa da audiência dos aposentados), perseguindo moça-solteira no comércio e na indústria, inventando jeitos de incrementar a moto para fazer bonito nas visitas à parentalha espalhada pelas grotas entre Ubá e Viçosa (Senador Firmino, Presidente Bernardes, Dores do Turvo, Senhora de Oliveira), e agora embarcar pras lonjuras de Portugal, sem ninguém, meu deus do céu!”

O livro, que viria a ser de fato adaptado com sucesso para o cinema em 2015, em longa homônimo do português José Barahona, apresenta-se organizado no formato de um depoimento prestado por Serginho em Portugal, após desventuras severas que culminam no roubo de seu passaporte. A personagem acaba por se estabelecer em Lisboa como imigrante ilegal – na função, sobretudo, de garçom –, preso a uma tentativa longa e malfadada de economia de dinheiro para um regresso exitoso ao Brasil, onde deixara o filho a sua espera. A novela é bipartida, sendo que a primeira parte do depoimento se intitula “Como parei de fumar” e diz da esperança de uma ideia de imigração a partir do desemprego no interior de Minas Gerais – um dos estados mais ricos do Brasil, nota-se. A segunda parte responde à solicitação da coleção “Amores expressos” e é toda ambientada em Lisboa. Por conta dos sobressaltos que solapam os sonhos ascensionais, intitula-se “Como voltei a fumar”. Tangencialmente, Serginho encontra-se com Sheila, uma imigrante goiana que, sem conseguir outro emprego, acaba tendo que se prostituir, segundo a escolha de enredo algo batida e sexista feita por Ruffato. Apesar de perfeitamente verossímil, dado que as personagens do autor são em sua maioria pobres ou de classe média baixa, sabe-se que caracterizar ficcionalmente mulheres como prostitutas está entre os clichês literários mais empregados e, portanto, mais restritivos em termos de representação artística da realidade.

Essa história romântica, apenas embrionária e fracassada, apesar de bem ajeitada junto à estrutura da novela, permanece como mero cumprimento da exigência comercial da coleção de que o livro é tributário, posto que, a nosso ver, a força poética da novela deriva da nostalgia das personagens migrantes em relação ao lugar de origem, nostalgia essa transposta como forma, ou melhor, como linguagem viva – imagens de linguagens elaboradas pela arte do escritor: “Seu Seabra bateu de-com-força na porta do quarto nem sete horas da manhã, eu tinha ido dormir tarde, engastalhado no movimento d’O Lagar do Douro, despertei tordoado, ardência nos olhos, ‘Senhor Sampaio, Senhor Sampaio’, ele gritava, ‘Telefone’, fraquejei, as pernas sem fôlego antevendo desgraça, imaginei o pior, morte, doença, pedição de dinheiro, essas arengas todas, de alguém lá do Brasil, a Stela conhecia o número do hotel, a Semíramis também, pra o caso de uma emergência, mas ninguém nunca ligou, eu transferia dinheiro pra conta da minha cunhada, religiosamente, um auxílio pro Pierre e pra Noemi, na agência Uéstem Únion, sobrava uma mixuruquice pra vencer as quatro semanas seguintes, e, economista, ainda ajuntava pra adquirir uns imóveis em Cataguases, garantidores do meu futuro”. Está aí a saudade cronificada, a tristeza que se sabe insolúvel, presa de uma realidade de impossibilidades muitas vezes vividas.

Quanto às questões mercadológicas, por conta da qualidade deste e dos outros produtos que a compõem – romances de Amílcar Bettega, Sérgio Sant’Anna e Bernardo Carvalho, para citar alguns dos melhores –, a coleção “Amores expressos” tornou-se um marco incontornável na história da literatura brasileira contemporânea. Sobretudo, é um estágio importante de internacionalização das letras nacionais. No exemplo lapidar de Estive em Lisboa e lembrei de você, além de a novela ser filmada por um diretor português, o livro teve seus direitos de tradução amplamente negociados no mercado internacional, sendo traduzido para o espanhol, italiano, francês, alemão e finlandês. O sucesso de Ruffato redundaria na sua escolha como orador do discurso de abertura da participação do Brasil como país homenageado da Feira do Livro de Frankfurt em 2013, o maior encontro editorial do mundo. Para um país e uma língua que sempre se ressentiram, com razão, de atroz marginalidade e mesmo invisibilização no concerto internacional da cultura, peças importantes passavam a se mover, com a ajuda, pasmem, do capital.

Para saber mais

DELGADO, Gabriel Estides (2013). O depoimento como forma: leitura de Estive em Lisboa e lembrei de você, de Luiz Ruffato. Palimpsesto. Rio de Janeiro, n. 16, p. 1-17. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/palimpsesto/article/viewFile/34841/24614. Acesso em: 12 jan. 2023.

GUERINI, Andréia; AIRES, Leomaris (2017). Entrevista com Mathieu Dosse, Gian Luigi de Rosa e Michael Kegler – Tradutores de Luiz Ruffato em francês, italiano e alemão. Cadernos de Tradução, v. 37, n. 3, p. 406-245. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2017v37n3p406/34864. Acesso em: 12 jan. 2023.

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DELGADO, Gabriel Estides.
Estive em Lisboa e lembrei de você.

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17 jun. 2024.

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19 maio. 2025.