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Meia Pata

DANTAS, Ricardo. Meia Pata. São Paulo: Kazuá, 2013.

Ivanilde de Lima Barros
Ilustração: Dona Dora

Meia Pata é o primeiro romance de Ricardo Dantas (Santa Cruz, RN, 1979), escritor potiguar, biólogo e professor. O livro foi lançado pela editora Kazuá, em 2013, mas devido à sua seleção como obra a ser lida para o vestibular da Universidade Federal de Roraima, nos anos de 2016 e 2017, a narrativa passou por reformulações que visavam adequar a linguagem ao público jovem. Essa versão, finalizada com 212 páginas, acabou também por acrescentar elementos ao capítulo intitulado “Boca da Mata”, cuja temática central é o modo de vida dos indígenas. Apesar das reformulações e dos ISBN diferentes, a versão atualizada da edição de 2013 não foi catalogada como segunda edição. Já mais recentemente, o livro passou por outra reformulação, sendo considerada pelo autor como a versão final da obra, que foi lançada pela editora Unilivreira, do Rio Grande do Norte.

O livro tem como inspiração um conto de Dantas, escrito em 2008, cujo título é Velho xereta. Além dos contos, Ricardo Dantas possui apenas mais um livro publicado, As aventuras de Jota Cabeça e seus Guachebas, lançado em 2022. O livro, uma publicação independente, ganhou uma edição de bolso de 77 páginas. O texto é teatral e se constitui como uma espécie de paródia da vida de Jesus Cristo. Meia pata permanece sendo sua principal e mais conhecida obra.

A narrativa de Meia Pata apresenta o personagem Daniel, um jovem biólogo de 22 anos, que vai para o extremo norte do Brasil, onde, sob indicação de seu orientador de pós-graduação, passa a trabalhar numa empresa de extração vegetal para realizar sua pesquisa na área de recursos naturais. Daniel Silva chega ao estado de Roraima em 1989 e instala-se na cidade interiorana de Caracaraí. Após contratar, a mando da empresa, uma equipe de cinco peões experientes que ficaria sob sua liderança na empreitada de realizar um mapeamento de espécies vegetais, o jovem adentra a floresta com seu grupo e chega à sede da fazenda Mundo Velho, uma base de apoio dessa empresa, a Bronze verde florestal.

Já em seu primeiro dia nessa fazenda, Daniel presencia o ataque de uma onça-pintada ao grupo de cães da casa, bem próximo à varanda em que ele dormia. Essa mesma onça ataca Daniel pelas costas quando ele já estava trabalhando há dias na floresta. Nesse ataque, o biólogo está afastado de seu grupo, razão pela qual a onça se sente segura para se aproximar daquele humano. Após uns arranhões profundos das garras, que alcançam somente ombro e pescoço graças à grande mochila que o jovem carregava, a onça-pintada fica frente a frente com um Daniel em choque. O homem é salvo de um ataque mais severo quando os seus companheiros de equipe, que haviam percebido seu distanciamento, saem à sua procura. Ao se aproximarem, fazem barulhos para afugentar a onça, que salta, mas não deixam o local. Manel, um dos membros da equipe de Daniel, atira no animal, acertando principalmente sua pata dianteira esquerda, o que deixa o rastro dela, de apenas meia pata, fácil de identificar a partir daquele dia.

Esse incidente é contado duas vezes no romance: no primeiro e no oitavo capítulos. No primeiro, cujo título é “A onça”, os acontecimentos do ataque da onça aos cães, do tiro em sua pata e sua luta para sobreviver, até a morte de um dos membros da equipe de Daniel, são narrados a partir da perspectiva da onça. O capítulo, então, funciona como uma abertura que instiga o leitor a querer saber quem são todos esses personagens e como tudo se deu, principalmente porque, nesse momento, a narrativa trabalha o ambiente e os sentimentos da onça próximo àquilo que tradicionalmente seria chamado de antropomorfização, mas que, pela sensibilidade da onça, remete mais a uma forte consciência de integralização desta com todo o bioma à sua volta.

O segundo momento em que o romance narra o encontro de Meia Pata com Daniel é o oitavo capítulo, conectando cronologicamente esse episódio aos demais da vida de Daniel na Amazônia. Já a morte do membro da equipe de Daniel, que também aparece sob a perspectiva da onça no primeiro capítulo, só é contada no capítulo 13. Na ocasião, a onça urra próximo ao acampamento onde o cozinheiro está sozinho, e, no desespero da fuga, ele cai no igarapé, onde há uma sucuri que o enlaça num abraço fatal. Pelas marcas de Meia Pata no local, sabem que ela tem algo a ver com o incidente.

Além de suas abundantes explicações científicas ao longo da narrativa e do tom pedagogizante de suas descrições, o romance regionalista Meia Pata traz uma perspectiva xamânica quando trata das relações entre homem e natureza. Esse dualismo entre o metafísico e a realidade cientificamente pautada constituem um conflito na vida de Daniel, seja pela sua religiosidade cristã, que o jovem começa a questionar, seja pela experienciação xamânica que Daniel teve na aldeia de sua namorada, indígena da etnia Macuxi. Entretanto, o romance opta pela lógica aristotélica de diferenciação entre ficção e realidade, trazendo os acontecimentos dentro de um ideal de causalidade elucidativa que mantém a verossimilhança como fio de segurança entre o que seria uma capacidade imaginativa, em seu enlevo, e os limites daquilo que seria possível acontecer na realidade.

