HIDALGO, Luciana. Rio-Paris-Rio. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.
Maria Clara Lysakowski Hallal
Ilustração: Marlova Aseff
Luciana Hidalgo (Rio de Janeiro, RJ, 1965) já foi duas vezes ganhadora do prêmio Jabuti pelas obras Literatura da urgência: Lima Barreto no domínio da loucura (na área de Teoria e Crítica Literária, publicado em 2008) e Arthur Bispo do Rosário: O senhor do labirinto (na área de Biografia, publicado em 1996). Sua estreia na ficção se deu com o livro O passeador (2011), ambientado no Rio de Janeiro, na Belle Époque. Agora, em seu segundo romance, Rio-Paris-Rio, escrito em uma linguagem direta e objetiva, o leitor é apresentado a um período de turbulência – ditadura civil-militar brasileira e protestos estudantis de maio de 1968, em Paris, entrelaçados com o romance entre o casal de protagonistas, Maria e Arthur.
A história de Rio-Paris-Rio é narrada em terceira pessoa, mesclando personagens ficcionais com um pano de fundo histórico real. São doze capítulos curtos, e somente o oitavo é nomeado: “Jouissez Sans Entraves”, traduzido como “Desfrute sem obstáculos”. Recorrendo a divagações filosóficas que a autora destila por meio do narrador-observador, atento a situações e fatos, o leitor fica ciente de que a protagonista – Maria – é uma imigrante brasileira que foi obrigada a se exilar em Paris, na França.
Com isso, por meio da escrita fluida de Hidalgo, é como se o leitor também flanasse pelas ruas de Paris e acabasse cúmplice de todos os acontecimentos do enredo: o amor, as amizades, as viagens e os acontecimentos políticos – tanto no Brasil quanto na França. Além disso, ao longo do romance, a autora discute como é ser imigrante – o quanto é necessário se transformar para fazer parte dessa terra nova, sendo que a própria autora foi uma imigrante em Paris por muitos anos, enquanto cursava o seu pós-doutorado na Sorbonne. Aliás, na mesma universidade estuda Maria, a protagonista da obra.
Assim começa a história, em 1964, apresentando Maria, exilada em Paris após a chegada dos militares ao poder no Brasil. Estudante de filosofia na Sorbonne, vive uma vida aos moldes de Descartes, em que por trás de tudo existe um método. E só começa a viver fora dos padrões cartesianos após conhecer Arthur.
O ponto principal da narrativa é o encontro de Maria e Arthur, já em 1968 – ele um poeta e artista de rua, também brasileiro. Eles são vizinhos, e o relacionamento se inicia com poesias que Arthur deixa anonimamente na porta da protagonista. Logo, o leitor fica ciente de que o enlace se iniciou rápido, e a narradora exemplifica que, para Maria, Arthur é uma espécie de Ítaca móvel. Na epopeia grega de Homero, Ítaca é a cidade para a qual o herói – Ulisses – deseja voltar, pois é a sua localidade natal, em que o seu amor o espera.
Após uma viagem do casal, e vivendo o dia a dia em Paris, Maria compreende que não está mais só, que sua existência está entrelaçada à de Arthur, e que não acredita mais no método de Descartes. Agora, seu companheiro se transforma em seu método. E, aos poucos, não consegue mais separar seu eu de Arthur.
Em meio ao romance, os leitores ficam sabendo como é a vida dos imigrantes em Paris – a qual, possivelmente, é semelhante à vida em outras cidades. Desse modo, a autora situa o leitor no sentido de que a aculturação ocorre desde a tradução dos nomes dos imigrantes para tornar a pronúncia mais fácil na língua do novo lugar, talvez menos ameaçadora. Nesse momento, Maria compreende que, de alguma maneira, todo estrangeiro é intruso, não pertencente àquele lugar onde está no momento.
Mesmo sendo estrangeira e, de certa forma, exilada em Paris, Maria conhece e trava amizade com alguns personagens, que fazem parte do seu dia a dia, como Marechal (brasileiro, exilado, fugindo dos horrores da ditadura do Brasil), Martine (sua amiga francesa e também seu contraponto – pois vivia livremente) e Luc (francês – possivelmente dono do prédio). E esses amigos, cada um a seu modo, mostram diferentes versões de Paris para Maria: a cidade aventureira, o local de refúgio para quem teve que sair às pressas de determinados países ou o lugar em que as diferenças sociais ainda existem.
Ao mesmo tempo que a Paris habitada por Maria parece, na verdade, várias cidades em uma, Arthur também demonstra ter várias personalidades: o escritor, o escultor, o pensador-filósofo. Maria, por vezes, acha graça em tantas contradições, mas também se sente perdida por amar várias pessoas em uma. Contudo, ela própria tem seus segredos – é neta de um general “linha dura” da ditadura brasileira e, ao longo de inúmeras passagens, possivelmente para aliviar o fardo, tenta contar esse fato para seus amigos, especialmente para Arthur, mas não tem forças ou não é ouvida.
