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Eu sou uma lésbica

RIOS, Cassandra. Eu sou uma lésbica. Rio de Janeiro: Record, 1981.

Juliana Borges Oliveira de Morais
Ilustração: Mariângela Albuquerque

A primeira publicação de Eu sou uma lésbica, de autoria de Cassandra Rios (São Paulo, SP, 1932 − São Paulo, SP, 2002), se dá em estilo folhetim, na extinta “revista masculina” (descrição que se lê na capa da revista) Status, entre janeiro e abril de 1980. Nessa publicação, a narrativa é dividida em quatro capítulos, sendo um publicado a cada número da revista no período citado (Status, n. 66-69). Posteriormente, a obra é lançada pela Record, em 1981, com subdivisão em nove capítulos e algumas revisões, mantidas nas publicações subsequentes. A segunda edição, também pela Record, é publicada em 1983. O romance conta com várias edições, sendo a mais recente pela Azougue, de 2006, que faz parte da Coleção Devassa.

Cassandra Rios é o pseudônimo da paulistana Odete Rios. Filha de espanhóis, foi criada no bairro Perdizes e lançou seu primeiro livro, A volúpia do pecado (1948), aos 16 anos. Interessar-se por Cassandra Rios é, primeiramente, defrontar-se com a dificuldade de adquirir suas obras, ainda que, nas décadas de 1960 e 1970, ela tenha vendido cerca de 300 mil exemplares por ano, o que a tornaria, segundo Nilza Pereira (2004), “a maior vendedora de livros do país”. O romance Eu sou uma lésbica, esgotado nas editoras, não é uma obra fácil de ser achada nem mesmo no mercado de livros usados. Pelo mesmo motivo, quando encontrada, costuma não ter um preço tão acessível.

Parece contraditória essa situação, tendo-se em mente tanto os recordes de vendas da autora, ainda em vida, quanto o fato de que Cassandra Rios “foi a primeira escritora a usufruir de muita popularidade. Sempre convidada para programas de TV, comparecia também de smoking às festas, recebida por governadores da época. Foi ao mesmo tempo pop e cult” (Pereira, 2004). Seria esperado, portanto, que houvesse um maior conhecimento de seu nome nos dias atuais, ou ao menos que seu legado estivesse mais presente nas estantes. Nesse sentido, na contracapa do romance na edição da Azougue, há a seguinte provocação: “Se você tiver menos de 40 anos, provavelmente nunca ouviu falar de Cassandra Rios. Mas ela é simplesmente uma das escritoras que mais vendeu livros no Brasil” (2006).  

A rara disponibilidade de obras da autora no mercado, incluindo Eu sou uma lésbica, faz parte de um fenômeno maior de apagamento de Cassandra Rios, que pode ser explicado pela convergência de diversos fatores, como a escolha temática, que, presente no romance resenhado, perpassa suas obras. A autora escreve, desde seu primeiro romance publicado, sobre temas tabus, como relações lésbicas e o prazer feminino, em uma época na qual não se escrevia tão abertamente sobre isso. Considerando-se esse contexto temático, Eu sou uma lésbica é tido como o mais polêmico da autora: o enredo retrata não somente o desejo sexual feminino, mas também a autodescoberta, como lésbica, de uma criança que se encanta com a amiga de sua mãe, a dona Kênia. No romance, Flávia, a protagonista, narra como ocorre esse encantamento em uma cena que ocorre aos sete anos de idade: ela, por baixo de uma mesa, se encanta pelas pernas e pés de dona Kênia. Já adulta, em retrospectiva, Flávia pondera que, mesmo criança, já compreendia que aquele sentimento significava mais que uma mera admiração. Em pouco tempo, no romance, a menina se aproxima de dona Kênia e, em determinado momento, a seduz. É certo que a Flávia menina mesma é, primeiramente, seduzida pelos seus próprios sentidos, pelas sensações que experimenta toda vez que se depara com a bela vizinha. Já dona Kênia, uma mulher casada, acaba por se entregar aos jogos de sedução, apesar do estranhamento que ela sente diante das investidas da criança. Como comentamos, percebe-se que há vários temas tabus presentes na obra, dentre eles o desejo sexual de mulheres e entre mulheres, assim como a autodescoberta de uma criança quanto à sua sexualidade.

Há uma cena icônica no romance, na qual Flávia precisa pernoitar na casa dessa vizinha e, a certa altura, diz a ela que estava com vontade de “brincar de gatinho”.  A brincadeira é experimentada e, nela, Flávia lambe dona Kênia. Há uma troca física entre as duas, de maneira jocosa, nas entrelinhas, mas é preciso notar que, “sendo gatinho”, Flávia se sente livre para expressar seu desejo em relação à vizinha.  O livro, desde a primeira publicação pela Record, passa por pequenas edições de texto e incorpora títulos para os capítulos, diferentemente do que ocorre na revista: nela, o folhetim é separado em seções sem títulos. O primeiro capítulo, no livro, é intitulado: “Vamos brincar de gatinho?”, justamente em alusão a esse episódio.  

