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Onde andará Dulce Veiga?

ABREU, Caio Fernando. Onde andará Dulce Veiga? Um romance B. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Amanda Bruno de Mello

Ilustração: Bernard Martoni

Caio Fernando Abreu (Santiago do Boqueirão, RS, 1948 – Porto Alegre, RS, 1996) publicou Onde andará Dulce Veiga? em São Paulo, em 1990, e o definiu como um romance policial histérico. O protagonista, que narra o livro em primeira pessoa, é um jornalista prestes a completar 40 anos, que vive em condições bastante modestas e que acabou de conseguir um trabalho após um longo período de desemprego. Em sua primeira tarefa no jornal, entrevista a vocalista de uma banda de rock e descobre que ela é filha de Dulce Veiga, uma cantora que havia desaparecido nos anos 1960, no dia da estreia de seu primeiro show importante, que a alçaria, muito provavelmente, ao estrelato. O protagonista escreve, então, a crônica “Onde andará Dulce Veiga?”, na qual relembra o talento da diva e questiona seu paradeiro. Os leitores reagem entusiasticamente, e o dono do jornal o incumbe da missão de encontrá-la. É essa investigação o principal elemento policial da narrativa. Enquanto a busca avança, vão sendo desveladas – aos poucos e guardando sempre um ar de mistério – as complexas relações, no passado e no presente, entre os personagens, além da angústia existencial que acomete quase todos eles.  

O elemento histérico do romance talvez esteja representado justamente na instabilidade emocional ou nos excessos dos personagens, cuja origem não é definida linearmente pela trama, mas aparece conectada a um passado de dores, de abusos, de traumas reprimidos. A angústia existencial, presente em quase toda a obra de Abreu, atravessa não apenas o protagonista – que passou por um período de sérias dificuldades econômicas, é atormentado pelas lembranças de uma paixão e questiona a própria sexualidade –, como também outras personagens do livro, que procuram, nas drogas, na música ou na paixão, uma forma de escape. Em um primeiro momento, os traumas parecem individuais, mas, aos poucos, vão se revelando, também, os traumas da ditadura civil-militar, período no qual se deu o desaparecimento de Dulce Veiga e cujas consequências para o tempo da narrativa vão se mostrando cada vez mais significativas. Embora não seja o tema central do livro, o regime militar aparece como um fantasma que assombra o cotidiano do protagonista e de seus contemporâneos. 

Caio foi chamado pela crítica contemporânea de “escritor baixo-astral”, mas, apesar disso, o romance não parece condenado, do começo ao fim, ao baixo-astral. Há a construção de relações empáticas, de cuidado e de afeto, entre os personagens. Além disso, há também uma presença constante de religiões e crenças esotéricas na narrativa: orixás, jogos de búzios e tarô, comunidades alternativas e astrologia estão presentes seja como oráculos pontuais, seja como caminhos de salvação. Além de dar conta da diversidade e do sincretismo religioso no Brasil, a obra não condena definitivamente os personagens a uma existência miserável, deixando brechas para que imaginem e busquem algo diferente da angústia e do desespero que marcam a vida urbana do Brasil recém-democratizado. O próprio protagonista, cujo nome nunca é revelado, empreende uma busca pela própria identidade que parece, ao fim de uma jornada permeada por encontros com o místico, bem-sucedida. 

O interesse pelo esoterismo, pelas filosofias orientais e pelas formas alternativas de vida está presente, aliás, na vida pessoal de Caio Fernando Abreu, que viveu o movimento contracultural e era um profundo conhecedor de astrologia. Esta última aparece não apenas como temática mencionada por personagens de vários de seus contos, mas também como lógica estrutural por trás de algumas de suas obras, como é o caso, por exemplo, de Triângulo das águas, livro ganhador do Jabuti de 1984, construído a partir dos arquétipos dos três signos do elemento água.  

Abreu também venceu o maior prêmio da literatura brasileira em 1988, com Os dragões não conhecem o paraíso, e ganhou outro em 1995, com Ovelhas negras. Quando publicou Onde andará Dulce Veiga?, ele já era, portanto, um escritor maduro, autor de contos, crônicas e peças de teatro, a quem faltava, talvez, um romance maduro (seu outro romance, Limite branco, publicado em 1970, foi escrito quando tinha 19 anos). Ganhador do prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) em 1991, Dulce Veiga preenche essa lacuna retomando temas, procedimentos e uma atmosfera que já tinham sido explorados e aperfeiçoados em seus escritos anteriores. 

Entre os procedimentos, merece destaque a relação estabelecida por Caio Fernando Abreu entre a escrita literária e os recursos do cinema – sua linguagem, suas imagens, seus clichês. Essa relação já está dada no subtítulo do livro, Um romance B – que alude aos filmes B , e no próprio título, uma vez que a personagem que dá nome à obra remete àquela interpretada por Odete Lara em A estrela sobe, filme de 1974, de Bruno Barreto. Não por acaso, em 2008, o romance de Abreu foi adaptado para o cinema por Guilherme de Almeida Prado. 

