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Tocaia do Norte

GODINHO, Sandra. Tocaia do Norte. Guaratinguetá: Penalux, 2020.

José Benedito dos Santos

Ilustração: Carolina Godinho

No prólogo do romance Tocaia do Norte, de Sandra Godinho (São Paulo, SP, 1960), o narrador João de Deus verbaliza: “O pesadelo é recente. E se hoje me proponho a falar é por medo de esquecer”, direcionando o leitor para uma narrativa de cunho testemunhal. Assim, tem início a descrição de um dos capítulos mais violentos da história da ditadura militar ocorrido na Amazônia brasileira. A obra registra um período sombrio experienciado pelo povo amazonense, tendo como pano de fundo o golpe militar de 1964, em que militares não só perseguiram, torturaram, mataram, estupraram pessoas, como também queimaram e destruíram a floresta, além de expulsarem milhares de trabalhadores ribeirinhos que habitavam a Cidade Flutuante para os bairros periféricos de Manaus.

Autora de outros livros, entre romances e reunião de contos, como O poder da fé (2016), O verso do reverso (2020) e Estranha entre nós (2022), Sandra Godinho marca seu nome na literatura brasileira contemporânea com a abordagem de diversas temáticas, sempre enredadas a fatos históricos, dramas do cotidiano e engajamento político.

O romance Tocaia do Norte é um dos textos mais contundentes de Godinho, pois retrata literariamente o genocídio contra a etnia Waimiri-Atroari, na Amazônia brasileira, na década de 1960, cometido pela ditadura militar. Ao trazer à baila os impactos negativos do projeto de desenvolvimento aplicado pelos militares à Região Norte do país, a obra resgata e traz à tona parte da história esquecida e não divulgada pelos órgãos oficiais.

Na obra, o tratamento dado à construção do narrador, do tema, do espaço, do enredo e do tempo é tão expressivo quanto a denúncia sobre o grau de violência adotado pelos militares contra a etnia Waimiri-Atroari, que vivia/vive em meio à Amazônia, pois o projeto estético da autora caminha ao lado do seu projeto ético e político. Este último é evidente textualmente, por exemplo, com a presença do verso “Se for para partir”, usado como epígrafe no início de cada capítulo do romance, o que sugere aos indígenas que resistam contra a invasão, contra a degradação da floresta, que empreendam esforços para circular livremente.

A denúncia sobre o genocídio contra a tribo Waimiri-Atroari já aparece na capa do e no título do romance Tocaia do Norte (2020) que traz uma mão humana manchada de sangue, sugerindo ao leitor que a elite brasileira e os conglomerados empresariais estrangeiros, desde o período colonial, até o presente, têm as mãos sujas com o sangue dos povos originários do Brasil.

A obra também dialoga com Massacre (1998), de autoria do padre Silvano Sabatini, e A ditadura militar e o genocídio do povo Waimiri-Atroari (2012), publicado pela Comissão Estadual do Direito à Verdade. A intertextualidade mostra-se, dessa forma, como recurso essencial na composição do romance, abrindo sentidos por meio do entrelaçamento da história que está sendo contada com as obras supracitadas. Desse modo, Sandra Godinho torna-se uma das mais destacadas escritoras da literatura brasileira contemporânea, que denuncia a prática do genocídio contra os povos originários do Brasil.

Também cabe destacar que o romance, publicado pela Penalux, vem preencher uma lacuna literária sobre a violência da ditadura militar contra os povos originários do país. A narrativa é inspirada em duas histórias reais que expõem o genocídio acontecido na Região Norte do Brasil em pleno século XX. A primeira história relata a destruição da Cidade Flutuante, construída sobre as águas da margem direita do Rio Negro, na entrada de Manaus, a partir de 1920, por seringueiros empobrecidos devido ao declínio do Ciclo da Borracha. Na década de 1960, com a criação da Zona Franca de Manaus, essa aglomeração humana precisava ser destruída, para que a área fosse reurbanizada, com o objetivo de atrair o interesse dos empresários brasileiros e estrangeiros que pretendiam investir no Amazonas.

Dessa perspectiva, logo nos primeiros capítulos, o narrador apresenta breves descrições da cidade flutuante: “Nasci no meio da água e do mau cheiro. E da merda, a cidade flutuante. O governador Arthur Reis a chamava de excrescência e alardeou com seu egocentrismo extravagante que erradicaria esse infortúnio de ladrões da porta da cidade, levaria para longe as prostitutas e as doenças do centro. A nova Manaus – que ele almejava (re)construir – não merecia tanta feiura na entrada do porto”. Continua ele: “O homem parecia determinado a esconder as vergonhas, como se elas não existissem. As pessoas do lugar viviam na corda bamba, não porque os flutuantes vivessem amarrados por cordas, mas porque tinham os dias contados”.

Já a segunda história narra o massacre contra a expedição comandada pelo padre Chiarelli, que tinha o objetivo de catequizar a tribo indígena Waimiri-Atroari. Entretanto, durante a construção da BR-174 e da Hidrelétrica de Balbina, atrelada ao desmatamento da Amazônia, entre os anos 1960, 70 e 80 do século XX, a ditadura brasileira quase dizimou a população indígena da região. Desse modo, o romance Tocaia do Norte denuncia que de fato ocorreu no território indígena um processo de genocídio arquitetado pelos militares, com a tutela do Estado e o apoio de empresários brasileiros e norte-americanos, que pretendiam explorar as riquezas minerais, madeireiras, o potencial energético, além de se apossarem do território pelo extermínio, como fica evidente no trecho a seguir: “Os militares jogaram do avião uma espécie de veneno, um pó branco que se espalhou pela floresta matando muitos Waimiri-Atroari, o famoso agente laranja, indicado pelos americanos para a América do Sul, após seu uso no Vietnã. Depois, jogaram bombas que incendiaram as malocas com famílias inteiras dentro”.