Além da questão da autodescoberta na infância, no decorrer do romance, a protagonista também tece observações e provocações a respeito da sociedade na qual vive e de suas constrições e preconceitos. A narradora diz: “Eu sou uma lésbica. Deve a sociedade rejeitar-me?”. O título da obra faz, justamente, menção ao posicionamento aberto da protagonista em relação a si mesma. Já o enredo explora desdobramentos das experiências de Flávia, enquanto lésbica, desde a infância até a fase adulta. Ler Eu sou uma lésbica é deparar-se com uma narrativa que explora tabus ainda atuais, e que provoca reflexões contemporâneas acerca de papéis de gênero e de sexualidade. Além disso, somente o fato de ter em mãos um exemplar físico do romance já é um sinal de algum esforço na procura por ele, pois está esgotado, por uma série de razões, o que se pode conjecturar como sendo um “apagamento”.

Quanto ao apagamento da escritora, além da vertente temática com a qual ela escolhe trabalhar, em um país marcado pelo conservadorismo, outro fator importante a ser considerado é a perseguição que sofre pelo regime militar no Brasil (1964-1985). Kyara Vieira afirma que “ao escrever livros de fácil leitura, numa linguagem popular e folhetinesca, que não correspondia aos critérios estéticos do cânone literário dessa época, a autora conseguia atrair milhares de leitores num país de analfabetos, sem fazer tanta propaganda, e começava a chamar atenção da imprensa, dos críticos literários, da censura e da justiça” (2014). O estilo de Cassandra, considerado por demais simples e cru, tratando dos temas de que tratava, a coloca em uma posição de vulnerabilidade perante uma sociedade julgadora e repressora.

Segundo Pedro Amaral, Cassandra Rios escreve em um Brasil conservador e hipócrita a quase tudo relacionado a sexo, de forma que os livros de Cassandra eram vistos como afrontosos, com sua linguagem simples e capas quase sempre retratando uma mulher seminua (Amaral, 2006). A escritora é considerada pornográfica, sendo que 36 de seus 68 livros publicados foram censurados pelo regime militar (Pereira, 2004). Cassandra Rios recebeu a alcunha de “escritora maldita”, tendo que lidar com esse estigma ao longo de sua carreira. Sabe-se que a temática sexual foi o principal alvo da censura e, portanto, publicações que a exploravam eram denominadas pornográficas e, assim, vetadas (Londero, 2016). A revolução sexual, que borbulhava, foi compreendida, na época, como uma grande ameaça à sociedade e à família.

Por fim, um outro motivo que converge para o “memoricídio” de Cassandra Rios, utilizando, aqui, o termo cunhado por Constância Lima Duarte (2022) para se referir ao apagamento de escritoras brasileiras, esquecidas ao longo do tempo, seria o posicionamento da intelectualidade na época. Ela desgostava da linguagem utilizada por Cassandra Rios em suas obras: clara, sem floreios e imagética, o que explica, por exemplo, a quantidade de ilustrações realizadas por Darcy Penteado para os capítulos de Eu sou uma lésbica nos quatro números da revista Status.

Cassandra Rios era, portanto, menosprezada pelos intelectuais (em particular pelos críticos literários) tanto pela linguagem quanto pelo fato de ser best-seller, o que lhe gerou a acusação de ser cúmplice de uma indústria editorial considerada vazia. Contudo, Cassandra publicou majoritariamente em editoras à margem do processo de modernização do mercado editorial da época. É somente com o fim do Decreto-Lei nº 1.077, em 1980, que ela viria a ser publicada por grandes editoras, como a Record e a Global (Londero, 2016). O fim do decreto-lei em questão contextualiza um pouco a primeira publicação de Eu sou uma lésbica, em estilo folhetim, que ocorre no início do mesmo ano. Só em 1981, sem essas amarras, a Record publica a primeira edição do romance.

Em suma, houve uma interdição do nome de Cassandra Rios (por conservadores, pelos intelectuais e pelo regime em si), apesar da vendagem estrondosa e da relevância de sua obra como pioneira no que diz respeito à representação do desejo de mulheres na literatura brasileira e à visibilidade que ela dá à temática lésbica. Ler Eu sou uma lésbica, assim como outras obras de Cassandra Rios, portanto, é também fazer um resgate dessa escritora, considerada uma das autoras mais vendidas e também perseguidas na história da literatura brasileira.

Para saber mais

A Safo de Perdizes (2013). Direção: Hanna Korich. YouTube. 62 min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sSZu0dcHnpQ&t=790s. Acesso em: 11 mar. 2023.

AMARAL, Pedro (2006). Prefácio. In: RIOS, Cassandra. Eu sou uma lésbica.2. ed. Rio de Janeiro: Azougue. (Coleção Devassa.)

LONDERO, Rodolfo Rorat (2016). Pornografia e censura: Adelaide Carraro, Cassandra Rios e o sistema literário brasileiro nos anos 70. Londrina: Eduel.

VIEIRA, Kyara Maria de Almeida (2014). “Onde estão as respostas para as minhas perguntas?”: Cassandra Rios – a construção do nome e a vida escrita enquanto tragédia de folhetim (1955-2001). Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/11869/1/TESE%20Kyara%20Maria%20de%20Almeida.pdf. Acesso em: 18 maio 2023.

PEREIRA, Nilza (2004). Na contramão do cânone. A Tarde, Salvador, 30 out. Caderno Cultural, p. 8-9.

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Como citar:

MORAIS, Juliana Borges Oliveira de.
Eu sou uma lésbica.

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Brasília. 

02 jun. 2024.

Disponível em:

1295.

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19 maio. 2025.