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Eles eram muitos cavalos

RUFFATO, Luiz. Eles eram muitos cavalos. São Paulo: Boitempo, 2001.

Gabriel Estides Delgado

Ilustração: Naiara Ribeiro

Terceiro livro na já extensa obra do escritor mineiro Luiz Ruffato (Cataguases, MG, 1961), Eles eram muitos cavalos talvez permaneça como sua obra-prima. Romance que o projetou no campo literário brasileiro – para além dos prêmios que galgou, como o Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, e o APCA, da Associação Paulista de Críticos de Arte –, foi publicado inicialmente pela pequena editora Boitempo, hoje referência no mercado de livros progressistas e politicamente à esquerda, mas com marcada ênfase não ficcional.

Ruffato, jornalista radicado em São Paulo, já havia partido de duas obras de contos antes de compor a forma fragmentária, verdadeiro mosaico de pequenas histórias autônomas, do livro que viria a consagrá-lo. Para tal, recupera recursos e modelos francamente vinculados às vanguardas artísticas europeia, norte-americana e brasileira da primeira metade do século XX. O motivo do romance – a própria cidade de São Paulo –, que, de maneira paulatina, aparece ao leitor como liga de suas diversas personagens, já havia sido explorado por clássicos como Manhattan Transfer (1925), de John dos Passos – uma figuração fraturada da múltipla Nova York –, e Berlin Alexanderplatz (1929), de Alfred Döblin, sobre a urbe alemã e a ligação evidente entre adensamento populacional e choque de classes, tendente ao crime.

Leitor exemplar e senhor do repertório que manipula, Ruffato aproveita-se de suas diversas influências, o que fica evidente ao examinarmos, de maneira mais próxima, alguns dos 70 fragmentos de Eles eram muitos cavalos. Um dos mais exuberantes, justamente pelo que lhe falta de linha narrativa convencional, ampliando desse modo sua capacidade de sugestão, é o de número 24: “Uma estante”. Trata-se apenas de uma lista isolada de 53 livros. Em meio aos outros episódios do romance, logo se percebe a presença indireta de uma personagem, no entanto parcialmente devassada em sua intimidade de leitora eclética. Convivem ali, por exemplo, Ingmar Bergman e Francisco Cândido Xavier, Stendhal e Paulo Coelho etc. Ora, o procedimento é retirado do Ulysses (1922), de James Joyce, em que, no seu penúltimo capítulo, a estante de livros do casal Bloom é enumerada também de modo isolado e igualmente um caráter bastante eclético se lhe ajusta como primeira definição, indo, em parcos 23 volumes, de Shakespeare e Conan Doyle a um certo A vida oculta de Cristo e também Filosofia do Talmude.

Entre a multiplicidade de técnicas narrativas da poética ruffatiana, destaca-se a disposição in media res de boa parte dos episódios e também sua curta duração, numa prosa telegráfica, “simultaneísta”. Essa abordagem, operando por vezes fluxos de consciência ou monólogos interiores, já havia sido assimilada com grande repercussão no campo cultural brasileiro por Oswald de Andrade, em seus dois romances fundamentais: Memórias sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933). Mas, assim como o pioneirismo absoluto de Oswald abalara de modo sísmico a tradição literária no Brasil, integrando as vanguardas internacionais com a matéria social de seu país, o impacto de Eles eram muitos cavalos – verdadeiramente impressionante à época – não se explica apenas pelo requentar anacrônico de métodos modernistas que, aliás, outros escritores já haviam feito com sucesso (é preciso recordar o caso de Ignácio de Loyola Brandão em Zero, romance de 1974). Na espécie de acumulação total do que o precedera – há, por fim, as variações textuais tipográficas empregadas por Ruffato, em tributo ao último dos movimentos brasileiros de renovação: o concretismo –, o autor é dono de uma voz narrativa original e única. Seu estilo advém de sua própria história, transfigurada em linguagem literária: migrante pobre de Cataguases, formado em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora, e, enfim, profissional de sucesso em São Paulo (à época do lançamento de Eles eram muitos cavalos era secretário de redação do Jornal da Tarde, veículo importante da capital paulista), Ruffato como se assusta com a dureza incontornável de vidas empilhadas, com o fluxo humano imerso na espessa fuligem do dia a dia poluído, barulhento e feio da maior cidade da América Latina. Seu olhar é externo, não há nenhuma naturalidade como a possivelmente alcançada por habitantes nascidos na capital; essa observação multívoca e nunca apaziguada varia entre o zoom out a partir de um helicóptero (fragmento 16) ao zoom in nos detritos recolhidos no chão (veja-se o ready-made de um santinho de milheiro no fragmento 31, por exemplo).

