RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
Rodrigo Goes e Lima
Ilustração: Ruben Zacarias
Publicado em 1984, Viva o povo brasileiro faz da Bahia, mais especificamente o Recôncavo Baiano – ainda que não se limite a ele –, não só a estação primeira do Brasil como também a representação metonímica de uma nação por vir, com uma história por ser escrita. Ao longo dos vinte capítulos, o enredo percorre quatro séculos – de 1647 a 1972 – em saltos e solavancos cronológicos que perambulam com intencional inexatidão factual por acontecimentos fundantes da história “real” brasileira, desde a catequização dos povos indígenas ao golpe civil-militar de 1964. Destaca-se aí um dos traços principais da obra, cuja marcação das subseções dos capítulos em referências precisas de data e local (como em: “Pirajá, 8 de novembro de 1922”) transporta o leitor para diferentes cenários, alguns deles ficcionais, como se uma cortina de teatro de repente se abrisse no ponto crucial de um ato.
João Ubaldo Ribeiro (Itaparica, BA, 1941 – Rio de Janeiro, RJ, 2014) dispõe de liberdade total para tensionar a relação entre os fatos e a pluralidade de histórias, versões, inversões, verdades e inverdades ao longo do escopo temporal dos aproximadamente trezentos anos que compõem a narrativa, fazendo uso de estilos e recursos variados para cada uma das vozes que dão corpo à sua composição histórica. Não é modesta, portanto, a ambição do autor do também aclamado Sargento Getúlio (1971), nesse que é seu quarto romance. Viva o povo brasileiro explora, com fôlego, a disputa pela constituição identitária nacional a partir da formação do poder de uma alta sociedade brasileira construída sobre a força do trabalho do povo, sobretudo escravo, que busca, por sua vez, escrever sua própria versão por cima de uma narrativa pretensamente “oficial”.
Parte da potência do romance está na sensibilidade em pôr à vista o cinismo de um certo tipo de pensamento classista capaz de legitimar, sem culpa ou escrúpulo, qualquer ato de puro interesse individual, como se nele houvesse nobreza e até abnegação. O estilo irônico de Ubaldo do início ao final do livro permite que se faça uma dissecação das defesas psíquicas de personagens que compõem essa elite econômica e que consentem com a demissão absoluta de qualquer fenômeno de consciência que não seja autolaudatório e irredutivelmente convencido de seu mérito redentor. Exemplo disso aparece em uma das primeiras e mais marcantes cenas do livro, quando o leitor testemunha a aparição de Perilo Ambrósio, que esfaqueia um de seus escravos para manchar a si próprio de sangue e forjar um ferimento que lhe conferiria a glória de herói da luta pela independência brasileira. Um “erro de cálculo” na execução dessa farsa macabra, desses que só ocorrem quando o culpado se vê protegido pela certeza da impunidade, leva o escravo à morte, fato que Perilo tenta para sempre silenciar ao cortar a língua do segundo escravo que teria testemunhado a cena. Ao se afastar do corpo, o pensamento que ocorre a Perilo em relação à morte do escravo é o de que “de um modo ou de outro deu sangue ao Brasil”. Não há para ele, afinal, escassez de razões que possam legitimar o sofrimento e a morte da população negra e pobre brasileira.
Por meio desse crime inaugural se conhece todo o espírito do repugnante Perilo, cuja gula e violência se espraiam pelo decorrer da obra e impregnam, seja por descendência, influência ou insurgência, os destinos dos personagens que o sucedem. Descendência na medida em que ele perpetua, pela via do estupro, a transmissão de um laço sanguíneo forçoso, ao redor do qual tomam parte personagens essenciais da narrativa – da violação da escravizada Vevé nasce Maria da Fé, heroína da obra. Influência pela forma como é transferido todo um repertório de farsas, corrupção e locupletação que instaura uma burguesia parasitária, absolutamente antagônica ao interesse público e popular, que se aperfeiçoa nos métodos de enriquecimento e apagamento de qualquer traço genuinamente nacional. Essa classe é ilustrada pelo personagem Amleto Ferreira, antigo “guarda-livros” de Perilo e entusiasta do embranquecimento como via de ascensão social. Insurgência pelo fato de raiar, justamente do ventre de uma escravizada violentada por Perilo, a representante maior da resistência popular contra os desmandos das elites brasileiras. Maria da Fé, ou simplesmente Dafé, é a encarnação de um espírito orgulhoso de sua condição brasileira, opositora de toda forma de opressão popular e baluarte da noção de justiça, conceito estrangeiro ou deturpado para muitos dos personagens do livro.
