MOREIRA FILHO, Juarez. Oco do Mundo. Goiânia: Unigraf, 1982.
Edmon Neto
Ilustração: Dona Dora
“Vá conhecer o Oco do Mundo, antes que ele se acabe” é um dos muitos ditos populares proferidos pelos moradores do pequeno arraial que dá nome ao romance de Juarez Moreira Filho (Ribeiro Gonçalves, PI, 1953). Tendo a sua primeira edição publicada em 1982, Oco do Mundo deixa claro, já no primeiro capítulo, que é proposital a similaridade fonológica entre o título da obra e a expressão grotesca “cu do mundo”. Isso porque o abandono regional do antigo norte goiano, que irá se minimizar apenas com a construção da rodovia Belém-Brasília na década de 1960, é a tônica dessa narrativa de formação do último estado brasileiro a emancipar-se política e administrativamente no século XX. A criação do Tocantins em 1989 é consequência de uma série de movimentos autonomistas que datam do século XIX e ganham força popular nas décadas posteriores.
No romance de Moreira Filho, assim como em outras histórias do autor, cria-se uma representação de um espaço historicamente tomado pelo garimpo de cristais de rocha, cujas consequências implicitamente incidirão sobre os moradores do vilarejo nas formas mais brutais de violência. Oco do Mundo, como apontam algumas leituras da escassa fortuna crítica sobre o autor, alude à cidade de Dueré, no sul do Tocantins, onde Juarez morou por alguns anos junto à família. Porém, mesmo que as possíveis correspondências entre vida e obra do autor ou entre história e tempo ficcional possam ser apontadas como características dessa narrativa, sobressaem recursos técnicos e soluções estilísticas conduzidos pela voz narrativa.
Oco do Mundo é dividido em onze capítulos curtos, em sua maioria de caráter descritivo, sendo que as ações são desencadeadas por intermédio de uma voz narrativa que interpreta os fatos testemunhados, de modo que predomina o discurso indireto em todo o texto. O narrador apresenta um posicionamento crítico sobre o desenvolvimento da cidade, um “lugar condenado pelo progresso”, onde as ruas formadas por choças de pau a pique não raro desapareciam, assim como as pessoas viviam com medo dos perigos da noite e dos cães e gatos que não eram sequer estimados. Lugar de poucos atrativos, Oco do Mundo divertia-se com as corridas de jegue embaladas por peões, patrões e eventualmente por violeiros e palhaços, assim como as peladas disputadas com bola de leite de mangaba. Também se acreditava que cangaceiros e jagunços tinham pacto com o demônio e que o mau comportamento das pessoas era justificado por um duvidoso diagnóstico psiquiátrico. Por isso, numa postura muito menos saudosista do que irônica por parte do narrador, em mais de um momento ele profere: “mas aquilo é que era vida”.
Ainda que o tema da narrativa se volte o tempo inteiro para a presença fantasmática da pacata cidade, os conflitos principais giram em torno da figura de Nego Pigueti e outras personagens secundárias, como o cego violeiro Frazão. Jovem de caráter errático e inconsequente, Pigueti tem a sua trajetória delimitada em todos os capítulos, sendo decisiva a sua participação nos assuntos do povoado. Isso porque, na definição do narrador, ele era “treteiro” e sempre conseguia um jeito de tirar vantagem das coisas, personalidade que às vezes irá custar a boa relação com os outros no povoado. A complexidade do protagonista vai sendo, aos poucos, descortinada ao longo das páginas: ele é sensível aos cantadores populares e tem talento para desenvolver os próprios versos, assim como é destemido para atiçar a ira do Vigário Mariano, autoridade religiosa supostamente corrupta. Embora Nego Pigueti tenha sido uma das poucas pessoas a ter a oportunidade de estudar fora, na cidade de Porto Nacional, acaba sucumbindo, ao menos momentaneamente, ao destino no Oco do Mundo.
