DeLUCA, Naná. O sexo dos tubarões. São Paulo: Patuá, 2017.
Marcus Rodolfo Bringel de Oliveira
Ilustração: Marlova Aseff
No vórtice de referenciais que conformam e constroem a realidade como a conhecemos, as frestas desse projeto de existência são os caminhos percorridos pelo romance de Naná DeLuca (Santos, SP, 1989), publicado em 2017, que tensiona ao máximo aspectos considerados basilares do cotidiano e da criação literária. Nesse sentido, a linguagem, passando pela composição das personagens, até o inusitado do enredo direcionam o leitor a um mundo inesperado de lirismo para tratar de temas complexos como identidade sexual, gênero e as diversas violências associadas a essas experiências de vida.
A narrativa se inicia com uma declaração de que a história ali contada, apesar de individual, comunica-se com diversas outras, assumindo, portanto, um caráter coletivo que posteriormente se integrará aos eventos da narrativa como um todo. De uma criança apaixonada pela força e pelo mistério do mar, a protagonista do romance vai se transformar num tubarão em meio a toda a sua incompreensão e seu temor, assim como o é a própria experiência vivida. Brevemente identificada como do sexo feminino em apenas um trecho da obra, a criança – nomeação que, por si só, ressalta a não definição de identidade sexual – desbrava os mares a nado, chegando a áreas cada vez mais distantes da areia da praia, onde não se toca mais o chão. Tem por bússola em terra firme apenas o guarda-sol dos pais na praia até que, num dia qualquer, aproxima-se do corpo morto de uma baleia que é cercado por um cardume de tubarões, os quais lhe causam, ao mesmo tempo, medo e encanto ao emitirem uma estranha cantiga enquanto devoram o corpo morto do cetáceo. Já convencida de seu destino diante daquela imensidão de peixes considerados assassinos, começa a afundar e, ao imergir, vê uma espécie de acasalamento entre os animais, que se tocam e se mordem, esboçando mapas do seu toque no corpo do outro, sem qualquer fim reprodutivo. De repente, a personagem é jogada do fundo do mar de volta à praia por um dos tubarões, momento em que se dá uma identificação profunda da protagonista com aqueles seres ao perceber que “um tubarão nadava em seu peito”.
No momento seguinte do texto, ela aprofunda sua relação com o mar ao fazer constantemente oferendas para os tubarões, ainda da praia, até que, diante de uma tempestade, tenta controlar o mar para que os peixes recebam suas ofertas. É, então, atacada por um homem à beira da praia e, ao tentar fugir para o mar, deixa seu corpo de criança para se transformar no tubarão que trazia em seu peito ao mesmo tempo que o homem que a atacou é morto por um tubarão. Esse episódio insere a protagonista numa nova realidade, esta dentro do mar, na qual, transformada em peixe, passa por um processo de reconhecimento e identificação, num misto de destino e espanto, com outros seres iguais a si, outrora crianças que, por um motivo ou outro, perceberam-se tubarões. Nessa nova existência como tubarão, sua jornada é marcada principalmente pelo aprendizado daquele novo mundo ao reconhecer o próprio corpo de tubarão, a solidão de ser tubarão desde sua vida na areia e suas linguagens idiossincráticas, como os sons que fazem ao nadar, além das lágrimas que contam as histórias de cada um deles. Seu mundo passa a ser aquele mar, “líquidos lares”, situação inicialmente confusa, mas que dá lugar à definitiva identificação ao desbravar sua imensidão, perceber-se como parte daquele todo, até finalmente conhecer Bê, outro tubarão que lhe serve como guia em sua jornada e se torna seu parceiro romântico.
Na sua intensa relação com Bê, que lhe apresenta outros tubarões, ele lhe exorta a conhecer e se comunicar com eles e a acompanha durante toda a trajetória narrada pela obra. Pouco a pouco, o protagonista passa a conhecer outras histórias, sempre comunicadas pelas lágrimas. Conhece, então, o conto do Primeiro Tubarão, personagem cujo corpo em agonia foi acolhido pelo mar e deu origem àquela existência vivida por todos, marcada pela sobrevivência e pela resistência. Nesse processo de conhecimento, sua jornada pelos mares e pelas histórias de outros tubarões é chamada de travessia de pertencimento, durante a qual vê o corpo de um tubarão morto ser devorado pelos outros tubarões, num ritual que é, ao mesmo tempo, destruição, transformação e absorção da vida e dos sentimentos daquele outro. Também nesse percurso, conhece a Ilha da Poeira, construída pelo amor entre dois tubarões, cujo ato sexual é descrito como um constante desfazer e refazer contínuo dos seus corpos, até que um deles é capturado, dando fim ao seu relato de paixão, restando como monumento daquele amor a ilha construída, grão a grão, pelo outro amante.
