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Uma noite em Curitiba

TEZZA, Cristovão. Uma noite em Curitiba. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

Gabriel Estides Delgado
Ilustração: Júlia Mazzoni

Romance sobre as repercussões pessoais da ditadura militar brasileira (1964-1985), Uma noite em Curitiba é repositório extensivo e vibrante da estilística inconfundível que Cristovão Tezza (Lages, SC, 1952) construiu com rigor ao longo de uma das mais prolíficas carreiras literárias na história da cultura do Brasil. São mais de 40 anos de atividade e quase três dezenas de livros, entre crônicas, contos, ensaios teóricos e, principalmente, romances. O que se sucede, por exemplo, desde Trapo (1988), é uma busca preciosista pela forma perfeita de narração. O edifício é alicerçado em uma coerência temática inabalável ­– o universo da classe média urbana retratada a partir de Curitiba, cidade do autor ­–, mas que sofre uma disjunção definidora das tramas: é que as personagens constituem sempre uma fração dominada daquela classe média, a cultural. Portanto, concentram crises passionais em suas esferas estreitas de influência, dentro de círculos artísticos ou do pensamento universitário; sempre vivendo o drama da pouca repercussão de suas visões, no entanto, abrangentes e críticas quanto ao encaminhamento precário da nação.

Esse estrangulamento de potencialidades recebe um contorno figurativo convincente em Uma noite em Curitiba. O professor universitário de História Frederico Rennon, aos 50 anos e no topo de sua carreira docente, como titular de uma importante instituição federal de ensino, é vítima de um brutal acerto de contas com o passado ao reencontrar, em um simpósio de Literatura e Cinema que organiza, uma antiga companheira de luta contra o regime militar, que se tornara atriz famosa. Sara Donovan, com o vigor postiço do show business, que mantém à custa de casamentos fracassados, álcool e cocaína, será mais do que mero caso extraconjugal a alterar a rotina de homem casado que se revela subitamente maçante; a paixão repentina tornar-se-á crise devastadora, posto que as personagens são guardiãs de um segredo de combate, enaltecedor de uma juventude que aspirava a realizações políticas e sociais mais vastas, entretanto, de repente incapaz de honrar o arroubo inicial. Em uma manifestação de rua no Rio de Janeiro, após o endurecimento do regime em dezembro de 1968, quando promulgado o Ato Institucional nº 5, as personagens deparam-se com quem julgaram ser um agente infiltrado a fotografar os participantes do protesto; Sara puxa violentamente a câmara do fotógrafo, que reage abrindo um canivete; Frederico avança e mata o sujeito. Na noite em que os dois se escondem no apartamento ou “aparelho” da organização a que pertenciam, Frederico tem sua primeira relação sexual, antes de retornar a Curitiba, onde, traumatizado, buscará esquecer os tempos heroicos na lida austera do trabalho acadêmico.

O alcance do entrecho, não obstante, depende da forma narrativa em que é desenvolvido. Entusiasta de Mikhail Bakhtin, teórico russo da estilística romanesca, Tezza defendeu e publicou tese de doutorado intitulada Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo (2003), além de dissertar sobre essa que é sua maior referência conceitual no longo ensaio O espírito da prosa: uma autobiografia literária (2012). Com base nesse pensamento, o autor curitibano entende a arena do romance como jogo de vozes autônomas e, no melhor dos casos, imiscíveis, isto é, para que a forma literária alcance efeito de convencimento é preciso que as personagens criadas expressem-se de modo independente, em contornos de individuação linguística ­– caracterização expressiva ­– bem acabados. E temos em Uma noite em Curitiba uma maturação exemplar desse trabalho artístico desenvolvido na obra do autor. É o filho do professor Rennon, não nomeado, quem narra a crise que culminaria, após o reencontro com Sara, no suicídio do pai. Desconfiado com a mudança repentina do comportamento paterno, o rapaz algo inadaptado de 23 anos, que ainda não saíra de casa, acaba acessando sem permissão as cartas que o historiador mantém com a atriz. Tem-se quase um diário (presume-se que nem todos os textos tenham sido de fato entregues à destinatária) sobre a paixão tórrida enfrentada pelo professor, que é transcrito por seu filho como anteparo documental às acusações que faz ao pai. Ocorre que a paixão por Sara é apenas um gatilho: revisa-se com ela todo o passado mal resolvido da personagem e, por tabela, da fração de classe brasileira que representa. Nessas cartas, está o relato do assassinato cometido na juventude, além de pistas importantes que apontam para o desfecho suicida do professor, que provavelmente não aguenta um novo distanciamento de Sara após, por ela, ter se aposentado da universidade e largado a família.

Como o caso envolve uma atriz famosa e um intelectual reconhecido, o filho, que se ressente da indiferença olímpica do pai, resolve vender a uma editora a história que compõe, a fim de conseguir o dinheiro necessário para que pudesse finalmente estabelecer-se de maneira independente. Veja-se um momento dessa guerra geracional na “voz” do jovem narrador: “Por algumas semanas fantasiei historiar por conta própria toda a derrota (no sentido marítimo do termo, como diria meu pai) daqueles anos que tanto têm fascinado a memória brasileira, e descobrir, no remoinho, de quem era a cabeça esmigalhada por meu pai no beco daquela obscura manifestação de estudantes, propriamente sem data (o ano de 69 é muito vago)”. Continua ele: “Pesquisar, descobrir os amigos de então e entrevistá-los friamente. Mas para isso ele precisa morrer, pensei então. Agora, que estou livre, a ideia já não me parece atraente. Fernanda [namorada do narrador] diz que o assunto é muito batido, e que talvez eu deva me especializar em Filosofia da História”.