E se, de modo geral, os homens se resignavam à vida sertaneja, nada se compara à sina das mulheres, para quem “coisa boa (…) era conhecer homens e dizer, pelas ruas, que, no Oco do Mundo, grande parte das meninas não valia mais [que] uma masca de fumo”. Sejam as “antipuritanas” da escola particular do mestre Augusto ou as piranhas da Rua do Sabugo; sejam as mulheres do Vai-quem-quer, parecia que restava a todas ingressarem “na faculdade da sem-vergonheza e se formarem prostitutas”. O Vai-quem-quer era um prostíbulo localizado em lugar ermo (“cabaré de corrutela”), cujas estradas de acesso eram frequentemente palco de toda a sorte de crimes e chacinas praticados contra forasteiros e desavisados. O lugar era animado e servido de poucas mulheres que se vendiam aos trabalhadores do vilarejo, inclusive a Nego Pigueti, o mais assíduo frequentador do bordel. Aqui, embora Pigueti seja retratado como um adolescente de 14 anos com os hormônios à flor da pele, vale destacar a sua postura violenta, como quando ataca a personagem da Velha Corriqueira, conhecida pelos seus fuxicos mordazes. De todo modo, ou se reservam às mulheres os serviços da carne ou se lhes restam as tarefas mais comezinhas do lar.
Nem mesmo Dona Fia, mãe de Pigueti, e cujos atributos domésticos em nada diferem dos das outras mulheres, é mais bem desenvolvida na narrativa, a não ser pelo tom apaziguador com relação ao caráter do filho. O pai, Seu Ferreiro, antigo tocador de fole vindo do Maranhão, envergonha-se das atitudes do menino e orgulha-se do destino das outras duas filhas, que se casaram e voltaram para o antigo estado. Entregue à solidão e à melancolia do Oco do Mundo, Seu Ferreiro “sentia que não era mais ninguém! O filho ia, aos poucos, matando-o”. Desse modo, ao ampliar o perfil de seu protagonista, o romance de Juarez Moreira Filho encaminha para o desfecho, momento em que as ações passam a ser mais dinâmicas. Apresenta-se, nos dois últimos capítulos, a violência da polícia da cidade, que agia de forma célere com os pobres e indiferente às ações dos mais ricos, como o coronel Silveira da tão mencionada fazenda Rancho Alegre. Nego Pigueti e seu amigo cego Frazão serão presos, de modo temerário, pelo soldado Boca Preta, antes do processo derradeiro de deslocamento para o sudeste do país após a fuga de Pigueti.
Se os capítulos de Oco do Mundo em geral priorizam as descrições, é no último capítulo que o autor constrói uma espécie de recolhimento das passagens anteriores por intermédio da memória de Nego Pigueti. Tal estratégia retoma a atmosfera desse sertão desconhecido e apresentado por Moreira Filho nessa obra que contribui para o debate sobre literatura brasileira regional para além do cânone filiado à segunda geração modernista, além, naturalmente, da própria formação da literatura do estado do Tocantins. Vale lembrar que o autor lança mão de uma série de ditos populares, provérbios e vocábulos típicos da região tocantinense, tendo sido criado um glossário que aparece ao final da primeira edição. Também é interessante destacar as referências do cancioneiro popular que aparecem explicitamente na narrativa, como o cordelista e cantador cearense João Siqueira de Amorim e o poeta paraense Raimundo de Araújo Chagas, de pseudônimo R. Petit. Uma vez que “o mistério estava ainda pra ser desvendado naquele mundão de meu Deus”, como afirma o narrador sobre Oco do Mundo, com essa obra Juarez Moreira Filho ajuda, ao menos em parte, a desanuviar o que sabemos sobre outros Brasis profundos.
Para saber mais
MOTTER, Ana Elisete (2013). Representações da identidade do Tocantins no discurso literário de Juarez Moreira Filho. In: XXVII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – CONHECIMENTO HISTÓRICO E DIÁLOGO SOCIAL, 27., 2013, Natal-RN. Anais […]. Natal: Anpuh.
RODRIGUES, Brendon Husley Rimualdo (2021). As representações literárias do sertão garimpeiro e sua geograficidade no antigo norte goiano (1940-1980) nas obras: Oco do mundo, Tipos de rua e Tipos populares, de Juarez Moreira Filho. Dissertação (Mestrado em Estudos de Cultura e Território) – Universidade Federal do Tocantins, Araguaína, 2021.
RODRIGUES, Jean Carlos; RODRIGUES, Brendon Husley Rimualdo (2021). Espaço e literatura: a problemática da identidade regional tocantinense na literatura de Juarez Moreira Filho. Fronteiras: Revista de História, v. 23, n. 41, p. 164-177.
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