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Guerra no coração do cerrado

SILVEIRA, Maria José. Guerra no coração do cerrado. Rio de Janeiro: Record, 2006.

Maya Falks

Ilustração: Cláudio Rodrigues

Quem acompanha a trajetória de Maria José Silveira (Jaraguá, Goiás, 1947) não se surpreende com o trabalho narrativo empregado na obra Guerra no coração do cerrado. A autora goiana ganhou notoriedade já em sua primeira obra, A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas, em que utiliza personagens femininas impactantes para contar a própria história do Brasil.

Dona de uma linguagem simples, que respeita a subjetividade de seus personagens, Maria José Silveira é reconhecida pela ampla e profunda pesquisa que realiza para contar suas histórias. Ao situar seus personagens no cerne de fatos históricos, a autora consegue equilibrar habilmente a precisão factual com o processo criativo, dando origem a personagens nascidos de sua própria percepção. É o que acontece com Damiana da Cunha, a protagonista de Guerra no coração do cerrado.

Damiana da Cunha é uma personagem real, uma indígena da etnia Panará – ou como dito pela população branca, Cayapó – tratada como heroína tanto pelo seu povo quanto pelos brancos. Já no prólogo, a autora aponta essa discrepância: “Cada lado de uma guerra tem seus heróis. Estranho é quando os dois lados têm o mesmo herói. Quando isso ocorre, alguma coisa está errada ou fora do lugar”.

Aclamada como uma lenda no território goiano, Damiana foi criada entre os brancos depois da pacificação promovida pelo então governador da capitania Dom Luiz da Cunha Menezes. A narrativa tem início com a chegada de Damiana a Vila Boa. Dom Luiz, frustrado com a escassez de ouro e almejando uma transferência para Minas Gerais, toma como objetivo a pacificação dos Cayapós, uma comunidade indígena temida na região. Após recepcionar o velho cacique Romexi, o governador o convence a chamar o restante de seu povo para se estabelecer na cidade, junto aos brancos.

Na manhã em que a história se inicia com uma belíssima descrição do nascer do sol, chegam à cidade o grande líder Angraíocha e seu povo. Entre sua gente estão seus netos, batizados pelo governador como Damiana e Manoel da Cunha. Dos dois, Damiana é recebida para morar na casa do governador, onde vive uma infância de rejeição e discriminação tanto dos brancos quanto dos negros escravizados, fruto do medo e das lendas que se espalhavam sobre a violência do seu povo.

Damiana recebe de Romexi a missão de ser os olhos e ouvidos de seu povo junto aos brancos, aprendendo sua língua e cultura e tornando-se uma porta-voz dos dois povos. A missão é bem-sucedida e ela de fato se torna essa ponte, conquistando respeito e admiração dos dois lados.

É importante que se destaque que nunca houve de fato uma pacificação; os Panarás aceitaram a trégua com o único objetivo de se reerguer depois de tantas guerras e conseguir armas mais potentes entre os brancos. Nesse começo de jornada, a situação é retratada de maneira quase cômica, com o governador em constante conflito com o vigário. Damiana, por sua vez, foi santificada pelo religioso por reagir à paixão de Cristo com as mesmas expressões sonoras que seu povo reagia diante da dor alheia.

A fascinação de Damiana pelas festas cristãs contribuiu para sua recepção entre os brancos, mas fica evidente para o leitor que não era o cristianismo em si que a encantava. Não se tratava de uma conversão genuína, mas sim das relações que a menina fazia entre as festas cristãs e as celebrações de seu povo. Destaca-se, especialmente, a comparação que ela, já moça, fez entre as escarificações indígenas e o flagelo branco.

Mesmo com notáveis semelhanças entre as expressões culturais, as manifestações indígenas eram consideradas violentas e selvagens. Fica evidente que o desconhecimento da cultura desse povo não era a única razão; havia um ódio profundo subjacente. Mais de uma vez, o livro aborda um debate comum à época: os indígenas são considerados seres humanos? Além disso, quando Damiana já está vivendo um período de exaustão de sua luta pela sobrevivência de seu povo, é confrontada com palavras duras que afirmam, de forma direta, que as terras não pertencem ao seu povo, portanto, não é direito deles reivindicá-las.

Ao longo de toda a sua trajetória de vida, mesmo sendo vista como convertida pelos brancos, Damiana buscou a sobrevivência dos Panarás, empreendendo por conta própria uma expedição para buscar parentes e trazê-los ao aldeamento Maria Primeira, onde viviam até então. A ideia da moça era aumentar a população para fortalecê-la e, eventualmente, poder lutar contra os brancos pela retomada de suas terras, mas sua ação acabou sendo vista pelos brancos como uma oportunidade de mais mão de obra e melhor controle das ações dos indígenas. Isso resultou na submissão dos Panarás a uma situação análoga à escravidão, sem realmente protegê-los da violência, em especial se considerando que diante de qualquer crime cometido na região a culpa sistematicamente recaía sobre eles.