Tocaia do Norte apresenta um narrador em primeira pessoa e a narrativa, embora centrada nas memórias de infância de João de Deus (seminarista), varia seu foco narrativo, voltando-se ora para uma, ora para outra das personagens coadjuvantes. A exemplo da personagem Paulo Dias (mateiro), cooptado pelos militares, que ajudou a organizar a emboscada contra a expedição do padre Chiarelli, o que resultou na morte de todos. Ele se torna, posteriormente, porta-voz dos militares para ameaçar/silenciar/matar as pessoas que não se conformavam com a morte do padre.

O cenário em que ocorre a trama é descrito a partir da mescla de diferentes paisagens amazônicas (cidade de Manaus, rios, florestas), criando um microespaço ficcional que sintetiza o Brasil do período ditatorial, nas décadas de 1960, 70 e 80. A obra discute questões sociais, como o deslocamento forçado da população ribeirinha, o extermínio de milhares de indígenas, o assassinato do padre Chiarelli (membro da Igreja Católica), a exploração e a apropriação das riquezas da região, desmatamento e queimadas da floresta, grilagem de terras, aculturação, além de uma visão linear sobre outras culturas. Para isso, observamos o imbricamento entre literatura, história, memória, geografia como espaço político de preservação da ancestralidade e construção identitária. Com isso, Sandra Godinho mostra sua capacidade de traçar tramas e abordar a mesma história/estória, sob o ponto de vista de várias personagens, elaborando, assim, uma obra constituída por diferentes construções discursivas.

Quando se trata da política de memória, em relação ao genocídio contra os Waimiri-Atroari, encontramos uma enorme cortina de silêncios, lacunas, versões diferentes para esse crime humanitário. Apesar de sua contemporaneidade, o genocídio contra os Waimiri-Atroari continua esquecido pela história e pelas literaturas amazonense e brasileira. A reconstrução literária e o resgate histórico do genocídio realizado por Sandra Godinho desconstroem a estrutura de uma história mal contada, silenciada, lacunar, de um dos episódios mais sombrios acontecidos na Amazônia brasileira. Com isso, a autora demonstra sua preocupação com a preservação da memória dos violentos acontecimentos que marcaram e ainda marcam a história do tempo presente no Brasil.

Tal movimento lança luz sobre um crime humanitário que se tornou uma ferida ainda em aberto, não devidamente curada. Assim, o entrelaçamento entre eventos históricos, personagens, espaço e enredo, caracterização e linguagem proporcionam a coerência literária ao romance. Desse modo, Sandra Godinho possui o mérito de ser uma das primeiras escritoras contemporâneas a elaborar um texto literário cujas estruturas apontam para a fragilidade das fronteiras entre os gêneros. Assim, a autora tem consciência de que a obra literária é uma experiência estética e, ao mesmo tempo, um exercício de linguagem.

Sandra Godinho adota a literatura como arma de resistência, ao passo em que permite que as vozes indígenas e ribeirinhas amazônicas, historicamente silenciadas, narrem as suas e as histórias dos outros. É assim que uma Amazônia exuberante, rica, mítica, detentora de culturas diversas, chega aos leitores por meio da escrita e do relato literário-histórico de Sandra Godinho, manchado com o sangue dos povos indígenas pela cobiça daqueles que almejam explorar as riquezas da região. Desse modo, a autora mostra-se uma observadora perspicaz das amnésias históricas, literárias e das violências que recaem sobre as minorias, promovendo uma aproximação entre literatura e história, uma crítica à realidade social e econômica do Amazonas e do Brasil. É, portanto, a constituição de uma literatura que retrata a face excludente de um país ainda regido pelos paradigmas colonial, escravocrata e genocida.

Para saber mais

ANDREATTA, Elaine Pereira; SANTOS, José Benedito dos; OLIVEIRA, Rita Barbosa de (2022). Cartografias do Norte: a produção literária de Sandra Godinho. São Carlos: Pedro & João Editores. (E-book).

CARDOSO, Letícia Pinto Cardoso (2022). A construção do narrador no romance Tocaia do Norte, de Sandra Godinho”. In: ANDREATTA, Elaine Pereira; SANTOS, José Benedito dos; OLIVEIRA, Rita Barbosa de. Cartografias do Norte: a produção literária de Sandra Godinho. São Carlos: Pedro & João Editores. (E-book).

FROTA, Mikael de Souza (2022). Apiyemyeki Kamña Yakopa Kiña? O processo de domesticação espacial em Tocaia do Norte, de Sandra Godinho. In: ANDREATTA, Elaine Pereira; SANTOS, José Benedito dos; OLIVEIRA, Rita Barbosa de. Cartografias do Norte: a produção literária de Sandra Godinho. São Carlos: Pedro & João Editores. (E-book).

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Como citar:

SANTOS, José Benedito dos.
Tocaia do Norte.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

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literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

23 maio. 2024.

Disponível em:

1148.

Acessado em:

19 maio. 2025.