REZENDE, Maria Valéria. Outros cantos. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016.
Carlos Wender Sousa Silva
Ilustração: Pamela Araújo
O romance Outros cantos, da escritora paulista Maria Valéria Rezende (Santos, SP, 1942), foi publicado em 2016, sem novas edições até a presente data. O livro rendeu à autora o Prêmio São Paulo de Literatura como Melhor Livro do Ano de 2016 e o Prêmio Casa de Las Américas 2017, na categoria Literatura Brasileira, além de ter ficado em 3° lugar no Prêmio Jabuti 2017. A autora também ganhou o Prêmio Jabuti em 2015 pelo romance Quarenta dias (2014). Além dessas duas obras, estreou com o livro Vasto mundo (2001), ficou em 2° lugar na categoria literatura infantil do Prêmio Jabuti de 2009 pelo livro No risco do caracol (2008) e em 3º na categoria juvenil em 2013 com Ouro dentro da cabeça (2012). A escritora tem ainda outras produções como os romances O voo da Guará Vermelha (2005) e Carta à rainha louca (2019).
Maria Valéria Rezende começou a trabalhar como educadora popular a partir da década de 1960, inicialmente na periferia de São Paulo e, posteriormente, no Nordeste. Nas décadas de 1970 e 1980, viveu em Pernambuco e na Paraíba – no meio rural e em João Pessoa. Uma das escritoras de destaque da literatura brasileira contemporânea, Rezende é freira missionária e tem uma produção literária marcada pela criatividade e profundidade estilística e narrativa, mas feita também de maneira fluida e leve. Ela tem uma percepção literária e cultural que vai além daquela apresentada pelo eixo cultural hegemônico do país, muito em razão das experiências que adquiriu ao longo da sua atuação social por diversos locais.
Em Outros cantos, percorre-se a história de Maria, que, nos anos 1970, foi para o sertão inspirada pela pedagogia de Paulo Freire. O contexto espaço-temporal de inserção da obra é conhecido por Maria Valéria Rezende, mas não se pode confundir a história da personagem com a da autora. A personagem funciona dentro da dinâmica da narrativa, tem sua própria personalidade, suas nuances, uma perspectiva que lhe é própria, o que foi possível a partir do processo criativo da escritora. No romance, a narradora-personagem Maria, uma educadora popular, segue viagem num ônibus e acompanha o embarque e desembarque de vários passageiros que levam consigo suas histórias, seus sonhos, seus desejos, seus medos e certamente uma porção de esperança e de coragem diante da realidade que precisam enfrentar. Nessa viagem ao sertão, ela testemunha o retorno de alguns que foram tentar a sorte em outro local, vê as marcas do tempo no asfalto, na estrada, nos vastos campos pelos quais o transporte passa. A personagem presencia pessoas, casas que vão ficando pelo caminho com tantas histórias possíveis de serem contadas.
Ela refaz essa viagem quarenta anos depois da primeira vez que visitou a região na década de 1970. Maria faz um retorno a um local que já não é o mesmo, pois a força do tempo o transformou: “Sim, agora o tempo é outro, cheio de novos riscos, é certo, mas talvez bem mais propício à vida”. As marcas do cansaço e do dissabor da vida pesada, violenta e severa tecem tanto a experiência da narradora-personagem quanto daqueles que encontra pelo caminho, nessa e em outras viagens que ela vai relembrando. Ela vê percorrer toda aquela região alguma porção de esperança que se renova, que insiste em permanecer, inerente à própria sobrevivência de tantos ali, agora e no passado. O trabalho, a convivência coletiva, os sorrisos entre um festejo e outro, tudo isso alimenta a esperança de um povo esquecido. Ao retomar a primeira viagem ainda nos anos 1970, pouco a pouco, vai se revelando um mundo cheio de segredos invisíveis, não ditos, muitos deles soterrados, que precisam ser escavados, que se lhes retire os entulhos que se sobrepõem, restos da história e do deslocamento temporal da sociedade. Sob as ruínas, há muitos segredos com potencialidade para serem recuperados, reestruturados. É um trabalho de tecitura a partir de fragmentos que vão se juntando pelo caminho. Outros cantos faz justamente esse trabalho de reaproximação com a história e a humanidade.
Muitos temas estão na narrativa: a exploração do trabalho (as pessoas que pagam com o pouco que têm pela água doce e salobra); na TV de uma rodoviária, a narradora-personagem viu as “silhuetas de homens armados, estrondos e fogos”, num contexto sociopolítico ditatorial de repressão e violência; para trás ela tinha deixado o medo, os estouros dos tiros e o horror; adentrava agora no sertão nordestino e assistia à novena que festeja algum símbolo católico no povoado e a procissão em homenagem à padroeira, os festejos de natal, eventos que reuniam a comunidade com seus trajes de festa, suas crenças e cultos, seus ritmos e cantos, suas histórias. Lá comemoravam datas importantes à comunidade: a novena, o pastoril, a lapinha, o reisado. Esses festejos eram um contraponto à natureza hostil do sertão que os cercava e à violência da ditadura militar que tinha implantado o horror e a barbárie como política de Estado em todo o país. Naquela pequena comunidade do sertão, os festejos eram também uma oportunidade para interromper o trabalho pesado do dia a dia. As histórias, as lembranças do passado, as expectativas, as viagens exitosas ou frustradas pelo país afora atrás de dinheiro e as histórias fantásticas também eram compartilhadas entre o povo nesse período de celebrações, “[…] repetindo histórias muito velhas, recordadas, de mistura com as novas histórias acabadas de chegar, as cantorias, versos e brincadeiras”. Pessoas que ali mesmo, no sertão esquecido, renovavam suas esperanças de aquilo se tornar um lugar melhor para todos um dia.