Um caso notável apresentado no livro foi quando um fazendeiro entrou no aldeamento e distribuiu roupas aos indígenas, proibindo os brancos que faziam a guarda do local de pegá-las. Houve uma festa entre eles com roupas coloridas, mesmo que a maioria estivesse em péssimo estado. Era uma armadilha; as roupas estavam contaminadas com varíola, e o resultado foi um verdadeiro massacre. Mas Damiana seguiu acreditando nas promessas dos brancos e realizando expedições em busca de parentes espalhados pelo Planalto Central para repovoar os aldeamentos. Primeiramente, concentrou seus esforços no Maria Primeira e, posteriormente, no Mossâmedes, para onde seu povo foi obrigado a se mudar devido ao esvaziamento dos dois espaços anteriores.

Durante toda a sua vida, Damiana, mesmo sendo tida como uma heroína entre os brancos devido à sua conversão e a facilidade com que levava as pessoas aos aldeamentos e promovia o batismo delas, acreditava sinceramente que lutava em prol de seu povo. Ela via suas ações como cruciais para a diferença entre a vida e a morte de seus compatriotas. Somente quando viu com os próprios olhos o que os brancos impunham a seu povo a cada nova invasão é que a indígena entendeu que nenhuma promessa jamais seria cumprida. Foi nesse momento que ela percebeu que seus ancestrais estavam certos em lutar de todas as formas possíveis para preservar seu espaço e sua cultura. Infelizmente, para os Panarás, como informado pela autora no final do livro, já era tarde demais. A etnia Cayapó foi dada como extinta na metade do século XX.

É impossível realizar essa leitura depois de janeiro de 2023 e não encontrar um paralelo com o que foi descoberto nas terras Yanomami; centenas de indígenas – principalmente crianças – morrendo de fome no coração da floresta. Isso aconteceu pelo estabelecimento do garimpo ilegal e do rompimento de políticas de saúde para essa população. O garimpo contaminou a água e o solo, espantou a caça, explorou o trabalho, abusou dos povos e levou a eles doenças para as quais seus organismos não tinham defesas, gerando um legítimo genocídio em pleno século XXI.

Esse fácil paralelo se deve porque o recorte de Maria José Silveira se dá através da história de Damiana, mas outras histórias semelhantes aconteceram por todo o Brasil, com a invasão dos territórios, “pacificação”, imposição cultural e muitas mortes. O próprio irmão de Damiana, Manoel da Cunha, termina sua vida preso; ele estava organizando uma fuga em massa dos indígenas restantes a pedido de Damiana, que decidiu não retornar de sua última expedição. A situação descrita sugere um paradoxo, pois Manoel não planejava um ataque, planejava somente abandonar o espaço destinado ao seu povo, buscando retornar aos antigos territórios. A questão central é: se há a promessa de liberdade, por que o líder de uma partida seria preso como criminoso?

Maria José Silveira expõe o tipo de trabalho ao qual os Panarás foram submetidos, descrevendo os castigos a que eram expostos, o ódio da população branca, os ataques cruéis e assassinos, bem como as próprias relações pessoais, escancaradas na reação da moça branca ao pedido de casamento de Manoel – ela não apenas recusou, mas agiu com escárnio – e no segundo casamento de Damiana com um homem abusivo que tentava se aproveitar da boa fama de sua esposa. Ele tentou inclusive lucrar com seu desaparecimento e simulou sua morte. Além disso, não faltam situações cotidianas e inusitadas na narrativa da autora, que usa, em alguns momentos, de sarcasmo para lidar com a profusão de absurdos presentes na história.

Embora Damiana tenha sido uma pessoa real que desempenhou o papel histórico de porta-voz de seu povo, a autora ressalta que a obra é ficcional, apoiando-se unicamente nos fatos reais para apresentar uma versão fictícia de Damiana. O contexto histórico, no entanto, diverge da realidade apenas porque a realidade retratada na obra é, de fato, ainda mais desafiadora.

Para saber mais

LAPIDUS, Ângela Maria Álvares (2020). Cayapós, caminhantes da história e da ficção em Guerra no coração do Cerrado, de Maria José Silveira. Dissertação (Mestrado em Língua, Literatura e Interculturalidade) – Universidade Estadual de Goiás, Goiás.

JULIO, Suelen Siqueira (2015). Damiana da Cunha: uma índia entre a “sombra da cruz” e os caiapós do sertão (Goiás, c. 1780-1831). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói.

COELHO, Damiana Antonia (2016). Representações de Damiana da Cunha na história e na literatura. Dissertação (Mestrado em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado) – Universidade Estadual de Goiás, Anápolis.

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Como citar:

FALKS, Maya.
Guerra no coração do cerrado.

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brasileira 

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Brasília. 

02 jun. 2024.

Disponível em:

1301.

Acessado em:

19 maio. 2025.