NOLL, João Gilberto. Bandoleiros. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
Bianca Magela Melo
Ilustração: Liana d’Abreu
Terceiro livro de João Gilberto Noll (Porto Alegre, RS, 1946 – Porto Alegre, RS, 2017) − segundo romance −, Bandoleiros inaugura um traço que será recorrente na prosa do escritor: a figura do brasileiro que perambula entre reflexões e delírios por um país estrangeiro, quase sempre os Estados Unidos. Uma das locações para os acontecimentos é Boston, onde o protagonista sem nome vai encontrar Ada, sua esposa em boa parte da trama, que havia ido para uma temporada de estudos. Assim é com Berkeley em Bellagio (2002), história de um escritor brasileiro que vai dar aulas em uma universidade norte-americana; e similar a Lorde (2004), no qual temos outro escritor em viagem, desta vez à Inglaterra; e ainda naquele que viria a ser o último livro do autor, Solidão continental (2012), sobre um professor brasileiro de português com passagem pelos Estados Unidos.
Noll, que esteve por temporadas como bolsista, professor ou palestrante naquele país, usa o estranhamento do estrangeiro para ampliar o tamanho da solidão dessas personagens, ou aumentar o impacto dos acasos que parecem ser a única lei interna na movência delas. Esse é um autor, aliás, que aprecia dispor suas personagens em longas caminhadas. Bandoleiros apresenta o encontro do narrador protagonista com personagens pouco assentados na vida, “bandoleiros” que, na versão dicionarizada, tanto indica trapaceiros ou salteadores como pessoas errantes, sem paradeiro certo, sendo este sentido mais afim às personagens. O protagonista os atrai como um ímã enquanto anda a esmo: o poeta suicida que deseja narrar seu ato final, a criança que se arremete contra seu peito no Parque da Redenção, em Porto Alegre, o saxofonista cego que tremia de fome.
Há sinais de um exílio existencial nos traços que compõem a personagem central: um escritor solitário e infeliz (mais um) que precisa trabalhar com “sugadoras traduções” para sobreviver e cujo último livro, bem recebido pela crítica, não encontrou leitores. Um dos interlocutores que vive com ele relações mais tensas é o misterioso americano Steve. Os dois têm momentos de corpo a corpo como em um duelo. Eles se encontram em duas absurdas situações, todas inóspitas: em uma casa de campo coberta de neve próximo a Boston, para onde vão depois de se conhecerem em um bar; e em um domingo de peregrinação do protagonista em que ele vai dar em um lugar pouco povoado nas imediações de Porto Alegre. Steve não sabe ouvir e sua fala prolixa atrai e, simultaneamente, provoca o narrador. A relação mal explicada entre os dois põe o narrador como uma ameaça para o americano, que, em muitas cenas, está à beira da morte – por assassinato ou coma alcoólico. Os momentos em que os dois contracenam, carregados de cenas escatológicas envolvendo o corpo de Steve, são as mais cinematográficas do livro.
Não é simples acompanhar o que se passa entre esses dois homens e também saber os inícios e continuidades das ações em geral, pois a ordem não linear adotada e a linguagem seca, sem explicações, obrigam a pessoa leitora a agir como se montasse um mosaico com muitos cacos. Ou, então, apenas a seguir a música própria das frases. “E toco a mão no rosto dele e me vêm aquelas purulências todas. Mas por enquanto nada disso aconteceu. Por enquanto ainda escrevo Sol macabro, e nos intervalos olho o calor pela janela do escritório”. O apuro de João Gilberto Noll para armar frases, também aqui notável, é como um ritmo específico para cada história. Nesse trecho, ele ensaia um modo de contar afim à vida das personagens retratadas: nada é monumental, mas há uma grande atenção a detidas observações do narrador.
