Ir para o conteúdo

Desmundo

MIRANDA, Ana. Desmundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

Berttoni Licarião

Ilustração: Manuela Dib

Entre as autoras e os autores da literatura brasileira em atividade, a cearense Ana Miranda (Fortaleza, CE, 1951) figura como uma das mais importantes representantes do romance histórico contemporâneo. Sua obra – ainda que composta por coletâneas de contos intimistas, poemas, livros infanto-juvenis, crônicas, biografias e romances – tem sido, a despeito da variedade temática e formal, reiteradamente associada àquele recorte literário. Não obstante, a leitura atenta dos romances de Ana Miranda revela que a história brasileira é sem dúvida uma constante ficcional, mas está longe de constituir o elemento mais característico de sua produção.

Em entrevista para a Revista de História da Biblioteca Nacional, a autora esclarece que a experimentação é o traço definidor de sua escrita, e o trabalho com a linguagem, o aspecto mais importante da literatura que vem produzindo (MIRANDA, 2011). De fato, em cada romance Ana Miranda procura investigar a linguagem em sua mobilidade diacrônica, realizando experiências com a dicção de várias épocas. Sua escrita explora as possibilidades de se falar sobre o presente através da linguagem de diferentes períodos, criando “um elo na construção literária da humanidade, uma pequena e frágil conexão entre um e outro tempo, massacrada pelas circunstâncias históricas”.

Marcado por uma dicção que procura se aproximar do português quinhentista, Desmundo, publicado pela primeira vez em 1996, entrelaça forma e conteúdo na construção de uma experiência de leitura aberta e cheia de nuances. Partindo de uma matriz histórica (agregada ao texto como epígrafe), a narrativa aborda a chegada de órfãs portuguesas enviadas em 1555 ao Brasil, a pedido de um capitão-mor, para desposarem os cristãos que aqui viviam. Entre elas, encontra-se Oribela, a narradora, que se apresenta à entrada do romance: “Deus, graças, fazes a mim, tua pequena Oribela, a mais vossa mercê em idade inocente, um coração novo e um espírito de sabedoria, já estou tão cegada pela porta de meus olhos que nada vejo senão deleitos, folganças do corpo, louvores, graças prazentes e meu coração endurecido, entrevado sem saber amar ou odiar”.

É através dos olhos dessa jovem, prenhes de visões que “desfazem um coração limpo”, que Ana Miranda constrói um complexo panorama dos embates éticos, religiosos e sexuais das várias culturas que então lançavam suas raízes no solo fértil do Brasil, sem perder de vista, é claro, os desdobramentos dessas relações que se arrastam até nossos dias. Indígenas, cristãos e muçulmanos, fortemente representados no romance, são fontes de assombro, submissão, aprendizado e compaixão, compondo as vozes que extravasam da língua ferina de Oribela, em cuja “natureza continuamente moram desvarios”. Forçada a se casar com um criador de gado, Francisco de Albuquerque, Oribela resiste ao papel de mulher submissa que lhe é imposto e se apaixona pelo mouro Ximeno, figura enigmática que, para a narradora, representa a “ventura do partir” e uma possibilidade de transgredir sua condição agrilhoada: “ Por que vivemos presos todos uns nos outros atados pelos mais fortes grilhões, por que causa somos todos tão estrangeiros uns dos outros e pouco sabemos da alma alheia mais que umas coisas que se podem dizer com palavras duras mas nossas almas afundadas na ignorância de nós, ai Deus, que fabricaste a formosura da noite, quem é o procurador do desamparo desta vida?”

Dividido em capítulos breves organizados em núcleos narrativos (“A chegada”, “A terra”, “O casamento” etc.), Desmundo, contrariando as expectativas, é uma leitura fluida e envolvente. Uma vez vencido o estranhamento das primeiras páginas – vencido, claro está, é modo de dizer, esse estranhamento acompanhará leitores por toda a obra – a história de amor de Oribela e Ximeno vai se revelando aos poucos, expandindo-se com um léxico próprio aos descobrimentos. À medida que desbrava a nova terra, Oribela também descobre a própria sexualidade, construindo, com isso, um relato repleto de elementos que compõem um minucioso painel da sociedade colonial. Sua fala, diga-se de passagem, confronta e subverte dois fortes e indissociáveis discursos da época, o religioso (representado pela mãe de Francisco de Albuquerque) e o patriarcal (representado pelo próprio Francisco de Albuquerque).

As surpresas da narrativa, tecidas com lirismo e brutalidade, emparelham o maravilhamento do novo mundo e a violência das relações sociais numa terra em que o “mal entra pelos pés”. Nesse sentido, a tentativa de recuperação do português quinhentista pode ser entendida, também, como um dispositivo narrativo que busca reproduzir para os leitores, na forma e na linguagem, o profundo e, por vezes sufocante, estranhamento em que se encontra a narradora. Sobre esse aspecto, a análise de Manuel da Costa Pinto (2004) é precisa: “o que ao mesmo tempo nos afasta dessa realidade (por causa do estranhamento linguístico) e nos inclui nessa atmosfera de brutalidade, que lateja na rispidez verbal que redescobrimos no português contemporâneo.”