Nesses encontros, outras histórias daquele povo eram compartilhadas entre si: as parteiras que socorriam mulheres grávidas; a mãe diarista que foi tentar a sorte no Rio de Janeiro e que precisava lidar com a realidade do filho que sofria convulsões e que não se adaptava à realidade escolar da capital, tido como bobo e retardado pelo julgamento de outras pessoas; outra mãe que precisava escolher entre um filho e outro para colocar na escola, enquanto um deles ia carregar balaio na feira. O trabalho extra em dezembro para conseguir as roupas e os presentes de Natal. A expectativa da chuva na passagem de fevereiro para março e o pedido a São José para que banhasse toda a região com muita água. E com as chuvas emergia a vida naquela terra antes morta; era a flor que brotava num mandacaru; as cabeceiras dos rios que aumentavam; ramos antes secos que reverdeciam; nos cactos, brotavam flores. E tudo ficava mais alegre no povoado, anunciando fartura.
Maria relembra, 40 anos mais tarde, tudo que tinha ali testemunhado, enquanto viaja num ônibus: “Deixo divagar a memória enquanto todo o resto, o caubói, o ônibus, a caatinga, a estrada, mergulha na escuridão”. A relação das pessoas com o tempo havia se modificado de lá para cá. Ela também já não carregava as mesmas esperanças daquela primeira viagem, quando “eram maiores e mais curtas do que as de agora”. Maria tinha agora esperanças mais modestas e pacientes. A personagem-narradora fala também da passagem pela Argélia, Paris e México. Todas as experiências que lhe permitiam tecer narrativas. Maria é uma educadora popular, ensinou jovens e adultos a ler e escrever. E foi nesse contexto que aprendeu histórias e passou também a contar as suas. Novas configurações de mundo iam, assim, se compondo entre histórias realistas e fabulosas.
A personagem-narradora experimentou muitas coisas naquele período em que esteve no sertão do Nordeste. Alguns elementos da narrativa direcionam o contexto sócio-histórico e político do período: o rádio de pilhas ligado e a prosa dos tropeiros na bodega; o anúncio pelos funcionários e engenheiros da nova estrada e da barragem; as histórias dos vaqueiros; as dores trazidas pelos que retornavam; os serventes recém-chegados a São Paulo, contratados para trabalhar ainda sem carteira assinada; o homem que, preso injustamente, morre numa enxurrada das ruas sujas e poluídas de São Paulo após ganhar a liberdade condicional. Todas essas histórias que se cruzavam à experiência da narradora-personagem a tornava cada vez mais integrada àquele povo, além de fazê-la esquecer a caixinha de amuletos que carregava consigo, os fantasmas, as saudades e as inquietações nela contida. Maria testemunhava crianças e adultos tomarem gosto e se apropriarem das letras e palavras. Porém, combater a conformidade daquelas pessoas com a exploração e a injustiça não era tarefa fácil. Um dos argumentos fortes do senso comum era o de que toda aquela situação pela qual passavam era vontade de Deus. Mas Maria não desistiu e construiu um projeto de criar uma consciência política e social naquelas pessoas. E mais difícil ainda era colocar em prática esse projeto de educação emancipadora num contexto de repressão, perseguição e violência institucional, quando a manifestação de ideais como os da educadora, colocavam em risco a sua vida e a de tantas outras pessoas que visavam construir outro modelo de sociedade mais inclusivo.
A narradora-personagem tinha ido àquela região esquecida com o objetivo de “fermentar a consciência”, “[…] a organização, a longa luta, verdadeiramente popular, de baixo para cima, alastrando-se pouco a pouco por todo o país e o continente, contra todas as formas de opressão”. O projeto de Maria, por meio da educação, tinha sido o de germinar naquelas pessoas de um pequeno povoado o espírito democrático, fazer a consciência social, política e cultural fermentar em todos, em pleno período ditatorial. Onde estariam os tantos outros personagens da história decididos a também tomar esse caminho de construir um projeto de país democrático, com acesso à educação, à alimentação, à saúde, à cultura? Outros cantos é sobre esses questionamentos em aberto e mal resolvidos. É sobre o que se esqueceu, sobre o que se fingiu esquecer, sobre o que foi silenciado, sobre quem silenciou e quem foi silenciado.
Outros cantos traz uma importante reflexão sobre as implicações do passado no presente e a importância de nos colocarmos atualmente dentro desses espaços de disputa. São dois projetos distintos de experiência humana que disputam entre si o espaço de maior adesão: um humanitário e solidário, outro violento e brutal; um que recupera nossa percepção da coletividade e outro que estabelece uma ordem de prevalência do mais forte sobre o mais fraco. A narradora-personagem lutou e sonhou pelo primeiro projeto, caracterizado por princípios como justiça social e solidariedade.
Para saber mais
DALCASTAGNÈ, Regina; OLIVEIRA, Rejane Pivetta de; THOMAZ, Paulo C. (Orgs.) (2020). Literatura e ditadura. Porto Alegre: Zouk.
FIGUEIREDO, Eurídice (2017). A literatura como arquivo da ditadura brasileira. Rio de Janeiro: 7 Letras.
REZENDE, Maria Valéria (s.d.). Não nos lembramos dos rostos invisíveis. Suplemento Pernambuco. Disponível em: http://www.suplementopernambuco.com.br/edicao-impressa/67-bastidores/1517-n%C3%A3o-lembramos-dos-rostos-invis%C3%Adveis.html. Acesso em: 27 fev. 2023.
SANTINI, Juliana (2018). “Um lugar fora de lugar”: a mulher e o sertão em Maria Valéria Rezende. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 55, p. 267-284.
Iconografia