O clímax da história se dá com a ocupação da Sorbonne pelos estudantes de Nanterre, conhecido como “10 de maio de 1968”, movimento que se iniciou em Paris e que nutriu ideais pelo mundo afora. No decorrer da repressão policial e do tumulto, Maria perde seus óculos e, devido à sua miopia, passa a ver somente vultos, entrando em choque, em razão de toda a violência de que foi testemunha. Quando encontra Arthur no meio dos passantes, não o reconhece, mas é conduzida por ele para seu esconderijo, embaixo da Pont Neuf. E lá, em uma mistura de corpos e selvageria, Maria se entrega a Arthur de um modo feroz.
Após esse encontro avassalador, a autora mostra uma nova Maria. Isto é, devido ao que a protagonista presenciou – protestos, violência contra os estudantes e contra si própria, e a noite com Arthur – a personagem está diferente, mais melancólica, ou talvez se possa dizer que está mais prática e menos idealizadora de um país ideal – seja França ou Brasil. Dessa forma, Maria entende que ambos os países têm dificuldades, embora esteja claro que seu país natal está passando por um processo mais violento e imerso em obscuridade. Logo, ela começa a fazer paralelos entre os acontecimentos de 10 de maio, na França, com a ditadura civil-militar no Brasil. Ela entende que ambos os países são atrasados, caóticos e rurais e, pela primeira vez, nota-se carinho por parte dela ao recordar de seu país natal. Conforme Maria comenta, o fim das manifestações veio com poucos ganhos, ao menos naquele momento. Nesse ínterim, entra um novo personagem no romance: Ciaei – brasileiro que vivia em Paris, mas tinha ido passar uma temporada em seu país de origem. Assim, o leitor fica sabendo que a ditadura civil militar se intensificou – mais torturas e mortes, mas, também, a oposição não se calou – e que houve a Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro. Tal momento marca outra mudança na trama: Marechal, aflito e tenso, embarca para o Brasil a fim de tentar ajudar na luta armada. Arthur vai para Amsterdã para, em sua própria odisseia, tentar se encontrar no mundo.
Maria permanece em Paris cumprindo sua própria odisseia. Com a amiga Martine, viaja à comuna francesa de Arles, indo para a denominada “casa colorida”, local que abriga pessoas que também têm seus problemas, mas que tentam encará-los com positividade, buscando novas formas de viver. Nesse local, Maria tem uma epifania que a faz ter certeza de que seus ideais são diferentes dos de seu avô general “linha dura” da ditadura. Nesse momento, é possível fazer uma analogia entre o período em que Maria ainda não tinha o diagnóstico de miopia, portanto não usava óculos e enxergava tudo nebuloso, e o momento em que começou a usar o acessório e passou a ver as cores, o horizonte com definição. Logo, fica claro para o leitor que Maria escolheu o presente – isto é, visualizar a contento o horizonte, a sua realidade, mesmo que isso signifique ficar do lado oposto ao do seu avô.
Maria volta a Paris e lá encontra telegramas do seu avô, que tinha ido à Europa e gostaria de visitá-la. Ela mesma afirma que a viagem para Arles foi uma desculpa para fugir desse encontro. Após um tempo, Arthur volta à cidade e o casal se reencontra, e Maria entende que eles são como um objeto geometricamente ligado, que fazem parte um do outro. Por fim, no último capítulo, após quinze anos, em 1979, um mês após a Lei da Anistia, o casal volta ao Brasil. Nesse momento, apesar do fim não tão explícito, o leitor compreende que, mesmo com as dificuldades, o casal escolheu ficar junto e voltar ao seu país natal.
O livro Rio-Paris-Rio foi lançado em 2016, período em que o Brasil passava por momentos contraditórios – pela primeira vez, o país sediava os Jogos Olímpicos (agosto) e Paralímpicos (setembro). Também em agosto, Dilma Rousseff, então presidenta do Brasil, sofreu um processo de impeachment e foi afastada definitivamente do cargo. Assumiu, em seu lugar, um governo impopular, que criou diversas medidas contrárias aos interesses da população, especialmente a mais empobrecida (retirada de direitos trabalhistas, reforma da previdência, PEC do teto de gastos). Assim, ainda que a obra tenha, possivelmente, sido escrita em uma ocasião anterior aos fatos relatados, pode-se fazer paralelos entre os períodos turbulentos que o Brasil vivenciou em 1968 e na época em que o livro foi lançado, em 2016.
Além disso, a obra é importante para que os movimentos de maio de 1968 pelo mundo não sejam esquecidos, uma vez que trouxeram discussões e avanços especialmente no debate sobre racismo e direitos das mulheres. E, claro, para não se esquecer de como foi a ditadura civil-militar brasileira e todos os horrores então perpetrados.
Para saber mais
BARBERENA, Ricardo; FERRÃO, Ana Carolina Schmidt (2020). Desvelando identidades: realismo e subjetividade em Rio-Paris-Rio, de Luciana Hidalgo. Revista Investigações, Recife, v. 33, n. 1, Dossiê̂: Literatura Contemporânea de Língua Portuguesa, p. 1-12. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/INV/article/view/245169/0. Acesso em: 10 fev. 2023.
SAID, Edward (2003). Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras.
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