BRITO, Ronaldo Correia de. Galiléia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
Alyson Gonçalves Carvalho
Ilustração: Thaís Reis
O sertão foi objeto de interesse para os mais diversos fins, ao longo da história da literatura brasileira. Na década de 1930, por exemplo, quando ganhou projeção nacional, o sertão serviu como elemento de contraponto à hegemonia de representação paulista, com narrativas que mostravam as classes sociais em franco declínio, cuja função, em sua maioria, repousava em sua utilização como pano de fundo para embates familiares até ser receptáculo de tradições passadas, reacendidas pelo tom melancólico da memória. Com seus modos próprios de sentir e de pensar, ao longo do século, diversos autores detiveram-se em possibilidades de recriação do sertão, seja submetendo-o a um misticismo de base contemplativa ou incluindo-o em sociabilidades conectadas, agora repaginadas pelo signo da globalização.
A recorrência de signos miméticos em diferentes momentos da história fornece a dimensão da importância do sertão como elemento característico da brasilidade. Em Galiléia, romance de Ronaldo Correia de Brito (Saboeiro, CE, 1951), publicado em 2008, o sertão não está nem cá nem lá, mas numa região limítrofe, sutil, um entrelugar de superação e de reformulação: “O sertão é o Brasil profundo, misterioso, como o oceano que os argonautas temiam navegar”. Na narrativa, os primos Adonias, Davi e Ismael retornam à fazenda do avô Raimundo Caetano, chamada Galiléia, e se deparam com o abandono de um mundo em decadência, diferente daquele ambiente que presenciaram na infância, tempo de brincadeiras e despropósitos infantis.
O narrador do romance é Adonias, médico que estudou no Reino Unido e se estabeleceu em Recife. Ele é pai de dois filhos e, por desejo próprio, volta até a propriedade do avô situada nas imediações do Sertão de Inhamuns, no Ceará, para despedir-se dele, uma vez que o velho já se encontra bastante debilitado. Davi, por sua vez, foi criado em São Paulo, viajou pela Europa e pelos Estados Unidos tocando piano em pubs e realizando trabalhos informais. Já Ismael, o primo ilegítimo, tentou a vida na Noruega, mas não se adaptou e retornou ao Brasil. Recheada de enfrentamentos e de fugas, com conversas pouco amistosas, a viagem até a fazenda não será confortável para nenhum dos três, pois sabem que em Galiléia encontrarão pessoas que lhes trazem algum tipo de sofrimento, e que precisarão enfrentar feridas que ainda permanecem abertas.
Assim, com forte teor poético emaranhado em tradição popular, a obra pode ser dividida em duas partes ou instâncias narrativas: a primeira, a do deslocamento da viagem, com foco na relação dos primos e nas lembranças que eles guardam do mundo em que viveram; a segunda, a da chegada, quando se surpreendem com o atual estado do lugar, e quando confrontam as memórias conservadas com aquilo que encontram nas superfícies empoeiradas dos objetos. Cada capítulo recebe como título o nome de uma personagem específica, geralmente de intertextualidade bíblica (como se o texto sagrado fosse transposto para o sertão, numa reinvenção não apenas temática, mas sobretudo espacial), que terá sua figuração destacada de algum modo naquele trecho. Assim, o autor apresenta as personagens segundo a relação que elas mantêm com o narrador e com os outros dois primos. Essas conexões, nem sempre explícitas, revelam os problemas e os desafios que o parentesco impõe àquelas vivências, o que mostra uma existência sempre problemática do ponto de vista humano e familiar.
A escrita do autor remete, por vezes, ao tom comedido de Graciliano Ramos, com o grau de significação levado ao extremo a partir uma de seleção vocabular reduzida. Ronaldo Correia de Brito parece querer espelhar o texto com a crueza sertaneja característica, sem deixar que tal economia enverede para a obviedade, de caráter panorâmico. As cenas são descritas apenas com o que é estritamente necessário, e revela-se das personagens mais o que elas pensam do que o que elas de fato são. O pensar é, no romance, matéria de escapismo, tentativa fúnebre de reorganizar o passado segundo possibilidades mais cabíveis, conforme a necessidade vigente. Ronaldo Correia de Brito traz para a contemporaneidade todo o arcabouço inventivo já reconhecido do sertão, readequando alguns de seus aspectos numa espécie de duplo intento: reconstruir o conceito para o mundo de hoje; ao mesmo tempo, em retrospecto, coloca o leitor diante de um passado que continua reverberando, a despeito das transformações do espaço e da interioridade das personagens.