Ele é um tanto narcisista, pois dedica demasiada atenção a si e a suas perspectivas. “Eu quero olhar para o pequeno ramo de cipreste natalino pregado a esta porta de Beacon Hill. Esquecer a verdade do mundo. O mundo não passa desse pequeno ramo de cipreste contra a boa madeira dessa porta”. Como Steve, que só fala de si, as outras personagens são egocêntricas e talvez por isso os elos entre eles são frouxos, como aparenta ser o do protagonista com sua esposa, Ada. A delirante sociedade minimal, da qual a mulher se torna adepta, exemplifica bem o nível de diálogo entre os dois. Nas primeiras cenas, ela, então professora de sociologia, leva para casa alunos que veem o marido de botinas, fantasiado de operário brasileiro. A conversa do casal quase sempre é mediada por uma das muitas atividades de Ada.
O único com quem ele estabelece uma conexão forte, de compreensão mútua, é seu amigo escritor João, com passagem curta, porém importante, na trama. A história se inicia com um João pálido, à beira da morte, e se encerra com João sorridente do outro lado do vidro do aeroporto onde ele foi saudar o narrador. “João é um escritor guerreiro. Acabou de lançar um romance esperançoso. Uma história de amor na penúria”. Homônimo do autor, João neste ponto faria referência a Noll, que havia lançado A fúria do corpo sobre o amor entre dois mendigos. O apreço por João e a doença dele são fios de humanidade incomuns nesta narrativa na qual se veem tantos exemplos da banalidade dos gestos. João é um pequeno vislumbre de luz, de um tipo de amor. No todo, porém, predomina o contrário.
O sol é um “sol macabro” como o título do romance recente do narrador-escritor. Em diferentes momentos, surge, inclusive, a intenção de fugir, pôr-se “fora da jogada” sem lamentar perdas. “Eu queria passar pelo menos vinte e quatro horas fora da jogada. Não pertencer a ninguém nem a algum fato, puro bebedor de dreher”. Viver não é motivador e o contato com a paisagem estrangeira só fez afundar a perspectiva de estranhamento. Quando o protagonista está no avião voltando dos Estados Unidos, afirma estar sendo levado de um ponto a outro do planeta “sem desejar ir nem ficar”. No aeroporto, aguardou ansioso o momento de se entreter com um filme no voo e “esquecer o mais completamente que eu tinha vivido um pesadelo e não uma viagem, e que nada absolutamente nada me esperava no Brasil”.
Se o rompimento não é tão radical quanto em A fúria do corpo (1981), primeiro romance de Noll, que saiu na esteira do igualmente pujante – e muito premiado – livro de contos O cego e a dançarina (1980), Bandoleiros reforça, ao lado desses, a falta de lugar de personagens pinçados no cotidiano, nada mais atual. E nenhuma delas está buscando se ajustar. Mesmo o traço reflexivo comum a muitos, inclusive a esse protagonista, não é um questionamento que leva a agir na direção oposta a seus quadros. Há ainda o erotismo associado ao risco e a já citada peregrinação das personagens, quase sempre sem roteiro ou fim. Todos esses aspectos conformadores do desencaixe das personagens, aqui associado a um homem que sente o mesmo no estrangeiro ou no seu país, conectam este livro a um grande tema mobilizador da arte contemporânea: a solidão acompanhada. Em época pré-redes sociais (anos 1980), João Gilberto Noll localiza uma solidão sem pátria, “continental”, a confirmar algo próximo da impossibilidade da comunicação humana ali mesmo onde as pessoas acham que estão mais integradas em rede ou globalmente.
Para saber mais
HELENA, Lúcia (2004). Uma sociedade do olhar: reflexões sobre a ficção brasileira. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 23, p. 179-190. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/8996. Acesso em: 28 fev. 2023.
MIRANDA, Adelaide (2011). Abscesso na cidade: desencontro, violência e esquecimento em Bandoleiros, de João Gilberto Noll. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 14, p. 3-22. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/8874. Acesso em: 28 fev. 2023.
SOUZA, Francisco Renato (2016). Noll contempla narciso: a escrita em reflexo. Em Tese, Belo Horizonte, v. 22, n. 2, p. 227-244. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg/index.php/emtese/article/view/10926/10133. Acesso em: 28 fev. 2023.
TIZZO, Celio (2006). Um romance finissecular: Bandoleiros, de João Gilberto Noll. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande. Disponível em: https://repositorio.ufms.br/handle/123456789/1109. Acesso em: 28 fev. 2023.
Iconografia