DORNELLAS, Deborah. Por cima do mar. São Paulo: Patuá, 2018.
Allysson Augusto Silva Casais
Ilustração: Malu Montenegro
No poema “Vozes-mulheres”, de Conceição Evaristo, o eu-lírico traça a linhagem de mulheres de sua família. Iniciando com sua bisavó escravizada e terminando com sua filha, o eu-lírico anuncia como a voz desta última seria capaz de ecoar os lamentos silenciados das gerações passadas. Na fala da mais nova está “as vocês mudas caladas/ engasgadas nas gargantas” e “o eco da vida-liberdade”, resultado das lutas de mulheres ao longo de várias gerações.
O sentimento de filiação expressado pelo eu-lírico de Evaristo é similar à relação que a narradora de Por cima do mar, de Deborah Dornellas (Rio de Janeiro, RJ, 1959), tem com seus antepassados. Publicada em 2018 e vencedora do prêmio Casa de Las Américas como melhor romance brasileiro no ano seguinte, a obra é a estreia de Dornellas na ficção. Anteriormente, a autora havia publicado Triz, uma coleção de poemas, e participado das publicações do Coletivo Literário Martelinho de Ouro.
Por cima do mar narra a história de Lígia Vitalina. Nascida em Brasília, a jovem é filha de mãe mineira, que trabalha como empregada doméstica, e de pai cearense tornado candango, nome que designa os operários que trabalharam na construção da capital federal, quase sempre oriundos da região Nordeste do Brasil. Negra e pobre, a família é atravessada pela exclusão social. A capital que o pai ajudou a construir expulsou a família para a periferia, sustentando o conhecido projeto de marginalização de negros e pobres nas cidades brasileiras. Perante essa constante hostilidade, Lígia é levada a explorar sua ligação com seus antepassados, sequestrados de África para serem escravizados no Brasil.
A primeira questão que chama a atenção em Por cima do mar são os espaços explorados pela narrativa. Na produção literária brasileira contemporânea, a cidade tem destaque especial. É comum dizer que os autores no país voltaram seus olhares para a experiência urbana a partir dos anos 1970. Destacam-se, assim, obras situadas em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, entre outras grandes metrópoles. A paisagem de Brasília, todavia, tem sido pouco explorada por ficcionistas. Nas mãos de Dornellas, a capital brasileira é plasmada como um local hierarquizado, em que certos espaços são negados a determinadas pessoas devido às condições de classe ou por conta da cor. Nesse sentido, a figuração da Universidade de Brasília (UnB) tem papel de destaque no romance como representante da exclusão sofrida por parte da população negra e pobre.
Aluna do curso de História que é oferecido pela UnB, Lígia sente-se estrangeira na universidade. Já na fila do ônibus para o campus, a personagem nota como as pessoas são “quase todas brancas, ou quase brancas, olham para mim, mas tenho certeza de que não me veem”. No campus, ela refugia-se em cantos discretos, usando a invisibilidade como ferramenta de sobrevivência em um espaço hostil. Historicamente elitizada, foi só na última década, com a Lei de Cotas, que o perfil do corpo discente das universidades públicas brasileiras começou a mudar. A maior inserção de pessoas pobres e racializadas em um espaço elitizado não ocorreu sem a reação violenta da elite brasileira. Apesar de o enredo do romance não coincidir com o período histórico em que as cotas foram implantadas na UnB, Dornellas não deixa de explorar o rancor da elite enfrentado por estudantes negros e pobres nas universidades públicas.
No romance, isso é figurado no embate entre Lígia e Virgínia. Marta, tia de Lígia, trabalha como empregada na casa de Virgínia e uma amizade forma-se entre as duas meninas. Contudo, questões ligadas à diferença de classe marcam a relação, mesmo que de maneira velada. A principal delas é o papel exercido por Marta na vida de Virgínia. Com tons maternos, o vínculo entre Marta e Virgínia gera um ciúme intenso em Lígia. As cenas com as três personagens ecoam a problemática de como empregadas no Brasil são afastadas de suas famílias para exercer um papel afetivo na vida dos filhos de seus patrões, assumindo uma responsabilidade que não lhes cabe.
Após o fim da amizade, o reencontro entre Lígia e Virgínia só ocorre anos depois em uma festa universitária. É na cena de um café da manhã entre as duas e Laura, mãe de Virgínia, que Dornellas toca no conflito representado pela UnB. “A pergunta de que mais me recordo é aquela clássica”, Ligia narra, “sobre como eu tinha conseguido entrar na UnB”. O incômodo de Laura com a posição da protagonista em relação à de Virgínia, que não consegue ingressar no ensino superior, fica nítido na interação das duas mulheres. Assim, o rancor da elite aparece encapsulado na personagem.