Desmundo é, ainda, um importante marco na literatura de Ana Miranda, o momento em que, segundo a autora, sua obra começa realmente: “Oribela é a descoberta de minha voz feminina” (entrevista ao programa Autor por autor, TV Cultura). Apesar de aceitar que Boca do inferno ainda hoje defina sua imagem como escritora, Ana Miranda (2011) considera-o muito mais “um exercício de domínio da técnica de construção do romance”. À medida que se aprofundou em seu trabalho, rompendo com a linearidade das narrativas iniciais, a romancista sente que a popularidade conquistada com sua estreia na ficção foi se reduzindo. Somente em seu quinto romance, Ana Miranda (2011) reconhece a consumação de uma aspiração literária: “foi no Desmundo, um livro carregado pela palavra, que eu consegui o que eu queria”.

As razões apontam para sua busca por uma linguagem mais livre, imaginativa e pessoal. Desmundo pode ser considerado representativo da maturidade literária de Ana Miranda por ser o primeiro de seus livros a alcançar uma fusão bem-sucedida entre a linguagem do outro – neste caso, o português quinhentista – e sua própria sensibilidade. Mais do que fontes de inspiração, suas personagens são fontes linguísticas, com as quais a autora procura libertar-se das restrições lexicais de seu tempo e construir narrativas que representem excursões intimistas às profundezas da mente. Essa fusão foi possível, em parte, pela adoção da voz feminina em primeira pessoa. Observe-se que, após a novela Clarice (1996), todos os romances de Ana Miranda possuem narradoras protagonistas: Oribela (Desmundo, 1996), Amina (Amrik, 1997), Feliciana (Dias e dias, 2002), a índia Yuxin (Yuxin: alma, 2009) e Iriana (Semíramis, 2014). A exceção (até o momento) é a novela O peso da luz: Einstein no Ceará (2013).

Personagens como Oribela são obstinadas almas quixotescas, histriônicas, líricas e sonhadoras. Construídas por um discurso fluido e sensual, ressentido e provocador, alcançam o estatuto de criações ora tangíveis, donas de uma forte ilusão de realidade, ora diáfanas, encobertas pelo véu da linguagem. Representam, cada uma, demandas específicas da autora, que escreve para recriar mundos e, junto a eles, recriar a si mesma como escritora: “eu não escrevo o que eu quero. Escrevo o que eu sou. Sou versátil, e tenho muitas solicitações interiores e exteriores de outros textos, estilos, gêneros” (entrevista ao jornal O Povo).

A partir de um experimentalismo confesso, sem esquecer que parte considerável de sua obra dialoga com outros escritores do cânone brasileiro – Gregório de Matos (em Boca do inferno), Augusto dos Anjos (em A última quimera), Gonçalves Dias (em Dias e dias), Clarice Lispector (em Clarice) e José de Alencar (em Semíramis) –, Ana Miranda constrói uma obra que trabalha, sobretudo, com a memória da linguagem, fundamentalmente veiculada por vestígios escritos, e que deve ser lida, pois, como expressão daquela “impossibilidade de viver fora do texto infinito”, referida por Roland Barthes (2008). Trata-se, enfim, de uma escrita em palimpsesto, cuja função não é somente retomar a linguagem de determinada época, mas, principalmente, dar continuidade ao seu movimento na memória coletiva através da constante atualização dos textos.

Para saber mais

COSTA PINTO, Manuel da (2004). Literatura brasileira hoje. São Paulo: Publifolha.

MIRANDA, Ana (2011). “A arte de fingir que se mente”. Revista de História da Biblioteca Nacional, n. 75, dez., p. 49-52.

LICARIÃO, Berttoni (2017) A escrita dos vestígios em Ana Miranda. Brasília: Edições Carolina, 2017.

LICARIÃO, Berttoni (2013). Dias e dias: a escrita em palimpsesto de Ana Miranda. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais: Belo Horizonte.

POSSANI, Taíse (2009). Ana Miranda, leitora de Clarice Lispector. Dissertação (Mestrado em História da Literatura) – Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande. Disponível em: http://www.ppgletras.furg.br/disserta/taisepossani.pdf. Acesso em: 13 jul. 2022.

Iconografia

Tags:

Como citar:

LICARIÃO, Berttoni.
Desmundo.

Praça Clóvis: 

mapeamento 

crítico 

da 

literatura 

brasileira 

contemporânea, 

Brasília. 

23 maio. 2024.

Disponível em:

1105.

Acessado em:

19 maio. 2025.