Antes de passar à outra bem definida voz narrativa ­do romance – a do pai –, fique-se uma vez mais com o jovem, em um lance edipiano, quando acompanha a mãe ao cinema após prolongada ausência do marido: “Que objetos devemos ressuscitar da memória, que objetos devem ficar lá para sempre?, ela parecia se perguntar. Eu também, neste longo minuto em que eu contemplava minha mãe. Súbito, ela desviou os olhos do guichê para mim ­– um olhar duro, repressivo, investigativo, talvez assustado, o olhar de uma mulher nua no espelho do quarto em direção à porta de repente aberta”.

Objetiva, distanciada, e, no entanto, arisca, com o frescor juvenil de um pensamento direto, seccionado e facilmente conclusivo, é assim construída a linguagem do filho do professor Rennon. As sequências são lidas com clareza, leveza e rapidez; opostas em tudo à voz atormentada atribuída ao protagonista da trama, nas cartas à amante. Há, sobretudo, no caso de Rennon, em relação ao passado “insurrecto” que compulsoriamente represou, o desconforto com a autoimagem, ou melhor, com seu rebaixamento após o lampejo de mudanças históricas profundas de que fora, na ocasião de luta violenta contra a ditadura, um dos mandatários:

Nenhum arrependimento do meu silêncio, o silêncio agoniado de uma longa viagem que, inacabada, terminou em Curitiba, na rodoviária, uma viagem sem volta. Nem mesmo os solavancos que se seguiram ­– a descoberta desconcertante que temos ao perceber que o salto que ainda nos falta entre o talento, o brilho, a alta qualidade de nossa alma, e o terreno da genialidade, do singular absoluto, a torta inteligência desenquadrada capaz de revelar outra esfera, perceber que o salto (logo ali!) é muito grande para os nossos pés (eles nos atrapalham tanto!) ­–, nem isso é suficiente para derrotar.

Tal adensamento estilístico redundará no traço definitivo que marca as obras de Cristovão Tezza a partir de O fotógrafo (2004). É que, após o excelente Breve espaço entre cor e sombra (1998), o autor abandona o jogo entre duas vozes em primeira pessoa – que delimitara também, ainda que com muita eficiência, Trapo (1988) ­–, para firmar seu estilo de maturidade, qual seja: a prosa indireta, em terceira pessoa, de um narrador no entanto torcionado pela emergência abrupta e, nos melhores momentos, convulsionada, da expressão direta de suas criaturas, as personagens. Trata-se do discurso indireto livre, arrepiado – como na fala do professor Rennon acima transcrita – de interjeições diretas e retalhos de pensamentos e textos que emergem à consciência das personagens acompanhadas pelo narrador de Tezza em romances como O filho eterno (2007), Um erro emocional (2010) e O professor (2014).

Nesse novo front narrativo, complexifica-se ainda mais a bakhtiniana tessitura romanesca como que inteiramente palmilhada pelo autor, no entanto em fases: primeiro, a criação convincente de personalidades linguísticas em primeira pessoa ­– veja-se Aventuras provisórias (Prêmio Petrobras de Literatura de 1987) e Juliano Pavollini (1989); depois, o confronto entre duas vozes a aferir a delimitação rigorosa de seus contornos, confirmando a capacidade literária do escritor; mas, por último, o controle de enfoque de um narrador, duplo da instância autoral, que incorpora diversas consciências linguísticas em si mesmo, em um palimpsesto subjetivo em que a autonomia das vozes, ali presente, constitui um desafio de sentido ao leitor.

Uma noite em Curitiba é, pois, ponto importante na historicidade do que se transformaria em um dos virtuosismos estilísticos mais relevantes da literatura brasileira. Indica, não obstante, a melancólica matéria-prima dessa arte de Cristovão Tezza, presente em todos os romances do autor: a ferida narcísica a que a pequena burguesia intelectual brasileira está sujeita, ao ver soçobrar na atribulação de sua sobrevivência cotidiana os sonhos heroicos de outrora; ou ainda pior, nas palavras da personagem do professor Frederico Rennon, notar a “suave volúpia da mediocridade” enquadrando ideais.

Para saber mais

FIORIN, José Luiz Fiorin (2003). Lição de método: Bakhtin e a poesia. Cult, São Paulo, n. 73, p. 22-24. Disponível em: http://www.cristovaotezza.com.br/critica/nao_ficcao/f_prosa/p_03cult.htm. Acesso em: 23 mar. 2023.

GRACIANO, Igor Ximenes (2014). O sujeito-escritor e as transformações no campo literário: o caso Cristovão Tezza. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 43, p. 277-291. Disponível em: https://www.scielo.br/j/elbc/a/b5LWGpKjh4wry6hBygjNmxw/?lang=pt. Acesso em: 23 mar. 2023.

SANCHES NETO, Miguel (2012). Voz generosa. Gazeta do Povo, Curitiba, 12 ago. Disponível em: http://www.cristovaotezza.com.br/critica/nao_ficcao/f_espiritodaprosa/p_gazetadopovo_12ago12.htm. Acesso em: 23 mar. 2023.

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Como citar:

DELGADO, Gabriel Estides.
Uma noite em Curitiba.

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brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

23 maio. 2024.

Disponível em:

1157.

Acessado em:

19 maio. 2025.