Entretanto, a força da voz narrativa que unifica a obra é a mesma encontrada em toda a ficção do escritor, em especial no seu projeto mais ambicioso, o romance Inferno provisóriotour de force em cinco volumes, publicados entre 2005 e 2011 pela editora Record, e, recentemente, segundo antigo desejo do autor, consolidados em volume único pela Companhia das Letras, em 2016. Essa estilística ruffatiana é calcada em compulsiva adjetivação das personagens, marcadas por signos de sua classe social, como os objetos de consumo continuamente descritos, desde um vestuário a uma decoração doméstica, por exemplo, e na enumeração sintética e também obsessiva, mormente de hábitos, como neste caso do fragmento 29: “deita, levanta, mija, caga, come, programa infantil, desenho animado, jornal, come, jornal-nacional, jogo, sessão-coruja, mija, caga, dorme”.

Tais procedimentos ligam-se, fechando o círculo poético ruffatiano, a uma extrema sensibilidade social, que o aproxima sempre de variações populares da língua falada no Brasil, retrabalhadas literariamente com maestria e mais ou menos derivadas de certa tipologia mineira. Vejamos trecho do fragmento 30: “a patroa ligou há pouco… está um tiroteio danado lá na rua de casa… ela estava falando encolhidinha atrás do sofá que encostou na parede para não ficar zumbindo bala perdida na cabeça dela… ligou preocupada, coitada… falou pra eu não aparecer lá hoje de terno-e-gravata… alguém pode me confundir… achar que sou delegado… eu pensei cá com meus botões, que besteira!”. O narrador, que concede com frequência a fala direta às personagens, não deixa, no entanto, de dominar o texto. Nesse caso, não raro se expande em lirismos tristes que definem a marca única de sua prosa, como neste trecho do fragmento 38: “Oito anos tem a menina, vivazes olhos betuminosos e duas longas tranças negras, penelopemente entrelaçadas pela mãe antes de ir para o serviço, nos primeiros barulhos do dia. Os cordames, grossos e crespos, fiam-se em duas largas fitas de cetim vermelho, que ela ostenta espigada. […] A mãe tem trinta e dois anos e é muito engraçada. Costuma chegar no rabinho da tarde, […]”.

Poder-se-ia contestar tal espécie de candidez pessimista como caminho mais curto para o sentimentalismo; não obstante, entre vestígios de condução paternal, o engajamento é verdadeiro, isto é, deriva organicamente da poética solidária desenvolvida pelo autor, cuja dureza da matéria figurada tampouco sofre de facilitações populistas.

Para saber mais

COMPANHIA DAS LETRAS (2021). Bate-papo sobre o livro “Eles eram muitos cavalos”, de Luiz Ruffato. YouTube, 30 abr. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IytabPAQXkg. Acesso em: 8 maio 2023.

HARRISON, Marguerite Itamar (Org.) (2007). Uma cidade em camadas: ensaios sobre o romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato. Vinhedo: Horizonte.

OLIVEIRA, Waldívia de Macêdo (2021). Eles eram muitos cavalos: o romance duchampiano de Luiz Ruffato. Tese (Doutorado em Literatura e Interculturalidade) – Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande. Disponível em: http://tede.bc.uepb.edu.br/jspui/handle/tede/3721. Acesso em: 10 jan. 2023.

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Como citar:

DELGADO, Gabriel Estides.
Eles eram muitos cavalos.

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mapeamento 

crítico 

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literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

02 jun. 2024.

Disponível em:

1272.

Acessado em:

19 maio. 2025.