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Tudo que morde pede socorro

KRIEMLER, Cinthia. Tudo que morde pede socorro. São Paulo: Patuá, 2019.

Caroline Barbosa
Ilustração: Graça Craidy

Cinthia Kriemler (Rio de Janeiro, RJ, 1969) é servidora aposentada da Câmara dos Deputados. Graduada em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social (UnB), é autora de Tudo que morde pede socorro (2019), romance publicado pela editora Patuá que aborda questões de violência doméstica e abuso sexual.

A obra é narrada em primeira pessoa por Leonora, personagem principal do romance. Professora e tradutora no Rio de Janeiro, sua vida muda quando o marido, Mateus, se torna violento. Tudo começa com um tapa, um xingamento, um empurrão até o momento em que ele a mantém trancada em casa e a estupra. Ela é encontrada pelo amigo, Gabriel, que fica preocupado com seu sumiço. Leonora faz um boletim de ocorrência e consegue uma medida protetiva contra seu agressor. Porém, passado um tempo, ele volta a procurá-la, arrependido, mais calmo e com o objetivo de fazê-la acreditar que mudara. Quase um ano depois da violência sofrida, ele diz que vai embora da cidade e passa no local de trabalho de Leonora para se despedir. Como o carro dela não pega, ele oferece uma carona e, dentro do veículo, mostra que buscava apenas uma oportunidade para se vingar da protagonista. Quando Leonora percebe que sua vida está em risco, ela agarra o volante e provoca um acidente. Depois de ficar desacordada, percebe que está presa nas ferragens, mas consegue sair; Mateus percebe que ela não o ajudará e a ameaça, dando a impressão de que sua perseguição pela ex-mulher nunca iria acabar. Leonora então pega uma barra de ferro e crava no corpo de seu agressor. “Eu gostaria de dizer que lamento. Gostaria de dizer que odeio ter me tornado essa deformidade tão assemelhada a você, Mateus. Mas é mentira. Eu não me arrependo de nada. Eu mataria você. Mil vezes”.

Com sequelas emocionais e físicas, pois ela também perde o braço esquerdo no acidente, Leonora resolve passar uma temporada em Baependi, sul de Minas Gerais, na casa em que sua mãe morou quando jovem. Na cidade, ela busca paz e sossego para tentar se curar de seus fantasmas. Apesar de ter conseguido auxílio financeiro, o dinheiro não paga todas as suas contas e Gabriel continua enviando traduções para ela fazer, entre elas o livro Ainsi soit-elle, de Benoîte Groult. A obra aborda a questão feminista e alguns trechos de sua tradução são inseridos no romance, dando à narrativa uma dicção ensaística, pois é aí, nesses momentos, que a reflexão da personagem sobre o seu processo de elaboração de si mesma como mulher se aprofunda e carrega consigo a atenção do leitor, que acompanha as suas indagações.

Como Leonora não consegue fazer tudo sozinha, ela contrata Francisca para ajudá-la. Após comentar com d. Conceição, proprietária de uma quitanda, que a ajudante não aparecia para trabalhar há alguns dias, a protagonista consegue o endereço da casa dela. Fazal, jovem que é como um filho para d. Conceição, leva Leonora até Francisca e a tradutora descobre que a mulher está sofrendo violência doméstica. Por ser mandada embora de forma violenta, ela denuncia a agressão e o marido de Francisca é preso. Com esse incidente, Leonora conhece melhor a família de sua ajudante e o pior vem à tona: Paula Regina, filha de 15 anos de Francisca, foi abusada pelo pai e está grávida. Leonora é colocada no lugar de mediadora na discussão da possibilidade de aborto para a jovem. No entanto, devido à resistência familiar, a jovem realiza o procedimento de forma inadequada e precisa recorrer a um hospital. Nesse contexto, Kriemler também mostra a faceta do patriarcado, que estimula a disputa entre mulheres de forma tão desmedida que a própria Francisca via a adolescente como uma inimiga que queria retirar seu esposo e foi responsável pela menina interromper a gravidez fora do período, arriscando a vida da própria filha.