A referência às almas e ao Espírito são mote e recurso centrais do livro, cujo argumento aposta na construção de uma espécie de linha sinuosa e não cronológica que costura toda a trama da história de um país, por meio de um movimento que o leitor se vê compelido a acompanhar a cada vez que é transportado ou encarnado em nova data e em novo local. Para João Ubaldo Ribeiro, parece não haver pontas soltas na maneira como se estruturam as formas de dominação e de resistência no microcosmo brasileiro construído em sua obra.
A primeira seção do capítulo inaugural, a única que não se inicia com uma referência geográfica ou temporal, descreve um processo de encarnação de almas que, enquanto desencarnadas, nada podem aprender. Lida a partir dessa introdução, a obra se apresenta então como um compilado de experiências e de acumulação dessas “alminhas brasileiras” que insistem em encarnar para que, quem sabe, algo enfim se constitua. São elas quem vão dando, assim, contorno a um organismo vivo, ainda que metafísico, que em seus muitos retalhos tensiona e vislumbra a possibilidade de manifestar um aspecto complexo de coerência enquanto um todo. Esse todo não se confunde de forma alguma com uma unidade social homogênea ou com a ausência de tensões e contradições. Ele é permanentemente questionado, inclusive, como existência: “Será que tudo na vida era assim, tudo existia e não existia?”.
O que parece haver de interessante nessa perspectiva é que há na representação de Ubaldo a expressão de um olhar clínico sobre a formação nacional. A partir desse olhar, as analogias são compreendidas não como superposições inertes de eventos e episódios que se repetem ou que parecem entre si, mas sim como um sistema de relações que denunciam um certo modo de funcionamento, uma disfunção, uma patologia. Em outras palavras, ao descrever arquétipos ficcionais que se encarnam e se reproduzem de determinadas maneiras ao longo da história brasileira, João Ubaldo Ribeiro desvenda uma certa operação fisiológica própria de um corpo social. Para que constitua um povo, não basta, entretanto, que esse corpo seja constituído por meio de repetições e encarnações. É necessário, como aparece marcado no nome da heroína do romance, um ato de fé, uma capacidade de reconhecimento entre semelhantes que permita que eles se vejam de fato como parte de uma “Irmandade do Povo Brasileiro”, tal como é apresentado no romance.
É, pois, sobre a discussão a respeito das condições de constituição popular que repousa a importância e a atualidade de Viva o povo brasileiro. Poder-se-ia argumentar que a obra é atual na medida em que cataloga com precisão temas recorrentes e insistentes da vida política e social brasileira, como o racismo, a ideologia do embranquecimento, o sadismo, a corrupção, a negação da política, o papel do exército frente aos interesses da população, a cordialidade, e também as formas de resistência, de sobrevivência, de preservação da história dos povos tradicionais, de expressão e diversidade cultural nacional.
Mais do que isso, entretanto, o romance reconstrói e preserva a tensão entre a certeza da perenidade do substrato popular, uma vez que “nada vivo realmente morre”, e a dúvida constante acerca das formas pelas quais ele se corporifica e se sustenta na narrativa e no imaginário coletivo de uma sociedade. O último parágrafo do livro traz a imagem do Espírito do Homem vagando “erradio mas cheio de esperança” sobre as águas da grande baía.
A questão que se abre, portanto, não se limita à definição da obra ou não como um romance histórico, categorização rejeitada pelo próprio autor, ou dos limites entre verdade e ficção, cujas fronteiras João Ubaldo borra, questiona, ironiza e redefine. O que parece emergir, afinal, é a maneira como o autor coloca o leitor no limite do questionamento acerca das atribuições da ficção no campo político e na definição dos afetos que, suscitados pelas diferentes formas de contar histórias, podem ou não ratificar a existência de um povo no discurso social. São essas formas, afinal, que definem, mesmo que sempre provisoriamente, as possibilidades de pontuação e enunciação do título do romance, seja em tom de interrogação, de afirmação, ou de celebração.
Para saber mais
CUNHA, Eneida Leal (2007). Viva o povo brasileiro: história e imaginário. Portuguese Cultural Studies, Massachussets, v. 1, p. 1-13.
DALCASTAGNÈ, Regina (1999). A formação das elites em Viva o povo brasileiro e O cortiço. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 2, p. 1-5. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/8842/7747. Acesso em: 20 fev. 2023.
LEAL, Virgínia Maria Vasconcelos (1999). O caráter dinâmico da História: fatos e versões em Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 2, p. 7-16. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/8843/7748. Acesso em: 20 fev. 2023.
PASTA JR., José Antônio (2002). Prodígios de ambivalência: notas sobre Viva o povo brasileiro. Novos Estudos, São Paulo, n. 64, p. 61-71.
VALENTE, Luiz Fernando (1990). Viva o povo brasileiro: ficção e anti-história. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 25, n. 3, p. 61-74.
Iconografia