Ao final do romance, em meio às diversas tentativas de Bê e da protagonista de sonharem juntos, conseguem voar, pairando por sobre o oceano, caindo de volta e emergindo nesse movimento onírico, quando Bê morre ao despencar do ar, momento em que o protagonista perde todos seus referenciais devido à perda do amor e da companhia daquele que mais o compreendeu nesse trajeto. Recusa-se, então, a degluti-lo, retomando a recusa, o “não”, como característica principal de sua personalidade desde os tempos em que vivia em terra. Enfim, o corpo de Bê transmuta-se em borboleta, levitando e finalmente sendo recolhido pelo céu. O narrador ressalta o fim dos seus sonhos com essa partida, restando apenas o conhecimento adquirido pela dor e a tentativa de alcançar novamente os sonhos e planar como quando estava junto a Bê.
É principalmente por meio das fissuras das possibilidades de ser, para além do modelo cis-heteronormativo, que o romance de Naná DeLuca se move. A própria autoria do livro é de uma pessoa trans não-binária, isto é, que não se classifica dentro do modelo dicotômico de identidade sexual. Dessa forma, a linguagem é o tour de force dessa produção, cujos efeitos reverberam na escrita, a qual performa um lirismo cujo esforço em focalizar a incapacidade de representar a si próprio e ao outro é o grande trunfo da obra. Com palavras eivadas de potência e plurissignificação, além de uma óbvia recusa em assumir as marcas de gênero da língua portuguesa (como na quase ausência de artigos e adjetivos), a voz narrativa se embate a cada frase com as fronteiras dessa linguagem que é veículo e é opressão para enfim estilhaçar, por meio de uma narrativa onírica e metafórica, a jornada da descoberta do ser diante de um mundo de conformidades normativas que violentam e tentam limitar as subjetividades.
É nesse contexto que o papel do corpo do protagonista, em um momento criança, em outro tubarão, torna-se central na obra, fugindo às expectativas binárias da performance cisgendrada identificadas principalmente com a fase adulta. No ambiente do mar, cuja capacidade de se moldar é um refúgio àqueles que resistem a tal obediência, sua nova identidade lhe permite então ver com outros olhos o outro e a si próprio: o tubarão deixa de ser um predador da natureza, um ser temível e abjeto, para se tornar um igual, compondo um conjunto de seres que o abrigam, protegem e com os quais se identifica, partilhando suas histórias sempre marcadas pela dor – pela lágrima –, antigamente presos à fixidez e à imobilidade da terra e da areia e agora libertos pela capacidade de se moldar à água do mar.
O romance O sexo dos tubarões, em suma, focaliza principalmente a linguagem e a identidade binária do mundo ocidental como elementos de dominação, os quais são tensionados ao seu limite por meio da expressão delirante e do enredo que beira o absurdo. Essas estratégias são maneiras de distender as fronteiras de uma língua que não abarca todas as realidades e, por isso, é incapaz de representar e falar por todos os sujeitos. Editada na segunda década do século XXI, a obra de Naná DeLuca, bem como a sua persona, posiciona-se diante de um novo contexto tanto literário quanto editorial, no qual cada vez mais produções literárias não canônicas, representando sujeitos não hegemônicos, têm tido espaço para serem lidas e discutidas, principalmente devido à sua rejeição às estruturas tradicionais da narrativa e da lírica e rompendo com os valores mais conservadores do campo literário. Assim, o texto amplia-se de modo a comunicar histórias até então inauditas por meio de uma expressão que não é só inconformidade, mas também resistência e implosão diante das fissuras de uma realidade de cujos estilhaços surgem novas subjetividades e perspectivas de existir.
Para saber mais
ALBUQUERQUE, Patrícia Montenegro Matos (2020). Escrita-corpo e as fabulações de gênero em ambientes digitais. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
CHAVES, Leocádia (2019). O sexo dos tubarões, de Naná DeLuca, ou uma escrita que faz delirar. Veredas: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, n. 30, p. 178-190. Disponível em: https://revistaveredas.org/index.php/ver/article/view/476. Acesso em: 28 fev. 2023.
DeLUCA, Naná (2018). Quatro perguntas para a escritora Naná Deluca. Entrevista a Fernando Andrade. Ambrosia. Disponível em: https://ambrosia.com.br/literatura/quatro-perguntas-para-escritora-nana-deluca/. Acesso em: 28 fev. 2023.
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