EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza, 2003.
Aline Alves Arruda
Ilustração: Thais Reis
“A crença era o único bem que ela havia trazido para enfrentar uma viagem que durou três dias e três noites”. Essa frase é dita pelo narrador de Ponciá Vicêncio, romance de Conceição Evaristo (Belo Horizonte, MG, 1946), quando a protagonista que dá nome ao livro faz a primeira viagem de sua vida, saindo de sua terra natal, em um interior qualquer do Brasil, em direção a uma cidade grande, provavelmente uma capital, em busca de condições melhores de sobrevivência.
Ponciá Vicêncio é o primeiro romance de Conceição Evaristo e vem sendo tema de artigos e discussões no meio acadêmico desde sua publicação em 2003. Adotado em provas de vestibular desde 2008, o livro foi traduzido para o inglês, francês e italiano (este ainda inédito). A obra narra problemas do cotidiano das mulheres afrodescendentes sob um ponto de vista claramente feminino e negro.
Além de Ponciá Vicêncio, a autora publicou também, em 2006, o romance Becos da memória, o qual narra a história de personagens que vivem em uma favela que está para ser desfeita; em 2008, Poemas de recordação e outros movimentos; em 2011, o livro de contos Insubmissas lágrimas de mulheres (reeditado em 2016); em 2014, o premiado Olhos d’água, também de contos; em 2016, Histórias de leves enganos e parecenças (reeditado em 2017), livro de contos e novelas; e, em 2018, o mais recente Canção para ninar menino grande (reeditado em 2022).
O enredo de Ponciá Vicêncio traça a trajetória de uma mulher negra, a protagonista que dá nome ao livro, desde sua infância até a idade adulta. Ponciá mora com a mãe, Maria Vicêncio, na Vila Vicêncio, que concentra, no interior do Brasil, uma população de descendentes de escravizados. Seu pai e seu irmão trabalham na lavoura para a família Vicêncio, que é dona das terras onde todos moram e trabalham, além de serem os donos do sobrenome dos habitantes da vila, como a família de Ponciá. O romance tem uma história fragmentada em que, através de flashbacks, se narra a infância da menina na vila junto da mãe, com quem faz artesanato com barro. O narrador em terceira pessoa nos leva ao íntimo dos personagens e à introspecção por meio do uso do discurso indireto livre ao longo de toda a narrativa. É dessa forma, misturando as vozes de narrador e personagens, que conhecemos a alegria da menina Ponciá, que, seguindo uma crendice popular brasileira, brincava de passar debaixo do arco-íris com medo de mudar de sexo e se mostrava diferente desde criança, principalmente por sua semelhança física com o avô Vicêncio.
O romance de Evaristo pode ser lido como um livro despretensioso do pós-abolição no que diz respeito à cultura afro-brasileira. No entanto, diferentemente de outro romance publicado anos depois, o best seller Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, o romance da escritora mineira, ancorado na cultura banto – dos povos africanos trazidos das partes central e meridional da África para estados brasileiros como Minas Gerais –, permite uma leitura afrocentrada nas entrelinhas de sua narrativa. Na passagem do arco-íris, por exemplo, na primeira página do livro, o fenômeno é denominado pelo narrador como “angorô” – palavra africana de origem banto que representa um inkice, uma divindade correspondente também ao orixá Oxumaré na nação ketu e no candomblé.
Essas e outras alusões afro-brasileiras permeiam a narrativa de Ponciá e sua família numa escrita muito poética e lírica, marcando o início do que hoje já se conhece como o estilo de Conceição Evaristo, o seu “brutalismo poético”, conforme nomeado pelo pesquisador Eduardo Duarte. Assim, a história da personagem Ponciá é difícil, como a da população feminina e negra que ela representa neste país. A memória coletiva evocada pela autora mineira em seu romance de estreia através de sua personagem principal confirma a descendência escrava na vida difícil que a moça leva, nos sonhos apagados pela discriminação e pela marginalização que tanto ela quanto os seus familiares sofrem. A personagem passa, então, pelo que Orlando Patterson (1982) denomina “morte social”, ou seja, a invisibilidade diante da sociedade. Sua condição social e cultural continua, portanto, sendo regida pelo passado africano. Sua trajetória do espaço rural para o urbano representa sua condição diaspórica. Dessa forma, mesmo que a viagem feita pela menina em sua procura pessoal não seja a viagem transnacional citada pelos estudiosos da diáspora, aquela se constitui numa metáfora desta, uma espécie de “diáspora interna”, ou seja, a viagem de Ponciá e de tantos brasileiros dentro do seu próprio país em busca de uma vida melhor. A passagem em que a menina faz a viagem de trem para a cidade, descrita na frase inicial desta resenha, confirma essa associação. Além dessa jornada, outras serão feitas no romance, confirmando a saga da família, a descendência herdada para simbolizar os deslocamentos feitos desde as navegações intercontinentais a que foram forçados.
O romance de Evaristo, situado no século XX, traz o emblema do Atlântico negro como o trouxe também a maranhense Maria Firmina dos Reis no século XIX. Úrsula, o primeiro romance publicado por uma mulher no Brasil, em 1859, foi totalmente desconsiderado pela grande maioria dos historiadores literários por muitos anos; nele, há um capítulo inteiro narrado na primeira pessoa em que a personagem africana Suzana descreve as agruras vividas no navio negreiro rumo ao Brasil. Carolina Maria de Jesus, inspiração declarada de Conceição, transpôs a voz dos excluídos para a literatura em seu Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960), expondo ao leitor o pensamento, a ação e a consciência afrodescendente. Carolina, assim como Conceição, traz em sua biografia a história da diáspora. As escritoras mineiras saíram de seus lugares de origem para cidades maiores, repetindo a história de Ponciá e de tantos outros afrodescendentes.
Em sua dissertação de mestrado, Conceição Evaristo afirma que “a literatura negra é um lugar de memória”. Essa literatura, que traz para o leitor as marcas desse passado não tão distante, precisa dessa memória para reafirmar sua identidade e sua cultura. A memória diaspórica, coletiva ou individual, é a marca do escritor afro-brasileiro, sua motivação e maneira de resgatar o passado, de livrá-lo do esquecimento em que a sociedade brasileira teima em permanecer.
Para saber mais
ARRUDA, Aline Alves (2007). Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo: um Bildungsroman feminino e negro. Dissertação (Mestrado em Teoria da Literatura) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
DIOGO, Rosália Estelita Gregório (2013). Paulina Chiziane e Conceição Evaristo: escritas de resistência. Tese (Doutorado em Literaturas de Língua Portuguesa) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte.
MARINGOLO, Cátia Cristina Bocaiúva (2014). Ponciá Vicêncio e Becos da memória, de Conceição Evaristo: construindo histórias por meio de retalhos de memória. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara.
PATTERSON, Orlando (1982). Slavery and social death: a comparative study. Cambridge: Harvard University Press.
SCHNEIDER, Liane (2012). A escrevivência de Conceição Evaristo em Ponciá Vicêncio: encontros e desencontros culturais entre as versões do romance em português e em inglês. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa.
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