Outro caso de violência e abuso sexual chega até a narradora: o do jovem Fazal. Nascido no Afeganistão, ele foi vendido pela família aos seis anos para ser transformado num bacha bazi, termo usado para meninos que são escravizados sexualmente por pedófilos. Fazal é devolvido à família aos 18 anos, mas eles não querem mais recebê-lo e ele é expulso de forma violenta. A Cruz Vermelha Internacional encontra-o desmaiado e ele não só recebe tratamento para curar suas feridas físicas, mas também conhece o dr. Khalil Chalita, que o adota como um filho com a esposa, d. Conceição. Entretanto, mesmo com todo o amor que recebe dos dois, as dores do que foi vivido destroem o rapaz, pois, quando ele finalmente conhece alguém que lhe dá afeto, a homofobia se faz presente. Com diversos traumas, Fazal se suicida. “Predadores sexuais são como hienas. Destroem carnes vivas. Arrancam de suas vítimas, violação por violação, todas as possibilidades. Até que um resto de corpo em espasmos desiste de lutar”.

Essa analogia da armadilha e da presa permeia a narrativa, de capítulos curtos, que desenvolve um trabalho cuidadoso com a linguagem. As frases são curtas, objetivas e cruas. Leonora é uma mulher que tenta lutar contra o que foi vivido; então, a narradora da obra não busca enfeitar a dura realidade que vive ou as que lhe chegam utilizando adjetivos e a romantização de um final feliz. Se, por um lado, juridicamente, há canais de denúncia para o registro da violência e a aplicação dos recursos da Lei Maria da Penha, como curar as feridas físicas e emocionais dessa violência? A autora não tem intenção de fabular um caminho de cura rápido, mas indica que sobreviver é possível: “algumas de nós lutamos uma escuridão inteira para soltar as nossas patas de armadilhas velhas e enferrujadas. E quando tudo parece fim, nos lembramos do não, essa palavra de alforria” (p. 159).

Em O peso do pássaro morto (2017), Aline Bei abordou o silenciamento de uma mulher depois de ser estuprada e engravidar; Carola Saavedra discute o estupro no casamento e o de empregadas domésticas em Com armas sonolentas (2018); Fabiane Albuquerque, em Cartas a um homem negro que amei (2022), discute o silenciamento imposto pelos membros de uma família após o abuso e suas sequelas na vida adulta; e Vista chinesa (2021), de Tatiana Salem Levy, narra o estupro sofrido por Julia e as sequelas desse ato brutal. Todas, como Kriemler, parecem comprometidas com a elaboração do trauma para romper o tabu do silenciamento que quer apagar a dor dessas mulheres.

Seja em contos, poemas ou romances, a pauta da violência em suas múltiplas formas se faz presente no projeto autoral de Kriemler. Exercício de leitura de mulheres loucas (2018) é constituído de poemas curtos que discutem o machismo e a condição feminina e busca ressignificar a palavra “louca” como liberdade de ser; Todos os abismos convidam para um mergulho (2017) emprega uma linguagem crua e brutal, marca da autora, e coloca a dor como personagem central em uma narrativa que discute questões como a violência contra mulheres e crianças e a depressão na adolescência; e Na escuridão não existe cor-de-rosa (2015), livro de pequenos contos, as personagens são o centro de narrativas que discutem também situações de abuso contra a mulher e a luta para se libertar do patriarcado.

Kriemler, então, junta-se a um rol de escritoras contemporâneas que buscam quebrar o silenciamento imposto às vítimas e utiliza artifícios literários para denunciar, promover empatia e convocar os leitores a pensarem em uma mudança.

Para saber mais

KOVACS, Alexandre (2019). Cinthia Kriemler. Tudo que morde pede socorro. Mundo de K. Disponível em: https://www.mundodek.com/2019/07/cinthia-kriemler-tudo-que-morde-pede.html. Acesso em: 4 fev. 2023.

PINTO, Luiz Renato Souza (2021). Se morde, pede socorro? Cidadão Cultura. Disponível em: https://www.cidadaocultura.com.br/se-morde-pede-socorro/. Acesso em: 4 fev. 2023.       

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Como citar:

BARBOSA, Caroline.
Tudo que morde pede socorro.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

23 maio. 2024.

Disponível em:

1152.

Acessado em:

19 maio. 2025.