Natural da cidade de Saboeiro, no Ceará, Ronaldo Correia de Brito é radicado em Recife, Pernambuco, onde estudou Medicina. Sua primeira coletânea, As noites e os dias, foi publicada em 1987. Em seguida, aparecem Faca, em 2003, O pavão misterioso, de 2004, e Livro dos homens, em 2005. Em 2008, o autor consagrou-se com Galiléia, obra que ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura como o melhor livro do ano. Sua obra continua: Retratos imorais (contos, 2010); Arlequim (teatro/prosa infantil, 1989; 1999) e Arlequim de Carnaval (teatro, 2011); Bandeira de São João e Estive lá fora (teatro e romance, respectivamente; ambos de 2012); Atlântico e O amor das sombras (livros de contos, de 2015); e Dora sem véu (romance, 2018). Recentemente, lançou o livro de crônicas A arte de torrar café (2021). Brito também foi escritor residente em Berkeley, Califórnia, em 2007.
Sem dúvida, muitas de suas experiências sertanejas foram introjetadas nas narrativas, desde pormenores descritivos até a interioridade dos seres viventes, suas errâncias e anseios fundamentais. Considerar que Galiléia apenas revive o sertão seria um erro, uma vez que, além de o fazer, inova no âmbito da própria concepção do elemento na pós-modernidade. Já adultos, os três personagens enxergam a fazenda pela ótica do estrangeiro, de alguém que conhece-desconhece, mas que busca estabelecer certa identificação. Ao resgatar a memória a partir da ótica de Adonias, o romance precisa dar conta das vozes dos três primos, todos eles impactados pelas suas experiências fora do Brasil. Tais sensações reverberam ao longo de toda a ação. Há um contraponto, um “lá” que, embora rememore o atraso da fazenda, também serve de valorização para aquele mundo esquecido, longe dos infortúnios do mundo tido como desenvolvido. Adonias precisa encontrar-se consigo mesmo, reascender seu legado sertanejo, outrora enterrado pela transformação de sua vida. Amarguras, tristezas, fracassos serão as sensações necessárias para que os primos possam recuperar o sentido do passado, elaborando-o segundo a novidade do presente.
A leitura suscita a discussão de diversos temas. A presença e a permanência de resquícios geracionais que corroem ou questionam antigas ordens, o esquecimento ou o remorso relacionados a débitos sentimentais, o choque com uma ideia de modernidade atrelada ao tempo, à convivência contraditória entre passado e novidade. Fantasmagorias de todos os tipos povoam a obra, com personagens que, apesar de mortas, teimam em manifestar suas silhuetas inertes pelas frestas obscuras. Há descobertas de crimes e assassinatos que revelam a natureza humana mais torpe, de justiça “pelas próprias mãos”. Restos e ruínas do que está ainda encoberto, em que mães, avós, tias, sobrinhos, conhecidos e estranhos vão compondo um mosaico de rancores mal resolvidos, mistérios que permanecem ocultos esperando uma saída propícia para o desencantamento dos dias passados. Aos poucos, a atmosfera mítica vai se desfazendo, tornando o sertão mais familiar, próximo das peculiaridades comuns a tantas pessoas, que buscam se reatar com suas próprias raízes, nem que isso custe a rasura de antigas tradições.
Para saber mais
BORGES, Queren Daniela (2022). A região e o mundo no romance Galiléia, de Ronaldo Correia de Brito. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia.
LANDO, Vivien (2008). Em “Galiléia”, autor usa Bíblia para contar história no sertão. Folha de S. Paulo, Ilustrada, 29 nov. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2911200811.htm. Acesso em: 11 fev. 2023.
LIMA, Elaine Aparecida (2018). Conflitos do passado e tensões do presente em Galiléia e Retablo. Dissertação (Mestrado em Literatura Comparada) – Universidade Federal da Integração Latino-Americana, Foz do Iguaçu.
MELO, Mônica dos Santos (2014). A ressignificação do Sertão em Galiléia, de Ronaldo Correia de Brito: problematização da dimensão regional do romance no contexto da contemporaneidade. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife.
RIBEIRO, Elizabeth Francischetto (2011).A paródia bíblica em Galiléia de Ronaldo Correia de Brito. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão.
Iconografia