Em Onde andará Dulce Veiga?, o olhar do narrador, como uma câmera cinematográfica, é dotado de intencionalidade e parece fazer uso de diferentes enquadramentos para provocar no leitor a sensação de mistério, de que há algo nas cenas apresentadas que ele não consegue ver. De forma geral, a impressão é de que o livro começa em um plano fechado, que vai se abrindo cada vez mais, revelando o que sempre esteve ali, só não estava enquadrado. Ao contrário do que parecem indicar os capítulos que compõem o livro – são sete, um para cada dia da semana, começando na segunda-feira e terminando no domingo –, o tempo da narrativa não é totalmente linear, mas interrompido por flashbacks que jogam luz, por um lado, sobre os acontecimentos de vinte anos antes que haviam levado ao desaparecimento de Dulce Veiga, por outro, sobre o romance vivido pelo narrador com Pedro. 

Além das noções de corte e de montagem, percebidas na ordenação da trama, a colagem também influencia a escrita de Caio. A relação com o mundo que o narrador apresenta ao leitor, além de não ser objetiva, uma vez que é atravessada por suas sensações e reflexões, tampouco é uma relação de experiência direta, uma vez que é mediada o tempo todo por referências da literatura, da música, do cinema, enfim, da cultura pop. Dessa forma, o autor retrata a experiência de viver no mundo contemporâneo, no qual a própria subjetividade, através das mídias, é atravessada por uma miríade de experiências, sensibilidades, opiniões e narrativas que, inicialmente alheias, são apropriadas pelos indivíduos. 

O narrador guarda algumas semelhanças com o escritor, que também atuou como jornalista para sobreviver e, na época de escrita do romance, também se aproximava da meia-idade. Caio, nascido em Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul, viveu em diversas cidades (assim como o protagonista de seu romance B), tendo se estabelecido por mais tempo em Porto Alegre, no Rio de Janeiro e em São Paulo. No começo da década de 1970, perseguido pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), exilou-se na Europa, passando por Espanha, Suécia, Países Baixos, Inglaterra e França. Não se vincula à  tradição do regionalismo gaúcho, mas insere suas narrativas no espaço urbano e recolhe seus personagens entre as figuras marginalizadas pelo capitalismo, pela moral e pelos bons costumes: figuras de homossexuais, travestis, adictos, punks e roqueiros, por exemplo, estão em Dulce Veiga, mas também em muitos de seus contos. Nesse romance, São Paulo e a sua diversidade de paisagens e microcosmos constituem quase um personagem em si, e seus habitantes não simbolizam uma identidade nacional brasileira, mas uma diversidade de identidades não estanques, que estão sempre em construção, em processo. O próprio narrador não sabe dizer se é homossexual ou não, o personagem de Jacyr/Jacyra, embora não use esse termo, é gênero fluido, alternando as identidades de homem e mulher. Num país herdeiro da tentativa de imposição de uma moral cisgênero, heterossexual, machista, padronizada e reprimida, Abreu dá destaque principalmente às personagens que fogem a essas características.

Caio trabalhava intensamente em seus escritos, debruçando-se sobre rascunhos e versões diferentes de um mesmo livro, lendo em voz alta e gravando o que lia. A respeito de Onde andará Dulce Veiga?, afirma, em carta a José Márcio Penido, ter passado 13 anos com o livro na cabeça e no coração e um ano segurando-o pelos cabelos para transformar em pouco mais de 200 páginas as mais de 2.000 laudas datilografadas. O resultado é uma escrita poética, cheia de imagens singulares, de enumeração de possibilidades alternativas, com um ritmo cuidado, que parece exato, necessário, como se as frases guardassem uma magia e não pudessem ter outra forma além daquela registrada. 

Hoje, ler Onde andará Dulce Veiga? é acessar esse Brasil recém-democrático, que, mais que o otimismo do fim da ditadura civil-militar, carregava os fantasmas daquele período, nunca resolvidos e debatidos coletivamente; é acessar a geração que, como o escritor, entra na idade madura frustrada com as limitações e, se não for exagero dizer, a falência da contracultura; é sentir o duro golpe da Aids, da adicção e da overdose nas aspirações de liberdade sexual e experimentação. É também, por outro lado, acessar um caleidoscópio de identidades e possibilidades de experiência humana, de relação com a alteridade e com o prazer da fruição artística. 

Para saber mais

LEAL,  Bruno  Souza (2002).  Caio  Fernando  Abreu, a metrópole e a paixão do estrangeiro: contos, identidade e sexualidade em trânsito. São Paulo: Annablume.

LEAL, Bruno Souza (2001). A literatura como cartografia textual: “Onde andará Dulce Veiga?”, de Caio Fernando Abreu. Revista de Literatura Brasileira, Porto Alegre, ano 12, n. 25, p. 39-67.

NASCIMENTO, Cyro Roberto de Melo (2019). Stella Manhattan, de Silviano Santiago, e Onde andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu: dois romances homotextuais brasileiros. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal. Disponível em: https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/27726. Acesso em: 12 mar. 2023. 

PERES ALÓS, Anselmo (2012). Gênero e ambivalência sexual na ficção de Caio Fernando Abreu: um olhar oblíquo sobre Onde andará Dulce VeigaEstudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 40, p. 177-204. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/9847. Acesso em: 12 mar. 2023.

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Como citar:

MELLO, Amanda Bruno de Mello.
Onde andará Dulce Veiga?.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

05 jun. 2024.

Disponível em:

1324.

Acessado em:

19 maio. 2025.