Além da UnB, a hierarquização de Brasília também está presente em outros pontos do romance. Há a relação entre o pai de Lígia e a cidade, por exemplo. Apesar de ter ajudado a construir a capital com suas próprias mãos, o pai da protagonista não tem liberdade para frequentar todos os seus espaços. Como coloca a narradora, para a família dos candangos a vida “nunca foi fácil na cidade que eles construíram”. Há também acontecimentos históricos na narrativa, como a invasão do baile black do Quarentão, ocorrida em 1986 em Ceilândia, cidade-satélite de Brasília. Conhecido pela ordem dos policiais de “branco sai, preto fica”, o evento é exemplo contundente da violência perpetuada há séculos contra a população negra no Brasil. Ainda hoje, são recorrentes as mortes de jovens negros pelas mãos da polícia no país.
Uma das cenas de maior impacto na narrativa, contudo, não ocorre em Brasília, mas no Rio de Janeiro. Já adulta e professora da UnB, Lígia vai à capital fluminense para um congresso. É lá que a personagem conhece Zé Augusto, angolano com quem se casará. O relacionamento dos dois se fortalece em uma visita ao Memorial dos Pretos Novos. Encarando o mural de nomes de africanos sequestrados e escravizados, Lígia percebe que “aqueles mortos mal sepultados, os meus mortos, estavam mais vivos do que nunca” e emociona-se. Como resultado, a personagem não só se filia com o legado de sua família, mas também com o continente africano. Igualmente emocionado, Zé Augusto indica como há um parentesco entre Lígia e ele, um “elo dolorido, profundo e antigo que liga o que hoje se chama Angola ao que então já se chamava Brasil”. Dos africanos sequestrados, escravizados, mortos e jogados no Cemitério dos Pretos Novos, aos jovens assassinados pela polícia no Quarentão, ao trabalho braçal dos pais e tia, há gerações de sofrimento e luta na história de Lígia.
A segunda metade do romance concentra-se mais no espaço angolano. Dornellas, contudo, não apresenta uma África estereotipada, evitando uma essencialização do continente, uma forma de representação comum nas narrativas americanas. Lígia traça paralelos diretos entre a paisagem angolana e a brasileira. “Muitas vezes, caminhando pelas ruas de Benguela”, ela narra, “embora os ambientes sejam bem diferentes, tenho essa sensação de familiaridade”. Assim como “os lugares e as gentes de Angola me lembram muito algumas cidadezinhas e o povo negro de Minas Gerais”. Através da família de Zé Augusto, Dornellas escreve sobre a história de Angola. É a sogra de Lígia, dona Lali, que conta as marcas deixadas pela guerra na família. “Somos uma família de sobreviventes, Lígia. Cá nesta terra, de uma maneira ou doutra, somos todos”.
Por cima do mar é um romance em que as mulheres ganham destaque, sobretudo a luta das mulheres negras. Se, na primeira parte da narrativa, evidencia-se a força da mãe e da tia de Lígia, na segunda metade dona Lali afirma que as mulheres são as responsáveis pela sobrevivência das famílias angolanas. Enquanto Zé Augusto estava em Portugal e seu pai na guerra, eram suas irmãs e mãe que lutavam contra o caos. “Na família de Zé Augusto”, narra Lígia, “foi dona Lali quem sempre decidiu o que, quando e como fazer. Em meio ao caos que parecia interminável, ela garantiu o sustento e segurou as rédeas da família”.
Em um romance sobre história familiar, o futuro também é importante. Além de explorar a ligação com seus antepassados, Lígia olha para as gerações futuras ao experienciar a maternidade, que aparece tanto através da adoção quanto da gravidez. A diferença entre as duas é apresentada poeticamente por Lígia: no primeiro caso, “uma flor apareceu no meu jardim numa manhã de sol”, enquanto “a outra, o homem plantou em mim, e a ela dou abrigo”. É com a flor do jardim, Flora, que a narrativa se afasta do tom realista. Juntas, mãe e filha sobrevoam o mar, ligando Angola e Brasil. A travessia do Atlântico, portanto, é ressignificada. Do rompimento doloroso, o deslocamento entre os dois países passa a ser entendido como um elo. Uma união de diferentes espaços e tempos que, apesar de suas dores, não param de visar o horizonte de um futuro melhor.
Para saber mais
CHIARELLI, Stefania (2022). Do navio-túmulo ao nome-escudo. In: CHIARELLI, Stefania. Partilhar a língua: leituras do contemporâneo. Rio de Janeiro: 7Letras.
ESPALLARGAS, Teresa (2021). Consciência atlântica: repensando identidades diaspóricas femininas nas contranarrativas de Um defeito de cor e Por cima do mar. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade da Georgia (EUA), Athens.
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