Após os encontros aterradores com a onça-pintada, Daniel torna-se obcecado por Meia Pata, sobretudo porque se sente culpado pela morte dos dois membros de sua equipe. Ele peregrina na floresta sozinho durante meses inteiros, dividindo o mesmo território com a onça. Nesse final de narrativa, homem e onça-pintada têm os últimos dois encontros. No primeiro, é o biólogo que vai à procura da onça, forjando uma armadilha que falha: a onça perde uma garra, mas não tem maiores ferimentos; já o biólogo fica bastante machucado por conta do forte impacto com uma árvore quando ele se locomove pendurado num cipó. É nesse ponto que o romance engendra um paralelismo entre Daniel, completamente debilitado, e a onça ferida do primeiro capítulo do romance, constituindo os dois momentos mais expressivos da narrativa. Toda a luta que Meia Pata tem para sobreviver, para locomover-se ferida, como também o medo de deixar sua toca para alimentar-se, Daniel vive na pele humana. Escondido dentro de troncos de árvores, Daniel passa noites e dias ouvindo a onça caçar e andar livremente pela floresta, e sente inveja dela, porque Meia Pata provava ser dona do território no qual o biólogo desarmado passava por níveis extremos de sede e de fome, chegando a comer os restos crus das caças abatidas pela onça-pintada.

Essa aproximação pode ser explicada pelo viés do que a estética literária do final do século XIX começou a empreender sob o conceito de zoomorfização, que convém apenas para centralizar em torno de si mesma a existência humana como padrão de comportamento, já que constrói uma diferenciação entre ser humano e não ser humano, tomando a existência animal como inferior ao homo sapiens ou, metaforicamente, como desvirtuação da razão e da moral. O romance filia-se a esse ideal, mesmo quando parece conferir à onça-pintada uma centralidade na narrativa, uma vez que seu mote ainda é a forma pela qual “Um biólogo em Roraima”, primeiro título dado à obra, segundo o autor, é transformado pelo ambiente.

No segundo encontro, é a onça que acha Daniel, ainda mais exaurido pelos meses sem sair da floresta, sem querer voltar para sua antiga vida. Deseja apenas dividir o mesmo território que Meia Pata, mas para provar ao animal que tem o domínio do lugar. Enquanto se encaram, nem Daniel, nem a onça percebem a aproximação do membro mais velho da antiga equipe dele, aquele que já havia matado muitas onças antes. Esse homem acerta Meia Pata na cabeça, para o desespero de um Daniel apaixonado por sua antagonista.

Dando um salto no tempo, a narrativa mostra, em seguida, o dia a dia de Daniel dentro da empresa, dando ordens, depois de quatro anos da morte de Meia Pata. Daniel sai daquela inocência e credulidade românticas em relação às pessoas e ao mundo, para o padrão de homem seguro de si, líder, palestrante, famoso por causa de Meia Pata. Como supervisor operacional da empresa, o biólogo, a fim de preservar as suas próprias memórias, não permite que o local da morte da onça seja devastado, assim como o restante do território do qual, agora, passou a ter o domínio. Um Daniel mais inteiro e completo com o que ganhou da floresta permanece obtendo lucros com a devastação do bioma. Por sua vez, a onça continua lembrada por sua incompletude e sua ferida: apenas meia pata. E vida nenhuma.

Meia Pata é uma narrativa que traz o encontro de existências outras no palco literário, proporcionando uma rica reflexão em âmbito estético sobre as vivências de corpos em integração. Se antes se pensava em constructo identitário somente como influência mútua entre humanos, textos como o de Ricardo Dantas apresentam uma nova ordem de integralização interpelada por existências que não têm o mesmo corpo nem a mesma linguagem, mas que estão no mundo como absolutamente necessárias à teia da vida, de todas as vidas.

Para saber mais

ALMEIDA, Khatlen Lohanne Martins de (2019). Meia Pata para maiores. In: PROCÓPIO, Eliabe; ROCHA, Felipe Thiago Cordeiro da. (Orgs.) Estudos linguísticos e literários. Boa Vista: Editora da UFRR.

FREIRE, Beatriz Ferreira Salles (2019). A onça, o homem, a paisagem na obra Meia Pata de Ricardo Dantas: Relações topofílicas. In: PROCÓPIO, Eliabe; ROCHA, Felipe Thiago Cordeiro da. (Org.) Estudos linguísticos e literários. Boa Vista: Editora da UFRR. FREIRE, Beatriz Ferreira Salles (2019). Meia Pata de Ricardo Dantas: subjetividades em devir. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Roraima, Boa Vista.

Iconografia

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Como citar:

SOBRENOME, Nome.
Meia Pata.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

23 maio. 2024.

Disponível em:

1215.

Acessado em:

19 maio. 2025.