HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Bruna Kalil Othero
Ilustração: Manuela Dib
Desde a epígrafe citando W. H. Auden, o leitor já sabe que Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum (Manaus, AM, 1952), se voltará para a memória e se situará em um espaço de água, de rio. O romance se organiza como um arranjo de vozes orquestrado por uma narradora-arquivista, que coleta depoimentos com o objetivo de enviá-los ao seu irmão que mora no exterior. Dessa forma, o primeiro livro de Hatoum inicia uma estética que será recorrente em suas obras futuras: o uso do recurso epistolar. Esse constante diálogo com o “tu” é eficaz porque traz consigo uma intimidade radical junto a uma possível quebra de quarta parede: quem narra está conversando com quem lê.
A linguagem é o que dá humanidade aos seres humanos. E a linguagem, aqui, tem diversos suportes; vozes se misturam a mãos, boca, escrita, fala e comida – e, nesse contexto, a palavra significa a existência do mundo. O livro se destaca pela presença constante da carta e da fotografia, artes que são utilizadas como símbolos para falar da persistência da memória. A narrativa em Relato de um certo Oriente é fragmentada e não linear, como se a voz da narradora, por vezes escondida pelas aspas que usa para citar os outros narradores, fosse ecoada pelas personagens, que relatam suas perspectivas da grande história geral: forma-se então um coral de vozes dispersas.
A mudança é um tema recorrente na obra, que aborda a experiência de imigrantes libaneses no Brasil utilizando a fronteira linguística como uma das principais metáforas para falar do choque cultural. A paisagem oceânica do agora, em contraste com as montanhas cobertas de neve do passado, evoca tensões entre tempos e a presença de Deus em outro idioma. Diversas personagens descrevem a sensação de conviver com dois sistemas linguísticos e ter a impressão de viver vidas distintas. Assim, a língua funciona ora como denominador comum entre estranhos, ora como separador de mundos entre familiares. As personagens exploram a relação entre a língua nativa e a língua estrangeira, destacando o poder que a língua materna, cheia de prazer e soberania, tem de eleger os caminhos pelos quais passam o afeto, o olhar, o gesto e a fala. O leitor encontra-se diante de diversas perguntas que provocam reflexões sobre temas como o papel do imigrante libanês no Brasil e os privilégios que alguns têm em relação a outros – raça e classe também são fatores importantes nessa equação.
Relato de um certo Oriente também aborda questões sociais e culturais importantes, como a violência contra trabalhadoras domésticas, o trabalho sem remuneração, descrito como uma forma estranha de escravidão, e a discriminação de corpos desviantes – pessoas com deficiência, pessoas não brancas e outras minorias políticas. Além disso, o livro aborda a herança indígena e personagens ribeirinhas, explorando a diversidade cultural do Brasil e sobretudo do Amazonas, reafirmando a importância dessas populações marginalizadas para a construção do que se entende como identidade nacional do país.
Há o uso de metáforas visuais e sensoriais para descrever lembranças e fantasmas do passado, que muitas vezes assombram as personagens, como um relógio antigo, símbolo que constantemente ressurge, e a ideia do claustro e das prisões interiores e exteriores. A cidade de Manaus é retratada como uma cidade d’água, na qual as histórias se misturam e as pessoas compartilham suas confidências, suas lembranças e seus silêncios.
Em Relato de um certo Oriente, a linguagem é usada como uma forma de explorar as diversas facetas da humanidade, as suas memórias, histórias, culturas e línguas. Milton Hatoum utiliza uma narrativa fragmentada e não linear para criar uma obra que é, ao mesmo tempo, poética e crítica, explorando temas importantes da atualidade como a mudança, a língua e a violência social. A obra de Hatoum, ao utilizar a linguagem para dar voz a personagens muitas vezes esquecidos ou marginalizados, destaca-se como uma das mais importantes e influentes da literatura brasileira contemporânea. As novas gerações de escritores já leem e dialogam com o escritor amazonense em suas obras. Portanto, pode-se afirmar que os livros de Milton Hatoum se inserem no imaginário nacional como clássicos, desdobrando-se em adaptações audiovisuais e dramatúrgicas, apresentando outros Brasis aos brasileiros.
Para saber mais
BLETZ, May (2011). Entre Amazonas y el Oriente: el Orientalismo revisitado em Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 33, p. 193-203. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9593. Acesso em: 19 maio 2023.
CURY, Maria Zilda Ferreira (2000). De orientes e relatos. In: SANTOS, Luis Alberto Brandão; PEREIRA, Maria Antonieta. Trocas culturais na América Latina. Belo Horizonte: Editora da UFMG. p. 165-177.
LEAL, Fábio Antônio Dias (2022). Fronteiras da alteridade: os animots de Milton Hatoum em Relato de um certo Oriente. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 65, p. 1-10. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2316-40186508. Acesso em: 19 maio 2023.
TONUS, José Leonardo (2011). O efeito-exótico em Milton Hatoum. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 26, p. 137-148. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9083. Acesso em: 19 maio 2023.
Iconografia